Victor Hugo - Os Miseráveis
Terceira Parte - MárioLivro Segundo — O velho burguês
VI - Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos
Em casa de Gillenormand manifestava-se a dor por meio de cólera; o velho burguês
enfurecia-se por se sentir desamparado. Tinha toda a espécie de preconceitos e
permitia-se toda a qualidade de licenças. Uma das coisas que compunha o seu relevo
exterior e satisfação íntima, era como acabámos de indicar, ter-se conservado
galanteador e passar energicamente por tal; chamava a isto «fama real». Esta fama real
dava-lhe às vezes singulares proventos. Um dia levaram-lhe a casa num cesto oval, como
um presente de ostras, um robusto rapaz recém-nascido, gritando como um
desesperado, e devidamente embrulhado nos cueiros, o qual lhe era atribuído por uma
criada despedida seis meses antes. Gillenormand tinha então os seus oitenta anos feitos.
Houve indignação e clamores entre os que o rodeavam.
— A quem esperava aquela descarada fazer acreditar semelhante coisa? Que audácia!
Que abominável calúnia!
O senhor Gillenormand, pela sua parte, não mostrou o menor enfado. Olhou para o
pequerrucho com o amável sorriso de um bom homem lisonjeado pela calúnia e disse
aos que gritavam:
— Mas então que é? Que há nisto de extraordinário? Estão mostrando um espanto só
próprio de pessoas ignorantes. O senhor duque de Angoulême, bastardo de Sua
Majestade Carlos IX, casou-se aos oitenta e cinco anos com uma sirigaita de quinze; o
senhor Firginal, marquês de Alluye e irmão do cardeal de Sourdis, arcebispo de Bordéus,
de oitenta e três anos, teve de uma aia da senhora presidente Jacquin, um filho, um
verdadeiro filho de amor, que foi cavalheiro de Malta e conselheiro de estado de
espada; um dos grandes homens deste século, o abade Tabaraud, é filho de um homem
de oitenta e sete anos. Estas coisas são vulgaríssimas. E a Bíblia! Para dizer: declaro que
não me pertence este pequeno, é necessário muito cuidado.
A culpa não é dele. O procedimento era benigno.
A tal criatura que se chamava Magnon, fez-lhe no ano seguinte idêntico presente. Era
outro rapaz. Desta vez, o senhor Gillenormand capitulou. Remeteu à mãe os dois
pequenos, obrigando-se a pagar para a sua criação oitenta francos por mês, com a
condição de que a dita mãe não continuasse a obsequiá-lo. E acrescentou:
— Espero que a mãe os trate bem. De tempos a tempos irei vê-los.
E não faltou ao que prometeu. Gillenormand tivera um irmão padre, que fora durante
trinta e três anos, reitor da academia de Poitiers, e que morrera com setenta e nove
anos. Perdi-o muito moço, dizia ele. Este irmão, de que ficou muito pouca memória, era
um pacífico avarento, que, julgando-se obrigado, por ser padre, a dar esmola aos pobres
que encontrava, mas não lhes dando nunca senão dinheiro em cobre já sem curso,
verdadeiras chapas, descobrindo assim meio de ir para o inferno pelo caminho do
paraíso. Quanto a Gillenormand, esse não regateava nunca a esmola, e dava-a
espontânea e nobremente. Era benévolo, arrebatado, caritativo e, se fosse rico, as suas
tendências seriam sempre para a magnificência.
Queria que tudo o que lhe dizia respeito fosse feito com grandeza, até mesmo os
roubos de que era vítima.
Um dia, tratando-se de uma herança, e tendo sido espoliado por um procurador, de
modo grosseiro e visível, soltou esta solene exclamação:
— Fora com ele, que foi porco! Tenho realmente vergonha de tais ladroeiras. Neste
século tudo tem degenerado, até os tratantes. Com a fortuna! Não é assim que se deve
roubar um homem como eu. Fui roubado como numa estrada, mas mal roubado. Silvae
sint consulte dignae!
Tivera como dissemos, duas mulheres; a primeira dera-lhe uma filha que se
conservara solteira, e a segunda uma outra que falecera aos trinta anos e que desposara,
por amor ou por acaso, um soldado de fortuna, que servira nos exércitos da república e
do império, que tinha a cruz de Austerlitz e que fora promovido a coronel em Waterloo.
É a vergonha da minha família, dizia o velho burguês.
Tomava muito rapé e tinha uma graça particular no modo porque sacudia os bofes de
renda, com as costas da mão. A sua crença em Deus era pouco ardente.
continua na página 453...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Segundo - VI - Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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