Germinal
Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Terceira Parte
II
Era o último domingo de julho, dia da festa do padroeiro de Montsou. No sábado, à noite, as boas donas de casa do conjunto habitacional tinham lavado as suas salas com grandes quantidades de água, um dilúvio de baldes jogados um atrás do outro nas lajes do chão e pelas paredes. E até agora os soalhos não tinham secado, apesar da grande quantidade de areia branca espargida, luxo dispendioso para aquelas bolsas de pobre. O dia, no entanto, anunciava-se muito quente, de céu pesado, prenunciando uma dessas tempestades que no verão costumam abater-se sobre os campos do norte, rasos e áridos até o infinito.
Na casa dos Maheu, o domingo mudava a hora do despertar. O pai,
a partir das cinco horas, não podia mais ficar na cama, e vestia-se para sair;
os filhos dormiam até às nove, usufruindo as delícias de feriado. Naquele
dia, Maheu foi fumar seu cachimbo no jardim, mas acabou voltando para
dentro de casa para comer uma fatia de pão com manteiga enquanto
esperava. E assim foi passando a manhã, meio desarvorado; consertou a tina
que estava furada, colou por baixo do cuco um retrato do príncipe imperial
que tinham dado aos garotos. Nesse momento os outros começaram a
descer. O velho Boa-Morte levou uma cadeira para fora e sentou-se ao sol, a
mãe e Alzire começaram logo a tratar da cozinha, Catherine surgiu, tendo à
frente Lénore e Henri, que acabava de vestir. Deram onze horas, o cheiro de
coelho com batata já enchia a casa, quando desceram finalmente Zacharie e
Jeanlin, de olhos inchados de tanto dormir, e ainda bocejando.
O conjunto habitacional estava em polvorosa, preparando-se para a
festa, esperando a hora do jantar, que queria ver chegar logo, para, em
seguida, dirigir-se em turba para Montsou.
Bandos de crianças corriam em alvoroço, homens em mangas de
camisa arrastavam chinelos, na lassidão característica dos dias de repouso.
As janelas e as portas, abertas de par em par para deixar entrar o estio,
davam para salas transbordantes de gestos e gritos, fervilhantes de famílias.
E de um extremo a outro das fachadas pairava o aroma de coelho, a
fragrância de cozinha rica que combatia naquele dia o persistente odor de
cebola frita.
Os Maheu comeram ao meio-dia em ponto. Não faziam muita
algazarra em comparação com os falatórios em curso nas outras portas, com
as discussões de vizinhas que resultavam numa troca permanente de
perguntas e respostas, de objetos emprestados e crianças postas para fora ou
trazidas para dentro de casa a palmadas. Aliás, havia três semanas que mal
falavam com os Levaque, por causa do casamento de Zacharie com
Philomène. Os homens mantinham relações, mas as mulheres faziam que
não se conheciam. Este caso servira para estreitar as relações com a mulher
de Pierron. Esta, no entanto, partira muito cedo para passar o dia na casa de
uma prima em Marchiennes, deixando o marido e Lydie aos cuidados da
mãe. O fato foi motivo de muita maledicência; todos sabiam bem quem era
a prima: tinha bigode e um emprego de capataz na Voreux. A mulher de
Maheu declarou ser imoral deixar a família num dia de festa.
Além do coelho com batatas, o qual haviam cevado durante um mês
na coelheira, os Maheu tinham sopa gorda e carne de vaca. 0 pagamento da
quinzena fora justamente na véspera. Até já tinham esquecido o gosto de
tais manjares. Mesmo na última Santa Bárbara, a festa dos mineiros, em que
eles não trabalham por três dias, o coelho não fora nem tão gordo, nem tão
tenro. Assim, aqueles dez pares de mandíbulas, desde a pequena Estelle,
cujos dentes começavam a nascer, até o velho Boa-Morte, que perdia os
seus, trabalhavam com tal afinco que até os ossos desapareciam. Como era
bom comer carne! A pena é que a digeriam mal, tão raramente a viam.
Devoraram tudo, não sobrou mais que um pouco de cozido para a noite.
Comê-lo-iam com pão, se tivessem fome.
Jeanlin foi o primeiro a desaparecer. Bébert esperava-o atrás da
escola. Vagaram por muito tempo antes de conseguir arrancar Lydie, que a
Queimada queria reter em casa, decidida a não a deixar sair. Quando se deu
conta da fuga da menina, começou a agitar seus braços descarnados,
enquanto Pierron, farto de brigas, foi dar um passeio com a calma do
marido que se diverte sem remorsos, sabendo que também sua mulher passa
momentos agradáveis.
