sábado, 4 de outubro de 2025

Émile Zola - Germinal: Segunda Parte - (IV.b) Maheu e a mulher

Germinal


Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Segunda Parte

IV
 .

      Maheu e a mulher ficaram finalmente sós. Esta resolveu colocar Estelle sobre uma cadeira bem perto do fogo; a criança, por milagre, não começou a berrar e ficou olhando para os pais à maneira vaga dos inocentes que ainda não têm entendimento. Ele, completamente nu, acocorado diante da tina, mergulhou primeiro a cabeça ensaboada com esse sabão preto cujo uso secular descolorira e amarelecera os cabelos da raça; em seguida meteu se na água, ensaboando o peito, a barriga, os braços e as pernas, para depois esfregá-los energicamente com ambas as mãos. Em pé, à sua frente, a mulher o observava.

— O que é que há? — começou ela. — Eu vi tua cara quando chegaste, estavas com uma carranca... Ao veres as compras é que desanuviaste o semblante. Imagina que os burgueses da Piolaine não quiseram dar-me um soldo... Mas mesmo assim são amáveis, deram roupas para as crianças e eu tive vergonha de suplicar; as palavras ficam-me atravessadas na garganta quando tenho de pedir. —      interrompeu-se por um instante para escorar Estelle na cadeira, com receio de uma queda. O homem continuou a rascar-se sem apressar com perguntas aquela história que tanto o interessava, esperando pacientemente compreendê-la. — É preciso que te diga que o Maigrat tinha recusado com aquela empáfia dele, como quem enxota um cão. Calcula como me estava sentindo... Roupas de lã aquecem, mas não alimentam, não é verdade?

     Ele levantou a cabeça, sempre mudo. Nada na Piolaine, nada no Maigrat; e então? Mas, como de costume, ela acabava de arregaçar as mangas para lhe lavar as costas e as partes do corpo que ele não podia alcançar. Ele gostava de que ela o ensaboasse, que o esfregasse todo, até cansar os pulsos. Apanhando o sabão, a mulher começou a lhe rascar os ombros, enquanto ele se firmava para poder permanecer ereto.

— Voltei então ao Maigrat e disse-lhe umas verdades, ah! se disse... Que era preciso não ter coração, que se havia justiça ele iria pagar por tudo isso... Ele ficou apavorado, desviava os olhos, queria escapar...

     Das costas descera às nádegas e, arrebatada, continuou por todo o corpo, não deixando uma prega, uma curva sem esfregar, fazendo-o brilhar como as suas três caçarolas reluziam na limpeza geral dos sábados. Já estava suando com aquele terrível vaivém dos braços, tão agitada e sem fôlego que as palavras a engasgavam.

 — Por fim, chamou-me de carrapato, mas temos pão até sábado, e o mais formidável é que me emprestou cem soldos... Trouxe ainda de lá manteiga, café e chicória, e ia pedir que me fornecesse um pouco de salsicharia e batatas, mas achei que era demais, ele já estava resmungando... Sete soldos de queijo de porco, dezoito soldos de batatas, sobram três francos e setenta e cinco para um guisado e um cozido. Que tal? Parece que aproveitei muito bem a manhã.

     Agora enxugava-o; nos lugares que não queriam secar, batia com a toalha. Ele, feliz, sem mais se preocupar com o futuro da dívida, ria a plenos pulmões e abraçava-a.

 — Solta-me, bruto! Estás encharcado, vais molhar-me. O que receio é que Maigrat tenha lá seus planos...

     Ia falar em Catherine, mas conteve-se. De que serviria preocupar o marido? Seriam histórias sem fim;

— Que planos? — perguntou ele. 
— Planos para nos roubar; o que haveria de ser? É preciso que Catherine examine muito bem a nota.

     Ele abraçou-a de novo, não a deixando mais. O banho dele acabava sempre assim; ela excitava-o ao esfregá-lo com tal vigor, e depois, ao secá-lo com panos que lhe faziam cócegas nos cabelos dos braços e do peito. Aliás, por todo o conjunto habitacional, essa era a hora das brincadeiras, quando faziam mais filhos do que queriam. À noite não era possível, dormiam todos amontoados. Maheu empurrava a mulher para a mesa, gracejando com o bom humor daqueles que estão gozando do único momento agradável do dia, chamando o que ia fazer de comer sua sobremesa, e uma sobremesa que não lhe custava dinheiro. Ela, balançando seios e quadris, debatia-se um pouco, por brincadeira.

— Que bruto, meu Deus! Que bruto... A Estelle nos está olhando! Espera um pouco que vou virar a cabeça dela para o outro lado. 
— Ora! Com três meses não pode compreender nada.

     Levantando-se, ele vestiu apenas umas calças enxutas. Seu prazer, depois do banho e de ter feito suas brincadeiras com a mulher, era ficar com o torso nu por algum tempo. Na sua pele branca, de uma alvura de moça anêmica, os arranhões, os cortes de carvão deixavam tatuagens, "enxertos", como diziam os mineiros; e ele sentia-se orgulhoso disso, exibia seus braços grossos, seu peito largo, brilhante como um mármore raiado de azul. No verão, todos os mineiros ficavam nas portas de suas casas assim. Apesar da umidade do tempo, ele foi até a porta por um momento e gritou um palavrão para um companheiro que se encontrava igualmente de torso nu do outro lado dos jardins. Outros apareceram; e as crianças que brincavam nas calçadas ergueram as cabeças e riram também ao constatarem que havia alegria em toda aquela carne fatigada que os trabalhadores expunham ao ar livre.
     Tomando o café, ainda sem camisa, Maheu contou à mulher da cólera do engenheiro por causa do estaqueamento. Estava calmo, descansado e ouviu com sinais de aprovação os prudentes conselhos da esposa, que demonstrava grande bom senso naqueles assuntos. Ela sempre repetia que não se ganhava nada entrando em choque com a companhia; falou-lhe, em seguida, da visita da Sra. Hennebeau. Sem o dizerem, ambos estavam envaidecidos com o acontecimento.

