sábado, 18 de outubro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: “Vingt et un” (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
“Vingt et un” 

..
     Assim transcorreu algum tempo, umas três ou quatro semanas, segundo julgamos, uma vez que absolutamente não nos podemos fiar nas avaliações e no senso de tempo de Hans Castorp. Escoaram-se sem acarretar novas mudanças. Na alma do nosso herói produziram certo rancor contra as circunstâncias imprevistas que o obrigavam a uma discrição pouco meritória; rancor que se ia tornando habitual e se dirigia particularmente contra aquela circunstância que se chamava a si própria Pieter Peeperkorn, cada vez que tomava uma cachacinha, contra a presença importuna desse homem majestoso, imponente e pouco claro, que realmente o constrangia de um modo muito mais brutal do que fizera o Sr. Settembrini quando “era demais ali”. Rugas de descontentamento e de irritação sulcavam verticalmente a testa de Hans Castorp, entre as sobrancelhas, e de sob essas rugas contemplava cinco vezes ao dia a mulher que regressara. Mesmo assim se sentia feliz por poder contemplá-la e cheio de desdém pela poderosa presença de alguém que ignorava até que ponto a sua segurança era posta em jogo pelo passado.
     Certa noite, porém, a reunião noturna no vestíbulo e nos salões foi mais animada do que em geral, o que acontecia de vez em quando sem nenhum motivo especial. Houvera música; algumas canções ciganas briosamente executadas ao violino por um estudante húngaro. A seguir, o Conselheiro Behrens, que estivera presente por um quarto de hora, em companhia do Dr. Krokowski, obrigara um pensionista a tocar nos baixos do piano a melodia do “Coro dos peregrinos”, enquanto ele, de pé a seu lado, maltratava o instrumento com uma escova que fazia saltitar pelos agudos, para parodiar um acompanhamento de rabeca. Isso fez rir. Sob vivos aplausos, meneando a cabeça como se a sua própria brincadeira o surpreendesse agradavelmente, o conselheiro abandonou os salões. Mas a reunião se prolongou; continuaram a fazer música, sem que se exigisse dos ouvintes nenhuma atenção concentrada; formaram-se partidas de dominó e de bridge, com bebidas nas mesas; outros se divertiam com os brinquedos ópticos; aqui e ali se viam pensionistas conversando. Também a roda da mesa dos “russos distintos” se havia misturado com os grupos do vestíbulo e do salão de música. Mynheer Peeperkorn aparecia em diferentes lugares; era impossível não o perceber, já que sua cabeça majestosa dominava os que o cercavam, triunfando devido a sua importância e sua força principesca. Aqueles que o rodeavam, embora a princípio houvessem sido atraídos pela mera fama da sua riqueza, logo começavam a sentir o encanto da sua personalidade; deixavam-se ficar, sorriam, faziam-lhe com a cabeça acenos alentadores, esqueciam-se de si próprios, fascinados pelos olhos sem cor sob as poderosas rugas da testa; com a atenção presa aos gestos elegantes e insistentes das mãos de unhas compridas, não experimentavam a menor decepção em face das palavras abruptas, incoerentes, ininteligíveis, confusas e realmente gratuitas que seguiam essa gesticulação.
     Quem procurasse Hans Castorp nesse ambiente, encontrá-lo-ia no salão de leitura, naquele mesmo recinto onde ele outrora – esse “outrora” é vago; o autor, o herói e o leitor já não percebem claramente a distância – recebera importantes informações sobre a organização do progresso humano. Nesse lugar estava-se mais tranqüilo. Somente umas poucas pessoas o partilhavam com Hans Castorp. A uma das escrivaninhas duplas, iluminadas por uma lâmpada suspensa, alguém redigia uma carta. Uma senhora, com dois pincenês sobre o nariz, achava-se sentada junto à biblioteca e folheava um volume ilustrado. Nas proximidades da passagem aberta que dava para a sala do piano, Hans Castorp ocupava uma cadeira que casualmente se encontrava ali; era uma cadeira em estilo Renascença, forrada de veludo, com espaldar alto e reto, e sem braços. O jovem voltava as costas ao reposteiro e tinha nas mãos um jornal, na posição de quem lê; mas, em vez de ler, escutava, com a cabeça inclinada obliquamente, os sons de música entrecortados e mesclados de vozes. No entanto, o seu cenho sombrio indicava que ele tampouco prestava muita atenção a esses sons, e que seus pensamentos trilhavam veredas pouco musicais; as veredas espinhosas da desilusão causada pelos acontecimentos que zombavam de um moço que se sujeitara a um longo período de espera, e quando chegara o fim desse período, se vira ignominiosamente logrado; as veredas ásperas do desafio, pelas quais avançara a um ponto em que pouco faltava para a decisão de depositar o jornal nessa cadeira incômoda, que o acaso lhe oferecera, sair pela porta do vestíbulo e substituir essa vida social sem graça pela solidão glacial do compartimento de sacada, onde Maria Mancini lhe faria companhia. 

