Germinal
Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Terceira Parte
I
No dia seguinte, e nos que vieram depois, Etienne continuou trabalhando na mina. Ia-se acostumando, regulava sua existência pelo trabalho e pelos novos hábitos que, a princípio, tinham parecido tão duros. Uma única aventura quebrou a monotonia da primeira quinzena, uma febre passageira que o reteve na cama com os membros alquebrados, a cabeça fervendo, povoada de incoerências, uma espécie de semidelírio no qual empurrava seu vagonete para o fundo de uma passagem muito estreita onde ficava entalado Era simplesmente a estafa do aprendizado, um excesso de fadiga de que se restabeleceu logo.
E assim passaram dias, semanas, meses. Agora, já na rotina
levantava-se às três horas, bebia café e carregava consigo o sanduíche duplo
que a mulher de Rasseneur preparava na véspera. Regularmente, indo para a
mina, encontrava o velho Boa-Morte, que deixava o trabalho, e ao sair, de
tarde, cruzava com Bouteloup, que iniciava seu turno. Como os outros,
tinha o seu pano para amarrar na cabeça suas calças e jaqueta de trabalho,
tiritava e aquecia as costas no fogão do vestiário. Depois vinha a espera,
descalço, na recepção entrecortada por violentas correntes de ar. Mas a
máquina de grossos membros de aço enfeitados de cobre, luzindo lá em
cima no escuro, não o atemorizava mais, nem os cabos a pique voltejando
como asas negras e silentes de pássaro noturno, nem os elevadores
emergindo e mergulhando sem descanso em meio ao barulhão dos sinais,
das ordens bradadas, dos vagonetes estremecendo o chão de ferro. Sua
lâmpada iluminava mal, o maldito lanterneiro seguramente não a limpara...
Ele só despertava realmente quando o jovem Mouque os empurrava para
dentro do elevador com grande estardalhaço dando palmadas retumbantes
nos traseiros das moças. O ascensor desprendia-se, caindo como uma pedra
num poço, sem que ele sequer virasse a cabeça para ver a luz
desaparecendo. Jamais pensava na possibilidade de uma queda, sentia-se
em casa à medida que afundava nas trevas sob a chuvada violenta.
Embaixo, na expedição, assim que Pierron abria as portas do elevador com
seu ar hipócrita de humildade, era sempre o mesmo tropel de rebanho, os
grupos partindo para os seus filões a passo arrastado. Agora, ele já conhecia
melhor as galerias da mina do que as ruas de Montsou, sabia onde tinha que
dobrar, onde abaixar-se ou evitar mais adiante uma poça. Habituara-se tanto
àqueles dois quilômetros subterrâneos que poderia percorrê-los sem
lanterna com as mãos nos bolsos. E todos os dias eram os mesmos
encontros, um contramestre iluminando na passagem o rosto dos operários,
o velho Mouque puxando um cavalo, Bébert guiando Batalha aos relinchos,
Jeanlin correndo atrás dos vagonetes e fechando as portas de ventilação, a
rotunda filha de Mouque e a magricela Lydie empurrando seus carros...
Com o tempo, Etienne começou a acostumar-se à umidade e ao
abafamento do filão onde trabalhava. O respiradouro já lhe parecia fácil de
subir, como se tivesse encolhido e pudesse agora passar por fendas onde
antes não teria ousado enfiar a mão. Respirava sem dificuldade a poeira do
carvão, via muito bem no escuro, suava tranquilamente, adaptado à
sensação das roupas molhadas colando-se ao corpo da manhã à noite. E
mais, já não gastava inutilmente suas forças, adquirira rapidamente uma
destreza que espantava os companheiros. Ao cabo de três semanas era
citado entre os bons operadores de vagonetes da mina: ninguém melhor do
que ele rodava seu vagonete até o plano inclinado embalando-o a seguir
com tanta correção. Sua pequena estatura lhe permitia entrar em qualquer
lugar, seus braços, apesar de brancos e finos como de mulher, pareciam de
ferro sob a delicadeza da pele, tanta força punham no trabalho. Nunca se
queixava, sem dúvida por orgulho, mesmo quando já não podia mais de
tanto cansaço. Acusavam-no apenas de não saber brincar, ficava logo todo
eriçado assim que alguém lhe fazia uma piada. Com o tempo acabou sendo
aceito e olhado como um verdadeiro mineiro, escravizado pelo hábito que o
reduzia um pouco cada dia à função de máquina.
