em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
continuando...
Mudei de assunto e lhe perguntei se a princesa de Léna era uma pessoa inteligente. O Sr. de Charlus parou e, assumindo o tom mais depreciativo que lhe conheci:
- Ah, senhor, faz alusão aqui a uma ordem de nomenclatura corte a qual nada tenho a ver.
Talvez haja uma aristocracia entre os taitianos, mas confesso que não a conheço. O nome que
acaba de pronunciar é estranho; entretanto, ressoou aos meus ouvidos faz alguns dias.
Perguntavam-me se condescenderia em que me fosse apresentado o jovem duque de Guastalla!
O pedido me espantou, pois o duque de Guastalla não tem necessidade de ser apresentado a
mim, pela simples razão de que é meu primo e me conhece desde sempre; é filho da princesa de
Parma e, como parente jovem bem-educado, nunca deixa de vir me cumprimentar no dia de Ano
Novo. Mas, dadas as informações, não se tratava do meu parente e sim de um filho da pessoa
que lhe interessa. Como não existe princesa com esse nome supus que se tratasse de uma
mendiga que dormisse debaixo da ponte de Léna e que assumira pitorescamente o título de
princesa de Léna, como se costuma dizer a Pantera dos Batignolles ou o Rei do Aço. Mas não,
tratava-se de uma pessoa rica, cujos móveis muito bonitos, que eu admirara numa exposição, têm
sobre o nome do proprietário a vantagem de não serem falsos. Quanto ao pretenso duque de
Guastalla, devia ser corretor de câmbio do meu secretário, o dinheiro consegue tantas coisas.
Mas não o imperador, parece, divertiu-se em dar a tais pessoas um título precisamente
indisponível. Talvez seja uma demonstração de poder, ou de ignorância, ou malícia; acho
principalmente que é uma partida que ele pregou dessa forma aos usurpadores sem querer. Mas
enfim, não posso lhe dar esclarecimentos sobre tudo isso, minha competência se limita ao
faubourg Saint-Germain onde entre todos os Courvoisiers e os Gallardons o senhor encontrará, se
conseguir alguém que o apresente à eles, velhas megeras extraídas expressamente de Balzac e
que hão de diverti-lo. Naturalmente, tudo isto nada tem a ver com o prestígio da princesa de
Guermantes, mas, sem mim e meu Sésamo, a morada desta é inacessível.
- Senhor, o palácio da princesa de Guermantes é verdadeiramente muito bonito.
- Oh, não é muito bonito. É o que há de mais bonito; depois da princesa, é claro.
- A princesa de Guermantes é superior à duquesa de Guermantes?
- Ah, não tem comparação. (É de notar que, quando as pessoas da sociedade têm um
pouco de imaginação, coroam ou destronam, ao sabor de suas simpatias ou brigas, aqueles cuja
posição parecia ser a mais sólida e a mais bem estabelecida.) A duquesa de Guermantes (não a
chamando de Oriane, talvez quisesse colocar mais distância entre ela e mim) é deliciosa, muito
superior ao que o senhor possa imaginar. Mas enfim é imensurável como a sua prima. Esta é
exatamente o que as pessoas dos Mercados imaginam que era a princesa de Metternich. Mas a
Metternich julgava ter lançado Wagner porque conhecia Victor Maurel. A princesa de Guermantes,
ou melhor, sua mãe, conheceu o verdadeiro. O que é um prestígio, sem falar da incrível beleza
dessa mulher. E nada como os jardins de Ester!
- Não se pode visitá-los?
- Não, é preciso ser convidado, mas não convidam ninguém a menos que eu intervenha. -
Porém, logo retirando, após haver lançado, a isca dessa oferta, estendeu-me a mão, pois
acabávamos de chegar à minha casa.
- Meu papel está findo, senhor; apenas acrescento estas poucas palavras. Um dia, um
outro talvez lhe ofereça a sua simpatia como eu o fiz. Que o exemplo de hoje lhe sirva de ensino.
Não o negligencie. Uma simpatia é preciosa sempre. O que não se pode fazer sozinho na vida,
pois há coisas que não se pode pedir, nem querer, nem aprender por si mesmo, vários o
conseguem, e sem necessidade de serem treze como no romance de Balzac, nem quatro, como
em Os três Mosqueteiros. Adeus.
