segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Mudei de assunto)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Mudei de assunto e lhe perguntei se a princesa de Léna era uma pessoa inteligente. O Sr. de Charlus parou e, assumindo o tom mais depreciativo que lhe conheci: 

- Ah, senhor, faz alusão aqui a uma ordem de nomenclatura corte a qual nada tenho a ver. Talvez haja uma aristocracia entre os taitianos, mas confesso que não a conheço. O nome que acaba de pronunciar é estranho; entretanto, ressoou aos meus ouvidos faz alguns dias. Perguntavam-me se condescenderia em que me fosse apresentado o jovem duque de Guastalla! O pedido me espantou, pois o duque de Guastalla não tem necessidade de ser apresentado a mim, pela simples razão de que é meu primo e me conhece desde sempre; é filho da princesa de Parma e, como parente jovem bem-educado, nunca deixa de vir me cumprimentar no dia de Ano Novo. Mas, dadas as informações, não se tratava do meu parente e sim de um filho da pessoa que lhe interessa. Como não existe princesa com esse nome supus que se tratasse de uma mendiga que dormisse debaixo da ponte de Léna e que assumira pitorescamente o título de princesa de Léna, como se costuma dizer a Pantera dos Batignolles ou o Rei do Aço. Mas não, tratava-se de uma pessoa rica, cujos móveis muito bonitos, que eu admirara numa exposição, têm sobre o nome do proprietário a vantagem de não serem falsos. Quanto ao pretenso duque de Guastalla, devia ser corretor de câmbio do meu secretário, o dinheiro consegue tantas coisas. Mas não o imperador, parece, divertiu-se em dar a tais pessoas um título precisamente indisponível. Talvez seja uma demonstração de poder, ou de ignorância, ou malícia; acho principalmente que é uma partida que ele pregou dessa forma aos usurpadores sem querer. Mas enfim, não posso lhe dar esclarecimentos sobre tudo isso, minha competência se limita ao faubourg Saint-Germain onde entre todos os Courvoisiers e os Gallardons o senhor encontrará, se conseguir alguém que o apresente à eles, velhas megeras extraídas expressamente de Balzac e que hão de diverti-lo. Naturalmente, tudo isto nada tem a ver com o prestígio da princesa de Guermantes, mas, sem mim e meu Sésamo, a morada desta é inacessível. 
- Senhor, o palácio da princesa de Guermantes é verdadeiramente muito bonito. 
- Oh, não é muito bonito. É o que há de mais bonito; depois da princesa, é claro. 
- A princesa de Guermantes é superior à duquesa de Guermantes? 
- Ah, não tem comparação. (É de notar que, quando as pessoas da sociedade têm um pouco de imaginação, coroam ou destronam, ao sabor de suas simpatias ou brigas, aqueles cuja posição parecia ser a mais sólida e a mais bem estabelecida.) A duquesa de Guermantes (não a chamando de Oriane, talvez quisesse colocar mais distância entre ela e mim) é deliciosa, muito superior ao que o senhor possa imaginar. Mas enfim é imensurável como a sua prima. Esta é exatamente o que as pessoas dos Mercados imaginam que era a princesa de Metternich. Mas a Metternich julgava ter lançado Wagner porque conhecia Victor Maurel. A princesa de Guermantes, ou melhor, sua mãe, conheceu o verdadeiro. O que é um prestígio, sem falar da incrível beleza dessa mulher. E nada como os jardins de Ester! 
- Não se pode visitá-los? 
- Não, é preciso ser convidado, mas não convidam ninguém a menos que eu intervenha. -

     Porém, logo retirando, após haver lançado, a isca dessa oferta, estendeu-me a mão, pois acabávamos de chegar à minha casa. 

- Meu papel está findo, senhor; apenas acrescento estas poucas palavras. Um dia, um outro talvez lhe ofereça a sua simpatia como eu o fiz. Que o exemplo de hoje lhe sirva de ensino. Não o negligencie. Uma simpatia é preciosa sempre. O que não se pode fazer sozinho na vida, pois há coisas que não se pode pedir, nem querer, nem aprender por si mesmo, vários o conseguem, e sem necessidade de serem treze como no romance de Balzac, nem quatro, como em Os três Mosqueteiros. Adeus.