– E seu primo, monsieur? – perguntou de trás dele, por cima da sua cabeça, uma voz. Era uma voz feiticeira para os seus ouvidos fadados a achar extremamente agradável o agridoce daquele timbre velado, levando dessa forma ao extremo o conceito do agradável. Era a voz que dissera uma vez: “Com muito prazer. Mas cuidado para não quebrá-lo!” Uma voz dominadora, a voz do destino, e que, se ele não se enganava, perguntara por Joachim.

     Lentamente, Hans Castorp desceu o jornal e levantou um pouquinho o rosto, de modo que apenas o topo da cabeça se encostava ao espaldar reto da cadeira. Até fechou os olhos durante um momento, mas logo os reabriu, para dirigi-los ao alto, na direção que a posição da cabeça impunha ao seu olhar, e pôs-se a fitar o vazio. Dir-se-ia que a expressão do bom rapaz tinha algo de um visionário ou de um sonâmbulo. Bem desejava ele que a pergunta fosse repetida, mas isso não se deu. Dessa forma nem sequer tinha certeza de que ela ainda se encontrava atrás dele, quando respondeu, depois de algum tempo, com bastante atraso, e a meia voz:

– Está morto. Foi servir na planície e morreu.

     O próprio Hans Castorp notou que “morto” era a primeira palavra com expressão a ser pronunciada entre eles. Notou ao mesmo tempo que ela, por falta de familiaridade com a língua alemã, escolhia termos excessivamente fracos para expressar os seus sentimentos, quando disse de trás dele e por cima da sua cabeça: 

– Coitado! Que pena! Completamente morto e enterrado? Desde quando? 
– Faz algum tempo. Foi levado para baixo pela mãe. Tinha-lhe crescido uma barba de guerreiro. Deram três salvas fúnebres por cima do túmulo. 
– Ele as mereceu. Foi um homem muito bom. Muito melhor do que outros, do que certos outros. 
– Sim, era bom. Radamanto sempre falava de seu excesso de entusiasmo. Mas seu corpo não estava de acordo. Rebellio carnis, como dizem os jesuítas. Sempre ligara grande importância ao corpo, de um modo honroso. Mas seu corpo permitiu que substâncias desonrosas o penetrassem e pregou-lhe uma peça ao excessivo entusiasmo. É, aliás, mais moral perder-se e perecer do que preservar-se. 
– Vejo que certa pessoa continua sendo um valdevinos filosófico. Quem é esse Radamanto? 
– Behrens. Settembrini o chama assim. 
– Ah, já sei, Settembrini. Aquele italiano... Eu não simpatizava com ele. Sua mentalidade não era humana. (A voz arrastava a palavra “humana” de modo lânguido e ao mesmo tempo enfático.) Era altivo. Não está mais aqui? Ora, sou ignorante. Não sei o que quer dizer Radamanto. 
– Qualquer coisa humanística. Settembrini mudou-se. Temos filosofado bastante nestes últimos tempos, ele, Naphta e eu. 
– Quem é Naphta? 
– O adversário dele. 
– Se é o adversário dele, gostaria de conhecê-lo... Mas eu não lhe disse que seu primo morreria se descesse à planície para ser soldado? 
– Sim, tu o sabias. 
– O que o senhor está pensando?  