Entrando em casa, vi sobre minha escrivaninha uma carta que o jovem lacaio de Françoise
escrevera a um de seus amigos e que havia esquecido. Desde que minha mãe estava ausente,
ele não recuava diante de nenhuma sem-cerimônia; mas culpado fui eu por ter lido a carta sem e
envelope, inteiramente aberta e que, para minha única desculpa, parecia oferecer-se a mim.
Caro amigo e primo:
Espero que a saúde vá sempre bem e que seja o mesmo, - toda a pequena família,
particularmente para meu jovem afilhado Joseph, que eu ainda não tive o prazer de conhecer mas
que prefiro a todos como sendo meu afilhado, essa relíquia do coração também o seu pó, sobre
seus restos sagrados não erguemos. Aliás caro amigo e primo quem te diz que amanhã tu e tua
mulher minha prima Marie, não serão ambos precipitados até o fim do mar como o marinheiro
atado ao auto do grande mastro, pois esta vida não é mais que um vale obscuro. Caro amigo é
preciso dizer que minha principal ocupação do teu espanto tenho certeza, agora a poesia que
amo com delícia, pois é preciso passar o tempo. Assim caro amigo não fique muito surpreso se
não respondi ainda tua última carta, na falta do perdão deixa que venha o olvido. Corto tu sabes, a
mãe da Senhora morreu em sofrimentos inexprimíveis a deixaram muito cansada pois ela teve a
visita de três médicos até. No dia de seu enterro fez um lindo dia pois todas as amizades, Senhor
vieram em multidão assim como vários ministros. Levaram mais de duas horas para ir ao
cemitério o que fará a todos abrir grandes olhos em sua aldeia onde certamente não se fará outro
lado pela tia Michu. Assim minha vida não será mais que um longo soluço. Divirto-me
enormemente com a motocicleta que ultimamente aprendi. Que diriam vocês amigos se eu
chegasse assim a toda pressa aos Écorres. Mas aqui não me calarei mais pois sinto que a
embriaguez da desgraça arrebata a razão. Freqüento a duquesa Guermantes, pessoas que tu
nem nunca ouviu seus nomes em nossas terras ignorantes. Assim é com prazer que mandarei
livros de Racine, de Victor-Hugo, de Páginas escolhidas de Chenedollé, de Musset, pois desejaria
curar a terra que me deu a luz da ignorância que leva fatalmente até o crime. Não vejo mais nada
para te dizer e te envio como o pelicano cansado de uma longa viagem minhas boas saudações
assim como tua mulher a meu afilhado e a irmã Rose. Possam não dizer dela: E rosa ela só viveu
o que vivem as rosas, como disse Victor Hugo, o soneto de Arvers, Alfred de Musset todos esses
grandes gênios que por causa disso fizeram morrer nas chamas da fogueira como Joana d'Arc.
Em breve a tua próxima missiva recebe meus beijos como os de um irmão Périgot (Joseph).
Somos atraídos por qualquer vida que nos apresente algo de desconhecido, por uma
última ilusão a destruir. Apesar disso, as misteriosas palavras, graças às quais o Sr. de Charius
me levara a imaginar a princesa de Guermantes como uma criatura extraordinária e diferente
daquilo que eu conhecia, não bastam para explicar a estupefação em que fiquei, em breve
seguida pelo temor de ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, maquinada por alguém que
quisesse me levar à porta de uma residência aonde eu iria sem ser convidado, quando, cerca de
dois meses depois do jantar na casa da duquesa, e enquanto ela se achava em Cannes, tendo
aberto um envelope cuja aparência não me advertia de nada de extraordinário, li estas palavras
impressas num cartão: "A princesa de Guermantes, nascida duquesa de Baviera, estará em sua
residência no dia ***." Sem dúvida, ser convidado para a casa da princesa de Guermantes talvez
não fosse, do ponto de vista mundano, algo de mais difícil que jantar na casa da duquesa, e meus
frágeis conhecimentos de heráldica me haviam ensinado que o título de príncipe não está acima
do de duque. Depois, dizia comigo que a inteligência da mulher da alta sociedade não pode ser de
uma essência tão heterogênea à de suas congêneres como o pretendia o Sr. de Charlus, e de
uma essência tão heterogênea à de uma outra mulher. Porém minha imaginação, semelhante a
Elstir quando reproduzia um efeito de perspectiva sem levar em conta noções de física que no
entanto poderia possuir, pintava-me não o que eu sabia, mas o que ela via; o que ela via, isto é, o
que lhe mostrava o nome. Ora, mesmo quando eu não conhecia a duquesa, o nome de
Guermantes precedido do título de princesa, como uma nota ou uma cor ou uma quantidade
profundamente modificada por valores contíguos, pelo "signo" matemático ou estético que as
afeta, sempre me evocara algo bem diverso. Com esse título, o encontramos sobretudo nas
Memórias do tempo de Luís XIII e de Luís XIV, da corte da Inglaterra, da rainha da Escócia, da
duquesa de Aumale; e eu imaginava o palácio da princesa de Guermantes como mais ou menos
freqüentado pela duquesa de Longueville e pelo grande Condé, cuja presença tornava bem pouco
verossímil que eu penetrasse ali alguma vez. Muitas coisas que o Sr. de Charlus me dissera
tinham dado uma vigorosa chicotada na minha imaginação e, fazendo-a esquecer o quanto a
realidade a desapontara na casa da duquesa de Guermantes (tanto novos nomes das pessoas
como no dos nomes de lugares), haviam-na empurrado na direção da prima de Oriane. Aliás, o Sr.