     Devia estar cansado e ter desistido de ir ver o luar, pois me pediu para dizer ao cocheiro que voltasse para casa. E logo fez um movimento rápido como se quisesse mudar de ideia. Mas eu já transmitira a ordem e, para não me atrasar mais, fui tocar a campainha da porta, sem mais pensar no que tinha de fazer ao Sr. de Charlus, relativamente ao imperador da Alemanha; ao general Botha, narrativas há pouco tão obsedantes, mas que a sua acolhida inesperada e fulminante tinha feito voar para bem longe de mim.
     Entrando em casa, vi sobre minha escrivaninha uma carta que o jovem lacaio de Françoise escrevera a um de seus amigos e que havia esquecido. Desde que minha mãe estava ausente, ele não recuava diante de nenhuma sem-cerimônia; mas culpado fui eu por ter lido a carta sem e envelope, inteiramente aberta e que, para minha única desculpa, parecia oferecer-se a mim.
     Caro amigo e primo:
     Espero que a saúde vá sempre bem e que seja o mesmo, - toda a pequena família, particularmente para meu jovem afilhado Joseph, que eu ainda não tive o prazer de conhecer mas que prefiro a todos como sendo meu afilhado, essa relíquia do coração também o seu pó, sobre seus restos sagrados não erguemos. Aliás caro amigo e primo quem te diz que amanhã tu e tua mulher minha prima Marie, não serão ambos precipitados até o fim do mar como o marinheiro atado ao auto do grande mastro, pois esta vida não é mais que um vale obscuro. Caro amigo é preciso dizer que minha principal ocupação do teu espanto tenho certeza, agora a poesia que amo com delícia, pois é preciso passar o tempo. Assim caro amigo não fique muito surpreso se não respondi ainda tua última carta, na falta do perdão deixa que venha o olvido. Corto tu sabes, a mãe da Senhora morreu em sofrimentos inexprimíveis a deixaram muito cansada pois ela teve a visita de três médicos até. No dia de seu enterro fez um lindo dia pois todas as amizades, Senhor vieram em multidão assim como vários ministros. Levaram mais de duas horas para ir ao cemitério o que fará a todos abrir grandes olhos em sua aldeia onde certamente não se fará outro lado pela tia Michu. Assim minha vida não será mais que um longo soluço. Divirto-me enormemente com a motocicleta que ultimamente aprendi. Que diriam vocês amigos se eu chegasse assim a toda pressa aos Écorres. Mas aqui não me calarei mais pois sinto que a embriaguez da desgraça arrebata a razão. Freqüento a duquesa Guermantes, pessoas que tu nem nunca ouviu seus nomes em nossas terras ignorantes. Assim é com prazer que mandarei livros de Racine, de Victor-Hugo, de Páginas escolhidas de Chenedollé, de Musset, pois desejaria curar a terra que me deu a luz da ignorância que leva fatalmente até o crime. Não vejo mais nada para te dizer e te envio como o pelicano cansado de uma longa viagem minhas boas saudações assim como tua mulher a meu afilhado e a irmã Rose. Possam não dizer dela: E rosa ela só viveu o que vivem as rosas, como disse Victor Hugo, o soneto de Arvers, Alfred de Musset todos esses grandes gênios que por causa disso fizeram morrer nas chamas da fogueira como Joana d'Arc. Em breve a tua próxima missiva recebe meus beijos como os de um irmão Périgot (Joseph).
     Somos atraídos por qualquer vida que nos apresente algo de desconhecido, por uma última ilusão a destruir. Apesar disso, as misteriosas palavras, graças às quais o Sr. de Charius me levara a imaginar a princesa de Guermantes como uma criatura extraordinária e diferente daquilo que eu conhecia, não bastam para explicar a estupefação em que fiquei, em breve seguida pelo temor de ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, maquinada por alguém que quisesse me levar à porta de uma residência aonde eu iria sem ser convidado, quando, cerca de dois meses depois do jantar na casa da duquesa, e enquanto ela se achava em Cannes, tendo aberto um envelope cuja aparência não me advertia de nada de extraordinário, li estas palavras impressas num cartão: "A princesa de Guermantes, nascida duquesa de Baviera, estará em sua residência no dia ***." Sem dúvida, ser convidado para a casa da princesa de Guermantes talvez não fosse, do ponto de vista mundano, algo de mais difícil que jantar na casa da duquesa, e meus frágeis conhecimentos de heráldica me haviam ensinado que o título de príncipe não está acima do de duque. Depois, dizia comigo que a inteligência da mulher da alta sociedade não pode ser de uma essência tão heterogênea à de suas congêneres como o pretendia o Sr. de Charlus, e de uma essência tão heterogênea à de uma outra mulher. Porém minha imaginação, semelhante a Elstir quando reproduzia um efeito de perspectiva sem levar em conta noções de física que no entanto poderia possuir, pintava-me não o que eu sabia, mas o que ela via; o que ela via, isto é, o que lhe mostrava o nome. Ora, mesmo quando eu não conhecia a duquesa, o nome de Guermantes precedido do título de princesa, como uma nota ou uma cor ou uma quantidade profundamente modificada por valores contíguos, pelo "signo" matemático ou estético que as afeta, sempre me evocara algo bem diverso. Com esse título, o encontramos sobretudo nas Memórias do