Maheu, sobretudo, tomara-se de amizade por Etienne, porque
respeitava o trabalho bem feito. E, assim como os outros, ele sentia que esse
rapaz tinha uma instrução superior à sua: via-o lendo, escrevendo,
rabiscando planos, ouvia-o falar de coisas das quais ignorava até a
existência. Isso não era de admirar, os carvoeiros são homens rudes, têm a
cabeça mais dura que os mecânicos, mas o que o surpreendia era a coragem
daquele rapazola, a maneira intrépida com que se atirava ao carvão para não
morrer de fome. Era o primeiro operário de ocasião que se aclimatava tão
rapidamente. Assim, quando o corte estava atrasado e não queria deslocar
um britador, encarregava o rapaz do estaqueamento, certo da limpeza e
solidez do trabalho. Os chefes estavam sempre em cima dele, azucrinando-o
com esse maldito problema do revestimento, temia ver aparecer a qualquer
momento o engenheiro Négrel, seguido de Dansaert, gritando, discutindo,
fazendo recomeçar tudo de novo. Notara que o trabalho de estaqueamento
do seu operador de vagonetes satisfazia muito mais a esses senhores que o
dos outros, apesar dos seus ares de nunca estarem contentes e de repetirem
que a companhia, mais dia menos dia, tomaria uma atitude radical. As
coisas estavam nesse pé, um descontentamento surdo fermentava na mina, o
próprio Maheu, tão calmo, andava de punhos cerrados.
No começo houvera muita rivalidade entre Zacharie e Etienne. Uma
noite quase chegaram a vias de fato, mas o primeiro, de boa índole e
disposto apenas a gozar a vida, voltou logo às boas diante do oferecimento
de uma cerveja, vendo-se obrigado a reconhecer a superioridade do
forasteiro. Até Levaque desanuviara o semblante e conversava sobre
política com o operador de vagonetes, que, segundo ele, era cheio de ideias.
Entre os homens da empreitada, o único que Etienne não tragava era o
latagão do Chaval; não que tivessem discutido, ao contrário, eram até bons
camaradas, mas quando brincavam um com o outro notava-se a divergência
fundamental que os separava, seus olhos eram como labaredas. Catherine,
entre eles, voltara ao seu trem de vida de moça cansada e resignada,
vergando o dorso empurrando seu vagonete, sempre amável com seu
companheiro de transporte, que a ajudava quando podia, e por outro lado
submissa aos desejos do amante, de quem recebia abertamente as carícias.
Era uma situação aceita, um casal de fato sobre o qual a própria família
fechava os olhos, e isso a tal ponto que Chaval levava a operadora de
vagonetes para trás do aterro todas as noites e depois a conduzia até a porta
de casa, beijando-a uma última vez diante de todo o conjunto habitacional.
Etienne, que já se acreditava totalmente resignado, provocava-a
falando dos seus passeios noturnos, soltando palavrões de brincadeira,
como fazem rapazes e moças no fundo dos veios. Ela respondia-lhe no
mesmo tom, dizia, por fanfarronice, o que o amante lhe tinha feito, mas
trêmula e pálida ao encontrar os olhos do rapaz nos seus. Desviavam então
o rosto, ficavam às vezes uma hora sem dizer palavra, como que se odiando
por coisas que guardavam dentro de si e sobre as quais não conseguiam
explicar-se.
Chegara a primavera. Um dia, saindo do poço, Etienne recebera no
rosto a aragem tépida de abril, um cheiro bom de terra nova, de verdura
tenra e ar puro. E agora, a cada saída do poço, notava que a primavera era
cada vez mais perfumada e tépida após as suas dez horas de trabalho no
eterno inverno da mina, no meio das trevas úmidas que nenhum verão
conseguia dissipar. Os dias eram mais longos; em maio, desceu ao poço ao
nascer do sol, com um céu rosicler aspergindo sobre a Voreux uma poeira
de aurora à qual se misturava, subindo, o branco vapor dos escapes... Já não
se tiritava mais, um sopro tépido vinha dos confins da planície e, lá no alto,
as cotovias cantavam. Depois, às três horas, havia o deslumbramento do sol
abrasador que incendiava o horizonte e fazia dardejar os tijolos sob a crosta
de carvão. Em junho, os trigais já crescidos eram de um verde-azulado que
se destacava sobre o verde-escuro das plantações de beterraba; um mar
imenso, ondulando à menor aragem, que ele via estender-se e crescer de um
dia para outro e o surpreendia às vezes, quando, ao sair da mina, pressentia
o ainda mais túrgido de verdura do que pela manhã. Os choupos do canal
empenachavam-se de folhas, ervas invadiam o aterro, flores cobriam os
prados, uma vida completa germinava, brotava dessa terra sob a qual, lá no
fundo, ele gemia de miséria e cansaço.