O velho Boa-Morte partiu em seguida e Maheu decidiu tomar ar,
depois de ter perguntado à mulher se iria ter com ele. Não, respondeu ela,
com as crianças seria uma trabalheira. Mas talvez sim... refletiria,
acabariam por encontrar-se. Fora, Maheu hesitou por um instante antes de
entrar na casa dos vizinhos para ver se Levaque já estava pronto. Lá estava
Zacharie à espera de Philomène, e a mãe desta voltou a repisar no eterno
assunto do casamento, gritou que estavam fazendo troça dela, que teria de
procurar a futura sogra da filha e pedir uma explicação definitiva. Então era
vida a sua, cuidando dos rebentos de uma filha solteira que só pensava nas
farras com o amante?
Tendo Philomène tranquilamente acabado de enfiar sua touca,
Zacharie puxou-a para fora, repetindo que estava pronto a casar, se sua mãe
permitisse. E, como Levaque já escapulira, Maheu disse à vizinha que fosse
falar com sua mulher e apressou-se em sair. Bouteloup, que dava cabo de
um pedaço de queijo, com os cotovelos na mesa, recusou obstinadamente a
oferta amistosa de uma cerveja. Ficava em casa, como marido exemplar que
era.
Pouco a pouco, o conjunto habitacional se esvaziava. Todos os
homens estavam partindo, uns após outros, enquanto as moças, espreitando
nas portas, seguiam para o lado oposto, pelo braço dos namorados. Assim
que o pai dobrou a esquina da igreja, Catherine correu para Chaval, que a
esperava, e tomaram juntos o caminho de Montsou. A mãe, sozinha no
meio das crianças às soltas, não se sentia com forças para deixar a cadeira.
Encheu outro copo de café escaldante e bebeu-o aos golinhos.
Agora só havia mulheres no conjunto habitacional, mulheres que se
visitavam para beber as últimas gotas de café deixadas na cafeteira, em
volta das mesas ainda quentes e engorduradas da refeição.
Maheu supunha que Levaque estava no Avantage e para lá se
dirigiu, sem a menor pressa. Realmente, por trás da casa, no estreito jardim
rodeado de uma sebe, Levaque jogava boliche com alguns camaradas. Em
pé, sem jogar, os velhos Boa-Morte e Mouque seguiam tão interessados a
bola que nem se lembravam de trocar palavra. Caía a prumo um sol
abrasador, não havia mais que uma faixa de sombra ao longo da taberna, e
ali se encontrava Etienne, sentado a uma mesa, bebendo sua cerveja,
irritado porque Suvarin acabava de deixá-lo para subir ao quarto. Quase
todos os domingos o mecânico se isolava, para escrever ou ler.
— Jogas? — perguntou Levaque a Maheu.
Este não quis. Tinha muito calor, estava morrendo de sede.
— Rasseneur! — gritou Etienne. — Uma cerveja, por favor.
E voltando-se para Maheu:
— És meu convidado.
Agora todos já se tratavam por tu. Rasseneur não tinha pressa,
chamaram-no três vezes, e foi a mulher quem trouxe a cerveja morna. O
rapaz tinha baixado a voz para se queixar da casa: boa gente, sem dúvida,
com boas ideias, mas a cerveja não valia nada e a sopa era detestável. Já
teria mudado de pensão umas dez vezes se não fosse a caminhada que teria
de dar até Montsou. Um dia desses procuraria um quarto numa casa do
conjunto habitacional.
— Claro, claro — repetiu Maheu com sua voz lenta. — Estarias
melhor com uma família.
De repente houve uma gritaria: Levaque derrubara todos os paus de
uma só vez. Mouque e Boa-Morte, de olhos no chão, observavam um
silêncio de profunda aprovação no meio do tumulto. A alegria de tal jogada
transbordou em brincadeiras, sobretudo quando os jogadores perceberam
por cima da cerca o rosto alegre da filha de Mouque. Já rondava por ali
havia uma hora e ousara aproximar-se ao ouvir risos.
— Como é isso? Andas sozinha? — gritou Levaque. — E os teus
namorados?
— Mandei passear todos eles — respondeu a moça com um
descaramento cheio de alegria. — Ando em busca de um.
Todos se ofereceram, gritaram-lhe gracejos picantes. Ela recusava
com a cabeça, ria às gargalhadas, soltava piadas. Seu pai, impassível,
assistia a tudo isso sem mesmo tirar os olhos dos paus derrubados.
— Ora, minha filha, já sabemos bem quem é que tu cobiças - disse
Levaque olhando para Etienne. — Terás que pegá-lo à força.
Etienne riu. De fato, era atrás dele que a operadora de vagonetes
andava. Apesar de divertir-se com a ideia, não queria, não sentia a menor
atração pela moça.