— Posso descer? — perguntou Catherine do alto da escada. 
— Podes, sim, teu pai está-se enxugando.

     A moça trajava sua roupa de domingo, um velho vestido de popelina azul-escuro, desbotado e já puído nas pregas. Trazia na cabeça uma touca de tule preto, muito simples.

— Como? Estás toda preparada! Onde é que vais? 
— Vou a Montsou comprar uma fita para a minha touca... Arranquei a velha, estava imunda. 
— Então tens dinheiro? 
— Não, mas a filha do Mouque vai emprestar-me dez soldos.

     A mãe deixou-a sair. À porta, porém, chamou-a.

— Escuta, não vás comprar tua fita no Maigrat... Ele te roubaria e ficaria pensando que estamos nadando em ouro.

     O pai, que se tinha agachado em frente ao fogo para secar mais depressa o pescoço e as axilas, limitou-se a acrescentar: 

— Volta para casa antes do anoitecer. 

     Na parte da tarde, Maheu trabalhou no jardim. Já plantara batatas, semeara feijão e ervilha e tinha em viveiros, desde a véspera mudas de couves e alfaces, que se pôs a transplantar. Aquele retalho de jardim os abastecia de legumes, com exceção das batatas, que nunca chegavam para os gastos da casa. A verdade é que ele gostava de plantar e até alcachofras conseguia ali, o que era tido pelos vizinhos como uma mania de grandeza.
     Estava preparando o canteiro quando surgiu Levaque, que viera dar uma cachimbada na entrada da sua casa e que se pôs a examinar as alfaces que Bouteloup plantara pela manhã; sem a disposição do senhorio para o cultivo, não cresceriam ali senão urtigas. E os dois começaram a conversar por cima da cerca. Levaque, descansado mas excitado por ter batido na mulher, tentou em vão arrastar Maheu para o Rasseneur. Então, será que tinha medo de um copo de cerveja? Jogariam uma partida de boliche, vadiariam um pouco com os camaradas e voltariam para jantar. Era assim que passavam o tempo, depois de deixarem a mina. Claro que não havia mal nisso, mas Maheu estava decidido: se não transplantasse suas alfaces, no dia seguinte elas estariam murchas. No fundo, não queria ir por economia, para não ter que pedir à mulher um centavo do que sobrara dos cem soldos.
     Davam cinco horas quando a mulher de Pierron veio perguntar se tinha sido com Jeanlin que a sua Lydie havia escapado. Levaque respondeu que talvez sim, porque o Bébert também desaparecera e os três faziam das suas sempre juntos. Maheu tranqüilizou-os falando da salada de alface, e em seguida ele e o companheiro passaram a fazer piadas com a mulher, numa linguagem de caserna. Ela zangou-se mas não foi embora, deleitada no fundo com os palavrões, que a faziam dobrar-se de riso. Veio em seu auxílio uma mulher magra, cuja cólera gaguejante se assemelhava a um cacarejar de galinha. Outras, das suas portas, começavam a ficar perturbadas com a cena, da qual não ouviam palavra.
     A escola acabava de fechar suas portas, a petizada andava à solta, era um rebuliço de pequenos seres esganiçando-se, engalfinhando-se, rolando por terra. Enquanto isso, os pais que não estavam na taberna juntavam-se em grupos de três ou quatro, sentavam nos calcanhares, como no fundo da mina, para fumar seus cachimbos, falando pouco, encostados numa parede. A mulher de Pierron partiu furiosa quando Levaque tentou apalpá-la para ver se tinha as coxas bem torneadas; em seguida, este decidiu ir sozinho mesmo à taberna e Maheu continuou a trabalhar nos seus legumes.
     O sol começou a desaparecer; a mulher de Maheu acendeu o candeeiro, irritada com a ausência dos filhos. Podia apostar: nunca faziam juntos a única refeição em que podiam estar todos em volta da mesa. E ainda havia a tal salada que Jeanlin não trouxera. Como poderia colhê-la agora, nessa escuridão? E uma salada viria a calhar com o guisado de batata, alho, azedinhas — tudo refogado na cebola —, que estava cozendo em fogo brando!
     A casa inteira cheirava a cebola frita, um odor agradável que logo fica rançoso e penetra nas paredes dos conjuntos habitacionais de mineiros e passa a exalar tal fedor que de longe, do campo aberto, pode-se sentir esse cheiro de cozinha pobre.
     Ao cair da noite, Maheu deixou o jardim e estirou-se numa cadeira para um cochilo, a cabeça apoiada na parede. À noite, bastava sentar para pegar no sono. O cuco deu sete horas. Henri e Lénore acabaram por quebrar um prato teimando em ajudar Alzire, que punha a mesa. O velho Boa-Morte foi o primeiro a voltar, pediu logo a janta, pois tinha que pegar no trabalho. A mulher resolveu então acordar o marido.

— Vamos comer. Se não vêm, pior para eles; são bastante grandes para encontrar o caminho de volta. O que me irrita é a salada.

continua na página 103...
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Segunda Parte - (IV.b) Maheu e a mulher
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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