     Silêncio prolongado. Ele não se retardou. Comprimindo o alto da cabeça contra o espaldar reto, com o olhar visionário cravado no ar, ficou esperando que a voz tornasse a soar. Novamente não sabia com certeza se ela ainda se achava atrás dele. Receava que os sons entrecortados de música, que entravam da sala vizinha, pudessem ter abafado o ruído de passos que se afastassem. Até que enfim a voz voltou:

– E monsieur nem sequer foi assistir ao enterro de seu primo? 
– Não – respondeu ele –, disse-lhe adeus aqui mesmo, antes de fecharem o caixão, quando ele começou a sorrir. Tu não imaginas como estava fria a sua testa. 
– Outra vez? É assim que se fala com uma senhora que mal se conhece? 
– Será que devo falar humanisticamente e não humanamente? – Sem querer, também ele arrastou a palavra de uma forma sonolenta, como quem se espreguiça e boceja.  
Quelle blague!... E o senhor esteve aqui todo esse tempo? 
– Sim, tenho esperado. 
– Por quem? 
– Por ti. 

     Uma risada soou por cima dele, lançada simultaneamente com a palavra “Louco!”

– Por mim? Provavelmente não o deixaram sair. 
– Ao contrário. Em certa ocasião, Behrens me teria deixado sair, num acesso de raiva. Mas isso seria apenas uma partida em falso. Pois, além das cicatrizes que tenho de há muito, desde os meus tempos de colégio, sabes?, existe ainda o ponto recente que Behrens descobriu e que me está causando a febre. 
– Febre ainda? 
– Sim, tenho sempre um pouquinho. Quase sempre. Com intermitências, mas não é uma febre intermitente. 
Des allusions

     Ele permaneceu calado, franzindo o cenho, por cima do olhar visionário. Depois de algum tempo perguntou: 

– E tu, onde tens andado?

     Uma mão deu uma pancada no espaldar da cadeira. 

Mais c’est un sauvage!... Por onde tenho andado? Por toda parte. Em Moscou (a voz pronunciava “Muoscou”, arrastando o nome do mesmo modo lânguido como fizera com a palavra “humana”), em Baku, em estações balneárias da Alemanha, na Espanha. 
– Ah, na Espanha? Que tal a Espanha? 
– Assim, assim. Viaja-se mal ali. O povo de lá é meio mouro. Castela é muito seca e rígida. O Kremlin é mais belo do que aquele palácio ou convento ao pé da montanha... 
– O Escorial? 
– Sim, o castelo de Filipe. Um castelo inumano. O que me agradou muito mais foi uma dança popular na Catalunha, a sardana, acompanhada por gaita de foles. Eu mesma entrei nela. Todos se dão as mãos e dançam à roda. A praça inteira fica cheia de gente. C’est charmant. É humano. Comprei um pequeno barrete azul como ali usam todos os homens e meninos do povo; é quase um fez, a barretina. Ponho-a durante o repouso e em outras ocasiões. Monsieur poderá julgar se ela me assenta bem. 
– Que monsieur
– O que está sentado nesta cadeira. 
– Eu pensava que se tratasse de Mynheer Peeperkorn. 
– Ele já julgou. Diz que fico encantadora com ela. 
– Ele disse isso? Até o fim? Terminando a frase de maneira a se poder compreendê-la? 
– Ah, parece que alguém está mal-humorado. Procura ser malicioso e mordaz. Procura zombar de personalidades que são muito maiores, melhores e mais humanas do que certa pessoa, junto com seu... avec son ami bavard de la Méditerranée, son maitre grand parleur... Mas não tolerarei que meus amigos sejam... 
– Tens ainda meu retrato interior? – interrompeu ele, melancolicamente. Ela riu. 
– Vou ver se o guardei. 
– Eu trago o teu aqui comigo. Além disso tenho um cavaletezinho em cima da minha cômoda, e de noite...