Ela ficou ainda alguns minutos olhando fixamente para o rapaz por
cima da cerca, retirando-se em seguida num passo lento, subitamente séria,
como que oprimida pelo peso do sol.
Etienne retomou as explicações dadas a meia voz para Maheu sobre
a necessidade da criação de uma caixa de previdência entre os mineiros de
Montsou.
— Uma vez que a companhia afirma que nos dá liberdade —
continuou ele —, nada temos a recear. Só temos as pensões que ela, aliás,
distribui a seu bel-prazer com a desculpa de não fazer descontos. Pois bem,
seria prudente criar, livre da interferência dela, uma associação de socorro
mútuo, com a qual pudéssemos contar pelo menos nos casos de necessidade
imediata.
Explicou tudo em detalhes, discutiu a organização, prometeu tomar
todo o trabalho sobre si.
— Por mim aceito — disse enfim Maheu, convencido. — Os outros
é que são o problema. Trata de convencê-los.
Levaque ganhara a partida; abandonaram o jogo para esvaziar os
copos. Maheu não quis beber outro: talvez mais tarde, o dia ainda não
terminara. Lembrou-se de Pierron; por onde andaria? Sem dúvida no café
L'Enfant. Convenceu Etienne e Levaque a irem com ele para Montsou no
momento em que outro grupo invadia o boliche do Avantage.
A caminho, já na estrada de Montsou, tiveram de entrar no Casimir
e no Progrès. Camaradas os chamavam lá de dentro, não havia como dizer
não. De cada vez bebiam uma cerveja, ou duas, tinham a delicadeza de
retribuir. Não ficavam mais do que dez minutos, trocavam quatro palavras e
recomeçavam mais adiante, muito sensatos, conhecendo a cerveja, que
podiam beber à vontade, sem outro inconveniente que o de uriná-la em
seguida — à medida que a tomavam —, clara como água de fonte.
No café L'Enfant encontraram Pierron, que estava acabando eu
segundo copo e, para não se recusar ao brinde, entornou um terceiro. Eles,
claro está, também beberam. Agora, que eram quatro, saíram com o projeto
de encontrar Zacharie, que deveria estar no Tison. A sala estava vazia e
pediram cervejas, para beberem enquanto o esperavam. Em seguida
lembraram-se do café Saint-Éloy, onde aceitaram uma rodada do
contramestre Richomme. Daí por diante não mais procuraram pretextos
para entrar em todos os cafés; queriam divertir-se.
— Vamos ao Volcan! — disse de repente Levaque, que começava a
pegar fogo.
Os outros hesitaram, riram e acabaram acompanhando o camarada
por entre a balbúrdia crescente da festa popular. Na sala estreita e comprida
do Volcan, sobre um estrado de tábuas erguido ao fundo, cinco cantoras, o
rebotalho das prostitutas de Lille, desfilavam com gestos e decotes
absurdos. E os fregueses davam dez soldos quando queriam possuir uma
delas atrás das tábuas do estrado. Quem ia lá eram sobretudo operadores de
vagonetes, ascensoristas, até mineiros de catorze anos, toda a rapaziada das
minas, e que bebiam mais genebra que cerveja. Alguns mineiros velhos
também se arriscavam, os maridos que gostavam de dar as suas escapadas
dos conjuntos habitacionais, aqueles cujos lares viviam imundos.
Assim que conseguiram uma pequena mesa e se sentaram, Etienne
apoderou-se de Levaque para lhe explicar o seu plano de uma caixa de
previdência. Tinha a obstinação dos neófitos que se outorgam uma missão.
— Cada membro — começou ele — poderia muito bem dar vinte
soldos por mês. Com esses vinte soldos acumulados teríamos em quatro ou
cinco anos um pecúlio. O dinheiro faz a força, não é isso? Em qualquer
ocasião... Hem? que dizes disto?
— Não digo que não — respondeu Levaque distraído. — Depois
falaremos.
Uma loura enorme o excitava; insistiu em ficar quando Maheu e
Pierron, após terem bebido suas cervejas, quiseram partir sem esperar por
outra canção.
Na rua, Etienne, que saíra com eles, encontrou novamente a filha de
Mouque, que parecia tê-los seguido. Continuava a fitá-lo, rindo sempre, de
coração aberto, como se estivesse dizendo: Queres?" O rapaz gracejou e
deu de ombros. Ela fez então um gesto de cólera e perdeu-se na multidão.
— Onde está Chaval? — perguntou Pierron.
— É verdade, onde andará? — disse Maheu. — Certamente no
Piquette... Vamos até lá.
continua na página 132...
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Terceira Parte - (II.a) Era o último domingo de julho
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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