de Charlus só me enganou por algum tempo quanto ao valor e à variedade imaginária das
pessoas da alta sociedade, porque ele próprio se enganava. E isso talvez porque não fazia nada,
não escrevia, não pintava, nem mesmo lia de uma forma séria e aprofundada. Mas, superior às
pessoas da alta sociedade em vários graus, se era deles e de seu espetáculo que extraía a
matéria de sua conversação, não era por isso compreendido deles. Falando como artista, podia
quando muito fazer emanar o encanto falacioso das pessoas da alta sociedade. Mas fazer emanar
tão só para os artistas, em relação aos quais pode ele representar o papel de rena entre os
esquimós; este precioso animal arrebatado para eles, sobre as rochas desertas, musgos e líquens
que eles não saberiam descobrir nem utilizar, mas que, uma vez digeridos pelas renas produziam
se para os habitantes do extremo setentrional um alimento assimilável. Ao que eu acrescentarei
que aqueles quadros que o Sr. de Charlus fazia da alta sociedade eram animados de muita vida
pela mistura de ódios ferozes e de suas devotas simpatias. Os ódios dirigidos sobretudo contra as
pessoas jovens, a adoração excitada principalmente por certa mulheres. Se, entre estas, a
princesa de Guermantes era colocada pelo Sr. de Charlus no trono mais elevado, suas
misteriosas palavras sobre "o inacessível palácio de Aladim", que sua prima habitava, não
bastavam para explicar a minha estupefação. Apesar do que se refere aos diversos pontos de
vista subjetivos neles ampliações artificiais de que falarei, não é menos verdadeiro que
experimentei alguma realidade objetiva em todas essas criaturas e, por conseguinte, uma
diferença entre elas.
Aliás, como poderia ser de outro modo? A humanidade que frequentamos e que se
assemelha um pouco aos nossos sonhos é, no entanto, a mesma que, nas Memórias, nas cartas
de pessoas notáveis, vemos descritas e temos desejado conhecer. O velho mais insignificante
com quem jantamos é o mesmo de quem, num livro sobre a guerra de 70, lemos emocionados a
orgulhosa carta ao príncipe Frederico Carlos. Aborrecemo-nos ao jantar porque a imaginação está
ausente e nos distraímos com um livro, pois aí ela nos faz companhia. Mas é das mesmas
pessoas que se trata. Gostaríamos de ter conhecido Madame Pompadour, que tão bem protegeu
as artistas, e tanto nos aborreceríamos a seu lado como junto das modernas Egérias, a cuja casa
não podemos nos decidir a voltar, de tão medíocres que são elas. Nem por isso é menos
verdadeiro que essas diferenças permanecem. As pessoas nunca são inteiramente idênticas
umas às outras, o seu modo de comportar-se a nosso respeito, mesmo em nível igual de amizade,
traz diferenças que afinal servem de compensação. Quando conheci a Sra. de Montmorency, ela
gostava de me dizer coisas desagradáveis, mas, se eu precisava de um favor, ela utilizava, para
obtê-lo com eficiência, todo o crédito que possuía, sem poupar coisa alguma. Ao passo que uma
outra, como a Sra. de Guermantes, jamais desejou desagradar-me, só me dizia coisas que me
dessem prazer, cumulava-se de todas as gentilezas que formavam o rico modo de vida moral dos
Guermantes; mas se eu lhe pedisse uma ninharia além de tudo isso, não teria dado um passo
para consegui-lo, como nesses castelos onde a gente tem à nossa disposição um automóvel, um
lacaio, mas onde é impossível obter um copo de cidra não previsto no arranjo das festas. Qual era
para mim a verdadeira amiga: a Sra. de Montmorency, tão feliz em melindrar-me e sempre
disposta a me servir, ou a Sra. de Guermantes, sofrendo com o menor desagrado que me
causassem e incapaz do menor esforço para me ser útil? Por outro lado, dizia-se que a duquesa
de Guermantes só falava de frivolidades, e sua prima, com o mais medíocre espírito, de coisas
sempre interessantes. As formas de espírito são tão variadas, tão opostas, não só na literatura
mas na sociedade, que não são só Baudelaire e Mérimée que têm o direito de se desprezar