     Não chegou a acabar a frase. À sua frente achava-se Peeperkorn. Andara à procura da sua companheira de viagem. Entrara vindo de trás do reposteiro e surgira diante da cadeira do interlocutor a cujas costas ela se encontrava. Quedava-se ali qual uma torre, tão perto dos pés de Hans Castorp que este só com dificuldade conseguiu levantar-se entre os dois outros, quando verificou, apesar do seu estado sonâmbulo, que o momento exigia dele tal gesto de cortesia. Teve de resvalar lateralmente da cadeira, que ficou no meio das três pessoas dispostas num triângulo.
     Mme. Chauchat obedeceu às regras do Ocidente civilizado apresentando-os um ao outro. Com referência a Hans Castorp disse que se tratava de um conhecido de tempos passados, da sua última estadia no Berghof. A existência do Sr. Peeperkorn dispensava comentários. Pronunciou o nome do holandês, e este fixou no jovem os olhos apagados, sob os arabescos das rugas da testa e das fontes, que estavam mais profundas devido à atenção, e davam a seu rosto o aspecto de um ídolo. Estendeu a Hans Castorp a mão, cujas costas eram largas e sardentas; uma mão de capitão, pensou Hans Castorp, abstração feita das unhas pontudas. Pela primeira vez entrava em contato com a poderosa personalidade de Peeperkorn. “Personalidade” – constantemente lhe ocorria essa palavra à vista do holandês; quem o via sabia de repente o que era uma personalidade, e mais ainda: estava convencido de que uma personalidade não podia ser diferente dele. Os anos vacilantes do jovem Hans Castorp sentiam-se esmagados pelo peso dos sessenta desse homem espadaúdo com o rosto vermelho emoldurado de labaredas brancas, com a boca gretada e dolorida, e com o cavanhaque que pendia, comprido e ralo, sobre o colete clerical. Doutro lado, esse Peeperkorn era a amabilidade em pessoa. 

– Meu caro senhor – disse. – Inteiramente... Não, permita-me... Inteiramente! Acabo de travar conhecimento com o senhor... conhecimento com um moço que inspira confiança... Faço o conscientemente, meu caro senhor, estou compenetrado disso. O senhor me agrada. Não há de quê. Basta! O senhor me é simpático. 

     Não adiantava fazer objeções. Seus gestos eram peremptórios. Hans Castorp lhe era simpático. E desse fato Peeperkorn tirou consequências que expressou em forma um tanto vaga, mas que por intermédio da sua companheira de viagem se tornaram coerentes e compreensíveis. 

– Minha filha – disse ele. – Muito bem. Que tal?... Por favor, não me interprete mal... A vida é breve, e a nossa capacidade de satisfazer as suas exigências é, infelizmente... Isso são realidades, minha filha, são leis. Inexoráveis! Numa palavra, minha filha, sem perda de tempo... – E fez perdurar um gesto expressivo de sugestão declinando toda a responsabilidade para o caso de se cometer, apesar do seu conselho, um erro decisivo.

     Ao que parecia, Mme. Chauchat tinha prática na interpretação de tais desejos apenas esboçados. 

– Por que não? – disse ela. – Nós poderíamos permanecer juntos por algum tempo. Quem sabe se jogamos um pouco e tomamos uma garrafa de vinho? Ora, que espera o senhor? – continuou, voltando-se para Hans Castorp. – Mexa-se! Não vamos ficar aqui só nós três. Precisamos ter companhia. Quem mais está no salão? Mande vir a quem encontrar! Vá buscar alguns dos nossos amigos que já estão nas sacadas! Convidaremos também o Dr. Ting-Fu, nosso companheiro de mesa.

     Peeperkorn esfregava as mãos. 

– Ótimo! – disse. – Perfeito! Excelente! Vá depressa, meu jovem amigo! Obedeça! Formaremos uma roda. Vamos jogar, comer e beber. Vamos sentir que... Absolutamente, meu caro rapaz!

continua pág 367...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
“Vingt et un” (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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