tempo de Luís XIII e de Luís XIV, da corte da Inglaterra, da rainha da Escócia, da duquesa de Aumale; e eu imaginava o palácio da princesa de Guermantes como mais ou menos freqüentado pela duquesa de Longueville e pelo grande Condé, cuja presença tornava bem pouco verossímil que eu penetrasse ali alguma vez. Muitas coisas que o Sr. de Charlus me dissera tinham dado uma vigorosa chicotada na minha imaginação e, fazendo-a esquecer o quanto a realidade a desapontara na casa da duquesa de Guermantes (tanto novos nomes das pessoas como no dos nomes de lugares), haviam-na empurrado na direção da prima de Oriane. Aliás, o Sr. de Charlus só me enganou por algum tempo quanto ao valor e à variedade imaginária das pessoas da alta sociedade, porque ele próprio se enganava. E isso talvez porque não fazia nada, não escrevia, não pintava, nem mesmo lia de uma forma séria e aprofundada. Mas, superior às pessoas da alta sociedade em vários graus, se era deles e de seu espetáculo que extraía a matéria de sua conversação, não era por isso compreendido deles. Falando como artista, podia quando muito fazer emanar o encanto falacioso das pessoas da alta sociedade. Mas fazer emanar tão só para os artistas, em relação aos quais pode ele representar o papel de rena entre os esquimós; este precioso animal arrebatado para eles, sobre as rochas desertas, musgos e líquens que eles não saberiam descobrir nem utilizar, mas que, uma vez digeridos pelas renas produziam se para os habitantes do extremo setentrional um alimento assimilável. Ao que eu acrescentarei que aqueles quadros que o Sr. de Charlus fazia da alta sociedade eram animados de muita vida pela mistura de ódios ferozes e de suas devotas simpatias. Os ódios dirigidos sobretudo contra as pessoas jovens, a adoração excitada principalmente por certa mulheres. Se, entre estas, a princesa de Guermantes era colocada pelo Sr. de Charlus no trono mais elevado, suas misteriosas palavras sobre "o inacessível palácio de Aladim", que sua prima habitava, não bastavam para explicar a minha estupefação. Apesar do que se refere aos diversos pontos de vista subjetivos neles ampliações artificiais de que falarei, não é menos verdadeiro que experimentei alguma realidade objetiva em todas essas criaturas e, por conseguinte, uma diferença entre elas.
     Aliás, como poderia ser de outro modo? A humanidade que frequentamos e que se assemelha um pouco aos nossos sonhos é, no entanto, a mesma que, nas Memórias, nas cartas de pessoas notáveis, vemos descritas e temos desejado conhecer. O velho mais insignificante com quem jantamos é o mesmo de quem, num livro sobre a guerra de 70, lemos emocionados a orgulhosa carta ao príncipe Frederico Carlos. Aborrecemo-nos ao jantar porque a imaginação está ausente e nos distraímos com um livro, pois aí ela nos faz companhia. Mas é das mesmas pessoas que se trata. Gostaríamos de ter conhecido Madame Pompadour, que tão bem protegeu as artistas, e tanto nos aborreceríamos a seu lado como junto das modernas Egérias, a cuja casa não podemos nos decidir a voltar, de tão medíocres que são elas. Nem por isso é menos verdadeiro que essas diferenças permanecem. As pessoas nunca são inteiramente idênticas umas às outras, o seu modo de comportar-se a nosso respeito, mesmo em nível igual de amizade, traz diferenças que afinal servem de compensação. Quando conheci a Sra. de Montmorency, ela gostava de me dizer coisas desagradáveis, mas, se eu precisava de um favor, ela utilizava, para obtê-lo com eficiência, todo o crédito que possuía, sem poupar coisa alguma. Ao passo que uma outra, como a Sra. de Guermantes, jamais desejou desagradar-me, só me dizia coisas que me dessem prazer, cumulava-se de todas as gentilezas que formavam o rico modo de vida moral dos Guermantes; mas se eu lhe pedisse uma ninharia além de tudo isso, não teria dado um passo para consegui-lo, como nesses castelos onde a gente tem à nossa disposição um automóvel, um lacaio, mas onde é impossível obter um copo de cidra não previsto no arranjo das festas. Qual era para mim a verdadeira amiga: a Sra. de Montmorency, tão feliz em melindrar-me e sempre disposta a me servir, ou a Sra. de Guermantes, sofrendo com o menor desagrado que me causassem e incapaz do menor esforço para me ser útil? Por outro lado, dizia-se que a duquesa de Guermantes só falava de frivolidades, e sua prima, com o mais medíocre espírito, de coisas sempre interessantes. As formas de espírito são tão variadas, tão opostas, não só na literatura mas na sociedade, que não são só Baudelaire e Mérimée que têm o direito de se desprezar mutuamente. Tais particularidades formam em todas as pessoas um sistema de olhares, de discursos, de ações, tão coerente, tão despótico, que quando estamos em sua presença parece nos superior ao resto. Na Sra. de Guermantes, suas palavras, deduzidas como um teorema de seu gênero de espírito, me pareciam as únicas que se poderiam dizer. E, no fundo, eu era de sua opinião quando ela me dizia que a Sra. de Montmorency era estúpida e possuía o espírito aberto a todas as coisas que não compreendia, ou quando, tendo sabido de uma maldade sua, a duquesa me dizia: 

- É isto a que o senhor chama de uma boa mulher; é o que eu chamo de monstro. -

     Porém essa tirania da realidade que está diante de nós, essa evidência da luz da lâmpada que faz empalidecer a aurora já distante como uma simples lembrança desapareciam quando eu estava longe da Sra. de Guermantes, e uma dama diversa me dizia, pondo-se ao mesmo nível que eu, e considerando a duquesa muito acima de nós: 

- No fundo, Oriane não se interessa por nada, nem por ninguém - e até o que na presença da Sra. de Guermantes teria parecido impossível de acreditar, tanto que ela mesma proclamava o contrário: 
- Oriane é esnobe. -

     Matemática alguma nos permitindo converter a Sra. d'Arpajon e a Sra. de Montpensier em quantidades homogêneas, era-me impossível responder, caso me perguntassem qual delas se me afigurava superior à outra. Ora, dentre os traços peculiares ao salão da princesa de Guermantes, o mais habitualmente citado era um exclusivismo em parte ao nascimento real da princesa, e sobretudo o rigorismo quase fóssil de preconceitos aristocráticos do príncipe, preconceitos que aliás o duque e a duquesa não deixavam de ridicularizar na minha presença e que, naturalmente, devia me fazer considerar como mais inverossímil ainda que convidasse aquele homem para quem só contavam as Altezas e os duques; e que em todo jantar fazia uma cena porque não tivera na mesa o lugar que teria tido direito sob Luís XIV, lugar que, graças à sua extrema erudição em matéria de história e genealogia, era o único a conhecer. Por causa disso, muitas pessoas da sociedade decidiam em favor do duque e da duquesa as diferenças que os separavam de seus primos.

- O duque e a duquesa são muito mais modernos, muito mais inteligentes, não se ocupam apenas, como os outros, com o número de quartéis do escudo, o salão deles está trezentos anos mais adiantado que o do seu primo! Eram frases costumeiras cuja lembrança me fazia agora estremecer ao olhar o cartão de convite, ao qual essas frases davam muito mais probabilidades de ter sido enviado por um mistificador.

     Se o duque e a duquesa ainda não houvessem partido para Cannes; eu teria podido procurar saber por eles se o convite recebido era verdadeiro. Essa dúvida em que me encontrava não se deve nem mesmo, como por um momento me lisonjeara em acreditar, ao sentimento que um homem, mundano não experimentaria e que em consequência um escritor, embora pertencendo além disso à categoria das pessoas da sociedade, deveria reproduzir a fim de ser bem "objetivo" e pintar diversamente cada classe. De fato, encontrei ultimamente, num encantador volume de Memórias, o registro de incertezas análogas àquelas pelas quais me fazia passar o cartão de convite da princesa. "Georges e eu; ou Hely e eu, não tenho o livro à mão para verificar ardíamos tanto de vontade de sermos admitidos no salão da Sra. Delessert que, tendo dela recebido um convite, julgamos prudente, cada um por seu lado, assegurarmo-nos que não éramos vítimas de uma brincadeira." Ora, o narrador não é outro senão o conde d'Haussonville; o que se casou com a filha do duque de Broglie, e o outro rapaz que, "por seu lado" vai se certificar se não é objeto de uma mistificação é, conforme se chame Georges ou Hely, um dos dois inseparáveis amigos do Sr. D'Haussonville; ou Sr. d'Harcourt ou o príncipe de Chalais.
     No dia em que deveria ter lugar o sarau na casa da princesa de Guermantes, fiquei sabendo que o duque e a duquesa estavam de volta à Paris desde a véspera. O baile da princesa não os teria feito regressar, porém um de seus primos se achava muito enfermo e, além do mais, o duque fazia muita questão de ir a uma festa que se daria naquela noite e onde ele próprio devia comparecer fantasiado de Luís XI e sua mulher de Isabel da Baviera. E resolvi ir visitá-los de manhã. Mas, tendo eles saído muito cedo, ainda não haviam regressado; primeiro fiquei espreitando a chegada do carro de um pequeno cômodo que julgava ser um bom posto de vigia. Na realidade, escolhera muito mal o meu observatório, de onde pouco enxergava do nosso pátio, mas vi diversos outros, o que, sem utilidade para mim, divertiu-me por alguns instantes. Não é somente em Veneza que dispomos desses pontos de vista sobre várias casas ao mesmo tempo que têm tentado os pintores, mas igualmente em Paris. Não me refiro a Veneza por acaso. É em seus bairros pobres que fazem pensar certos bairros pobres de Paris, de manhã, com suas altas chaminés dilatadas, às quais o sol dá os róseos mais vivos, os mais claros vermelhos; é todo um jardim que floresce acima das casas, e floresce em matizes tão variados que se diria, plantado sobre a cidade, o jardim de um amador de tulipas de Delft ou de Haarlem. Além disso, a extrema proximidade das casas, de janelas opostas, dando para um mesmo pátio, faz ali, de cada quadrado de janela, a moldura onde uma cozinheira sonha olhando para o chão, ou mais adiante, uma moça se deixa pentear por uma velha com cara, mal distinta na sombra, de bruxa; assim cada pátio formava para o vizinho da casa, suprimindo o ruído pela sua distância, deixando ver os gestos silenciosos por detrás do retângulo envidraçado das janelas, uma exposição de cem quadros holandeses justapostos. É claro que do palácio de Guermantes não se possuía o mesmo gênero de vistas, mas sim igualmente curiosas, principalmente do estranho ponto trigonométrico em que me havia colocado e onde o olhar não era interrompido por nada, por serem muito íngremes e relativamente vagos os terrenos que precediam as alturas distantes que formavam o palácio da princesa de Silistrie e da marquesa de Plassac, primas muito nobres do Sr. de Guermantes, e a quem eu não conhecia. Até esse palácio (que era do pai delas, Sr. de Bréquigny) não havia senão corpos de edifícios pouco elevados, orientados das mais diversas formas, e que, sem deter a vista, prolongavam a distância com seus planos oblíquos. O torreão de telhas rubras da cocheira onde o marquês de Frécourt guardava seus carros bem que terminava numa agulha mais alta, mas tão delgada que não escondia coisa alguma, e fazia pensar nessas lindas construções antigas da Suíça que despontam, isoladas, do sopé de uma montanha. Todos esses pontos, vagos e divergentes, em que os olhos repousam, faziam parecer mais distante do que se estivesse separado de nós por várias ruas ou numerosos contrafortes o palácio da Sra. de Plassac, na realidade bem vizinho, mas quimericamente afastado como uma paisagem alpestre. Quando suas largas janelas quadradas, fulgurantes do sol como lâminas de cristal de rocha, eram feitas para limpeza, ao seguir nos diferentes andares os lacaios, impor de distinguir muito bem, mas que batiam tapetes ou passavam os espanadores, sentia-se o mesmo prazer que em examinar, numa paisagem de Elstir, um viajante em diligência, ou um guia, em diferentes grau altitude do São Gotardo. Mas, do "ponto de vista" em que me colocava arriscava-me a não ver voltar o Sr. e a Sra. de Guermantes, de modo que tarde, quando fiquei livre para retomar a minha espreita, simplesmente coloquei na escada, de onde não me podia passar despercebida a abertura da porta principal, e foi ali que me postei, embora não mais surgissem, fulgurantes com seus lacaios tornados minúsculos pelo afastamento e empenhados na limpeza, as belezas alpestres dos palácios de Bréquig Tresmes. Ora, semelhante espera na escada deveria ter para mim conseqüências tão consideráveis e revelar-me uma paisagem não mais tumultuada, porém moral, tão importante que é preferível retardar a narrativa por uns momentos, fazendo-a ser precedida primeiro pela da visita que fiz aos Guermantes logo que soube que tinham regressado. Foi o duque somente quem me recebeu na biblioteca. No momento em que entrei, saía um homenzinho de cabelos completamente brancos, ar pobre, com uma gravata preta como as que usavam o tabelião de Combray e vários amigos de meu avô, porém de aspecto ainda mais tímido, e que, fazendo-me grandes cumprimentos, não quis descer enquanto eu não passasse. O duque gritou da biblioteca alguma coisa que não entendi, e o outro respondeu com os cumprimentos dirigidos à parede, pois o duque não podia vê-lo, mesmo assim repetidos sem cessar, como esses inúteis sorrisos de pé as que conversam com a gente por telefone; tinha uma voz de falsete voltou a cumprimentar-me com a humildade de um homem de negócio bem podia tratar-se de um negociante de Combray, de tal modo era do provinciano, antiquado e afável da gente humilde, dos velhos modelos daquelas bandas. 

- O senhor verá Oriane dentro em breve - disse o duque, quando entrei. - Como Swann deve chegar daqui a pouco, trazendo-lhe as preciosas de seu estudo sobre as moedas da Ordem de Malta e, o que é pior a fotografia imensa onde mandou reproduzir as duas faces dessas mesma Oriane preferiu vestir-se primeiro, para poder ficar com ele até o momento de ir jantar. Já estamos atulhados de coisas, a ponto de não saber onde colocá-las, e me pergunto onde vamos pôr essa fotografia. Mas eu tenho uma mulher muito gentil, que gosta muito de ser agradável. Achou que era amável pedir a Swann para olhar, uns ao lado dos outros, todos esses grandes senhores da Ordem, cujas medalhas ele encontrou em Rodes. Pois ele dizia Malta, e é Rodes, mas é a mesma Ordem de São João de Jerusalém. No fundo, ela só se interessa por isso porque Swann se ocupa do assunto. Nossa família está muito mesclada a toda essa história; mesmo hoje em dia, meu irmão, que o senhor conhece, é um dos mais altos dignitários da ordem de Malta. Mas, por mais que eu tivesse falado de tudo isso a Oriane, ela não teria me dado ouvidos. Em compensação, bastou que as pesquisas de Swann sobre os Templários (pois é incrível o empenho das pessoas de uma religião em estudar a dos outros) o tenha conduzido à história dos Cavaleiros de Rodes, herdeiros dos Templários, para que logo Oriane quisesse ver as cabeças desses cavaleiros. Eles eram bem insignificantes em comparação com os Lusignan, reis de Chipre, de que descendemos em linha direta. Mas até agora Swann não se ocupou deles, e assim Oriane não quer saber nada sobre os Lusignan. -  

     Não pude falar imediatamente ao duque sobre o motivo da minha visita. Com efeito, algumas parentas ou amigas, como a Sra. de Silistrie e a duquesa de Montrose, tinham vindo fazer uma visita à duquesa que frequentemente recebia antes do jantar, e, não a encontrando, ficaram por um instante com o duque. A primeira dessas damas (a princesa de Silistrie), trajada com simplicidade, seca porém de aspecto amável, segurava uma bengala na mão. A princípio, receei que estivesse machucada ou fosse doente. Pelo contrário, mostrava-se bem ágil. Falou com tristeza ao duque sobre um primo-irmão dele não do lado dos Guermantes, porém mais brilhante ainda, se possível-, cujo estado de saúde, muito abalado desde algum tempo, agravara se de repente. Mas era visível que o duque, mesmo compadecendo-se da sorte de seu primo e repetindo: - Pobre Mamá! É um bom rapaz -, formava um diagnóstico favorável.
      
continua na página 255...
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Volume 2
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O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Mudei de assunto)
Volume 7

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