mutuamente. Tais particularidades formam em todas as pessoas um sistema de olhares, de
discursos, de ações, tão coerente, tão despótico, que quando estamos em sua presença parece
nos superior ao resto. Na Sra. de Guermantes, suas palavras, deduzidas como um teorema de
seu gênero de espírito, me pareciam as únicas que se poderiam dizer. E, no fundo, eu era de sua
opinião quando ela me dizia que a Sra. de Montmorency era estúpida e possuía o espírito aberto
a todas as coisas que não compreendia, ou quando, tendo sabido de uma maldade sua, a
duquesa me dizia:
- É isto a que o senhor chama de uma boa mulher; é o que eu chamo de monstro. -
Porém essa tirania da realidade que está diante de nós, essa evidência da luz da lâmpada
que faz empalidecer a aurora já distante como uma simples lembrança desapareciam quando eu
estava longe da Sra. de Guermantes, e uma dama diversa me dizia, pondo-se ao mesmo nível
que eu, e considerando a duquesa muito acima de nós:
- No fundo, Oriane não se interessa por nada, nem por ninguém - e até o que na presença
da Sra. de Guermantes teria parecido impossível de acreditar, tanto que ela mesma proclamava o
contrário:
- Oriane é esnobe. -
Matemática alguma nos permitindo converter a Sra. d'Arpajon e a Sra. de Montpensier em
quantidades homogêneas, era-me impossível responder, caso me perguntassem qual delas se me
afigurava superior à outra. Ora, dentre os traços peculiares ao salão da princesa de Guermantes,
o mais habitualmente citado era um exclusivismo em parte ao nascimento real da princesa, e
sobretudo o rigorismo quase fóssil de preconceitos aristocráticos do príncipe, preconceitos que
aliás o duque e a duquesa não deixavam de ridicularizar na minha presença e que, naturalmente,
devia me fazer considerar como mais inverossímil ainda que convidasse aquele homem para
quem só contavam as Altezas e os duques; e que em todo jantar fazia uma cena porque não
tivera na mesa o lugar que teria tido direito sob Luís XIV, lugar que, graças à sua extrema
erudição em matéria de história e genealogia, era o único a conhecer. Por causa disso, muitas
pessoas da sociedade decidiam em favor do duque e da duquesa as diferenças que os
separavam de seus primos.
- O duque e a duquesa são muito mais modernos, muito mais inteligentes, não se ocupam
apenas, como os outros, com o número de quartéis do escudo, o salão deles está trezentos anos
mais adiantado que o do seu primo! Eram frases costumeiras cuja lembrança me fazia agora
estremecer ao olhar o cartão de convite, ao qual essas frases davam muito mais probabilidades
de ter sido enviado por um mistificador.
Se o duque e a duquesa ainda não houvessem partido para Cannes; eu teria podido
procurar saber por eles se o convite recebido era verdadeiro. Essa dúvida em que me encontrava
não se deve nem mesmo, como por um momento me lisonjeara em acreditar, ao sentimento que
um homem, mundano não experimentaria e que em consequência um escritor, embora
pertencendo além disso à categoria das pessoas da sociedade, deveria reproduzir a fim de ser
bem "objetivo" e pintar diversamente cada classe. De fato, encontrei ultimamente, num encantador
volume de Memórias, o registro de incertezas análogas àquelas pelas quais me fazia passar o
cartão de convite da princesa. "Georges e eu; ou Hely e eu, não tenho o livro à mão para verificar
ardíamos tanto de vontade de sermos admitidos no salão da Sra. Delessert que, tendo dela
recebido um convite, julgamos prudente, cada um por seu lado, assegurarmo-nos que não éramos
vítimas de uma brincadeira." Ora, o narrador não é outro senão o conde d'Haussonville; o que se
casou com a filha do duque de Broglie, e o outro rapaz que, "por seu lado" vai se certificar se não
é objeto de uma mistificação é, conforme se chame Georges ou Hely, um dos dois inseparáveis
amigos do Sr. D'Haussonville; ou Sr. d'Harcourt ou o príncipe de Chalais.
No dia em que deveria ter lugar o sarau na casa da princesa de Guermantes, fiquei
sabendo que o duque e a duquesa estavam de volta à Paris desde a véspera. O baile da princesa
não os teria feito regressar, porém um de seus primos se achava muito enfermo e, além do mais,
o duque fazia muita questão de ir a uma festa que se daria naquela noite e onde ele próprio devia
comparecer fantasiado de Luís XI e sua mulher de Isabel da Baviera. E resolvi ir visitá-los de
manhã. Mas, tendo eles saído muito cedo, ainda não haviam regressado; primeiro fiquei
espreitando a chegada do carro de um pequeno cômodo que julgava ser um bom posto de vigia.
Na realidade, escolhera muito mal o meu observatório, de onde pouco enxergava do nosso pátio,
mas vi diversos outros, o que, sem utilidade para mim, divertiu-me por alguns instantes. Não é
somente em Veneza que dispomos desses pontos de vista sobre várias casas ao mesmo tempo
que têm tentado os pintores, mas igualmente em Paris. Não me refiro a Veneza por acaso. É em
seus bairros pobres que fazem pensar certos bairros pobres de Paris, de manhã, com suas altas
chaminés dilatadas, às quais o sol dá os róseos mais vivos, os mais claros vermelhos; é todo um
jardim que floresce acima das casas, e floresce em matizes tão variados que se diria, plantado
sobre a cidade, o jardim de um amador de tulipas de Delft ou de Haarlem. Além disso, a extrema
proximidade das casas, de janelas opostas, dando para um mesmo pátio, faz ali, de cada
quadrado de janela, a moldura onde uma cozinheira sonha olhando para o chão, ou mais adiante,
uma moça se deixa pentear por uma velha com cara, mal distinta na sombra, de bruxa; assim
cada pátio formava para o vizinho da casa, suprimindo o ruído pela sua distância, deixando ver os
gestos silenciosos por detrás do retângulo envidraçado das janelas, uma exposição de cem
quadros holandeses justapostos. É claro que do palácio de Guermantes não se possuía o mesmo
gênero de vistas, mas sim igualmente curiosas, principalmente do estranho ponto trigonométrico
em que me havia colocado e onde o olhar não era interrompido por nada, por serem muito
íngremes e relativamente vagos os terrenos que precediam as alturas distantes que formavam o
palácio da princesa de Silistrie e da marquesa de Plassac, primas muito nobres do Sr. de
Guermantes, e a quem eu não conhecia. Até esse palácio (que era do pai delas, Sr. de Bréquigny)
não havia senão corpos de edifícios pouco elevados, orientados das mais diversas formas, e que,
sem deter a vista, prolongavam a distância com seus planos oblíquos. O torreão de telhas rubras
da cocheira onde o marquês de Frécourt guardava seus carros bem que terminava numa agulha
mais alta, mas tão delgada que não escondia coisa alguma, e fazia pensar nessas lindas
construções antigas da Suíça que despontam, isoladas, do sopé de uma montanha. Todos esses
pontos, vagos e divergentes, em que os olhos repousam, faziam parecer mais distante do que se
estivesse separado de nós por várias ruas ou numerosos contrafortes o palácio da Sra. de
Plassac, na realidade bem vizinho, mas quimericamente afastado como uma paisagem alpestre.