Agora, quando ao anoitecer Etienne fazia o seu passeio, não era
mais atrás do aterro que assustava os namorados. Seguia na esteira deles
pelos trigais e ali descobria seus ninhos de aves lascivas sob o farfalhar das
espigas amadurecendo e das grandes papoulas vermelhas. Para lá voltaram
Zacharie e Philomène, como um casal torna ao lar. A velha Queimada,
sempre nos calcanhares de Lydie, ia ali desaninhá-la a todo instante — a ela
e a Jeanlin — tão profundamente entrincheirados que para fazê-los abalar
tinha de pisá-los. Quanto à filha de Mouque, qualquer lugar servia; não se
podia atravessar uma plantação sem ver a cabeça dela mergulhando, de
pernas para o alto, em decúbito dorsal. Mas todos esses podiam fazer o que
quisessem, não se importava; para Etienne, os únicos que achava imorais
eram Catherine e Chaval.
Duas vezes os vira quando, ao aproximar-se, esconderam-se num
trigal cujas hastes logo ficaram imóveis, como mortas. Outra vez, seguindo
por uma senda estreita, os olhos claros de Catherine surgiram ao nível do
trigo, desaparecendo em seguida. Nessas ocasiões, a planície imensa
parecia-lhe pequena demais, preferia passar sua noite em casa de Rasseneur,
no Avantage.
— Sra. Rasseneur, uma cerveja, por favor... Não, hoje não saio,
estou com as pernas alquebradas.
E voltando-se para um camarada que tinha por hábito sentar à mesa
do fundo, com a cabeça encostada na parede, perguntava:
— Aceitas uma, Suvarin?
— Obrigado, não, não quero.
Etienne travara conhecimento com Suvarin porque ambos moravam
ali. Era um mecânico da Voreux que ocupava no primeiro andar um quarto
mobiliado, vizinho ao seu. Devia ter uns trinta anos, era magro, louro, de
fisionomia fina emoldurada por vasta cabeleira e barba rala. Seus dentes
brancos e pontiagudos, sua boca e nariz delicados e o corado das faces
davam-lhe um aspecto de mulher, um ar de doçura teimosa que o reflexo
cinza dos olhos de aço percorria em cintilações selvagens. No seu quarto de
operário pobre tinha apenas uma caixa cheia de papéis e livros. Era russo,
nunca falava de si, não se importava com as lendas que corriam a seu
respeito. Os mineiros, muito desconfiados com estrangeiros, pressentindo-o
de outra classe devido a suas mãos pequenas, de burguês, a princípio tinham
imaginado uma aventura, um assassinato de cujo castigo fugia. Depois,
como ele se mostrasse sempre tão fraternal com todos, distribuindo à
garotada do conjunto habitacional todas as moedas que trazia no bolso,
passaram a aceitá-lo, tranquilizados pelo boato corrente de que era um
refugiado político, boato não confirmado, mas em que encontravam uma
desculpa, mesmo para o crime, adotando-o assim como um companheiro de
sofrimentos.
Nas primeiras semanas, Etienne achara-o extremamente reservado,
não tendo conhecido senão mais tarde toda a sua história. Suvarin era o
último rebento de uma família nobre do governo de Tula. Em São
Petersburgo, onde estudava medicina, a paixão socialista que inflamava
então toda a juventude russa convencera-o a aprender um ofício manual, o
de mecânico, para estar assim junto ao povo, conhecê-lo e ajudá-lo como
irmão. E agora era desse ofício que vivia, depois de ter fugido, em seguida,
a um atentado malogrado contra a vida do imperador. Durante um mês
vivera na adega de um fruteiro, cavando uma galeria por baixo da rua,
carregando bombas, sob a contínua ameaça de voar pelos ares com a casa.
Renegado pela família, sem dinheiro, posto como estrangeiro no índex das
indústrias francesas, que viam nele um espião, morria de fome quando
finalmente a companhia de Montsou o empregara num momento de aperto.
Havia um ano que trabalhava ali como bom operário, sóbrio, silencioso,
uma semana no turno do dia, outra semana no da noite, tão pontual que os
chefes o citavam como exemplo.
— Como é, nunca tens sede? — perguntou-lhe Etienne, rindo.
Ele respondeu com voz macia, quase sem sotaque:
— Só quando como...
Etienne gostava de brincar com ele a respeito das mulheres; jurava
tê-lo visto com uma operadora de vagonetes nos trigais para os lados dos
Bas-de-Soie. O russo então encolhia os ombros, numa indiferença tranquila.
Uma operadora de vagonetes, para quê? A mulher, para ele, era como um
rapaz, um camarada, quando possuía a coragem e a fraternidade do homem.
Não, não permitia que seu coração sucumbisse a tais fraquezas. Mulher,
amigo... não queria união alguma. Libertara-se de todos os laços com o seu
próprio sangue e com o sangue dos outros.
continua na página 121...
____________________
Terceira Parte - (I.a) No dia seguinte
____________________
O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário