sábado, 25 de outubro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Segundo - O velho burguês / VI - Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

VI - Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos
     
     Em casa de Gillenormand manifestava-se a dor por meio de cólera; o velho burguês enfurecia-se por se sentir desamparado. Tinha toda a espécie de preconceitos e permitia-se toda a qualidade de licenças. Uma das coisas que compunha o seu relevo exterior e satisfação íntima, era como acabámos de indicar, ter-se conservado galanteador e passar energicamente por tal; chamava a isto «fama real». Esta fama real dava-lhe às vezes singulares proventos. Um dia levaram-lhe a casa num cesto oval, como um presente de ostras, um robusto rapaz recém-nascido, gritando como um desesperado, e devidamente embrulhado nos cueiros, o qual lhe era atribuído por uma criada despedida seis meses antes. Gillenormand tinha então os seus oitenta anos feitos. Houve indignação e clamores entre os que o rodeavam.

— A quem esperava aquela descarada fazer acreditar semelhante coisa? Que audácia! Que abominável calúnia!

      O senhor Gillenormand, pela sua parte, não mostrou o menor enfado. Olhou para o pequerrucho com o amável sorriso de um bom homem lisonjeado pela calúnia e disse aos que gritavam:

— Mas então que é? Que há nisto de extraordinário? Estão mostrando um espanto só próprio de pessoas ignorantes. O senhor duque de Angoulême, bastardo de Sua Majestade Carlos IX, casou-se aos oitenta e cinco anos com uma sirigaita de quinze; o senhor Firginal, marquês de Alluye e irmão do cardeal de Sourdis, arcebispo de Bordéus, de oitenta e três anos, teve de uma aia da senhora presidente Jacquin, um filho, um verdadeiro filho de amor, que foi cavalheiro de Malta e conselheiro de estado de espada; um dos grandes homens deste século, o abade Tabaraud, é filho de um homem de oitenta e sete anos. Estas coisas são vulgaríssimas. E a Bíblia! Para dizer: declaro que não me pertence este pequeno, é necessário muito cuidado.

     A culpa não é dele. O procedimento era benigno.
      A tal criatura que se chamava Magnon, fez-lhe no ano seguinte idêntico presente. Era outro rapaz. Desta vez, o senhor Gillenormand capitulou. Remeteu à mãe os dois pequenos, obrigando-se a pagar para a sua criação oitenta francos por mês, com a condição de que a dita mãe não continuasse a obsequiá-lo. E acrescentou:

 — Espero que a mãe os trate bem. De tempos a tempos irei vê-los.

     E não faltou ao que prometeu. Gillenormand tivera um irmão padre, que fora durante trinta e três anos, reitor da academia de Poitiers, e que morrera com setenta e nove anos. Perdi-o muito moço, dizia ele. Este irmão, de que ficou muito pouca memória, era um pacífico avarento, que, julgando-se obrigado, por ser padre, a dar esmola aos pobres que encontrava, mas não lhes dando nunca senão dinheiro em cobre já sem curso, verdadeiras chapas, descobrindo assim meio de ir para o inferno pelo caminho do paraíso. Quanto a Gillenormand, esse não regateava nunca a esmola, e dava-a espontânea e nobremente. Era benévolo, arrebatado, caritativo e, se fosse rico, as suas tendências seriam sempre para a magnificência.
    Queria que tudo o que lhe dizia respeito fosse feito com grandeza, até mesmo os roubos de que era vítima.
     Um dia, tratando-se de uma herança, e tendo sido espoliado por um procurador, de modo grosseiro e visível, soltou esta solene exclamação:

— Fora com ele, que foi porco! Tenho realmente vergonha de tais ladroeiras. Neste século tudo tem degenerado, até os tratantes. Com a fortuna! Não é assim que se deve roubar um homem como eu. Fui roubado como numa estrada, mas mal roubado. Silvae sint consulte dignae!

     Tivera como dissemos, duas mulheres; a primeira dera-lhe uma filha que se conservara solteira, e a segunda uma outra que falecera aos trinta anos e que desposara, por amor ou por acaso, um soldado de fortuna, que servira nos exércitos da república e do império, que tinha a cruz de Austerlitz e que fora promovido a coronel em Waterloo. É a vergonha da minha família, dizia o velho burguês.
      Tomava muito rapé e tinha uma graça particular no modo porque sacudia os bofes de renda, com as costas da mão. A sua crença em Deus era pouco ardente.

continua na página 453...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Segundo - VI - Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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