Quando suas largas janelas quadradas, fulgurantes do sol como lâminas de cristal de rocha, eram
feitas para limpeza, ao seguir nos diferentes andares os lacaios, impor de distinguir muito bem,
mas que batiam tapetes ou passavam os espanadores, sentia-se o mesmo prazer que em
examinar, numa paisagem de Elstir, um viajante em diligência, ou um guia, em diferentes grau
altitude do São Gotardo. Mas, do "ponto de vista" em que me colocava arriscava-me a não ver
voltar o Sr. e a Sra. de Guermantes, de modo que tarde, quando fiquei livre para retomar a minha
espreita, simplesmente coloquei na escada, de onde não me podia passar despercebida a
abertura da porta principal, e foi ali que me postei, embora não mais surgissem, fulgurantes com
seus lacaios tornados minúsculos pelo afastamento e empenhados na limpeza, as belezas
alpestres dos palácios de Bréquig Tresmes. Ora, semelhante espera na escada deveria ter para
mim conseqüências tão consideráveis e revelar-me uma paisagem não mais tumultuada, porém
moral, tão importante que é preferível retardar a narrativa por uns momentos, fazendo-a ser
precedida primeiro pela da visita que fiz aos Guermantes logo que soube que tinham regressado.
Foi o duque somente quem me recebeu na biblioteca. No momento em que entrei, saía um
homenzinho de cabelos completamente brancos, ar pobre, com uma gravata preta como as que
usavam o tabelião de Combray e vários amigos de meu avô, porém de aspecto ainda mais tímido,
e que, fazendo-me grandes cumprimentos, não quis descer enquanto eu não passasse. O duque
gritou da biblioteca alguma coisa que não entendi, e o outro respondeu com os cumprimentos
dirigidos à parede, pois o duque não podia vê-lo, mesmo assim repetidos sem cessar, como esses
inúteis sorrisos de pé as que conversam com a gente por telefone; tinha uma voz de falsete voltou
a cumprimentar-me com a humildade de um homem de negócio bem podia tratar-se de um
negociante de Combray, de tal modo era do provinciano, antiquado e afável da gente humilde, dos
velhos modelos daquelas bandas.
- O senhor verá Oriane dentro em breve - disse o duque, quando entrei. - Como Swann
deve chegar daqui a pouco, trazendo-lhe as preciosas de seu estudo sobre as moedas da Ordem
de Malta e, o que é pior a fotografia imensa onde mandou reproduzir as duas faces dessas
mesma Oriane preferiu vestir-se primeiro, para poder ficar com ele até o momento de ir jantar. Já
estamos atulhados de coisas, a ponto de não saber onde colocá-las, e me pergunto onde vamos
pôr essa fotografia. Mas eu tenho uma mulher muito gentil, que gosta muito de ser agradável.
Achou que era amável pedir a Swann para olhar, uns ao lado dos outros, todos esses grandes
senhores da Ordem, cujas medalhas ele encontrou em Rodes. Pois ele dizia Malta, e é Rodes,
mas é a mesma Ordem de São João de Jerusalém. No fundo, ela só se interessa por isso porque
Swann se ocupa do assunto. Nossa família está muito mesclada a toda essa história; mesmo hoje
em dia, meu irmão, que o senhor conhece, é um dos mais altos dignitários da ordem de Malta.
Mas, por mais que eu tivesse falado de tudo isso a Oriane, ela não teria me dado ouvidos. Em
compensação, bastou que as pesquisas de Swann sobre os Templários (pois é incrível o
empenho das pessoas de uma religião em estudar a dos outros) o tenha conduzido à história dos
Cavaleiros de Rodes, herdeiros dos Templários, para que logo Oriane quisesse ver as cabeças
desses cavaleiros. Eles eram bem insignificantes em comparação com os Lusignan, reis de
Chipre, de que descendemos em linha direta. Mas até agora Swann não se ocupou deles, e assim
Oriane não quer saber nada sobre os Lusignan. -
Não pude falar imediatamente ao duque sobre o motivo da minha visita. Com efeito,
algumas parentas ou amigas, como a Sra. de Silistrie e a duquesa de Montrose, tinham vindo
fazer uma visita à duquesa que frequentemente recebia antes do jantar, e, não a encontrando,
ficaram por um instante com o duque. A primeira dessas damas (a princesa de Silistrie), trajada
com simplicidade, seca porém de aspecto amável, segurava uma bengala na mão. A princípio,
receei que estivesse machucada ou fosse doente. Pelo contrário, mostrava-se bem ágil. Falou
com tristeza ao duque sobre um primo-irmão dele não do lado dos Guermantes, porém mais
brilhante ainda, se possível-, cujo estado de saúde, muito abalado desde algum tempo, agravara
se de repente. Mas era visível que o duque, mesmo compadecendo-se da sorte de seu primo e
repetindo: - Pobre Mamá! É um bom rapaz -, formava um diagnóstico favorável.
continua na página 255...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Mudei de assunto)
Volume 7
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