Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
SEGUNDA PARTE
22
Foi a vez de Jem chorar. Seu rosto estava riscado de amargas lágrimas de raiva enquanto passávamos pela multidão
exultante.
— Não está certo — Jem resmungou até chegarmos à esquina da praça onde Atticus nos aguardava. Atticus estava embaixo
de um poste e dava a impressão de que nada tinha acontecido: o colete estava abotoado, o colarinho e a gravata estavam no
lugar, a corrente do relógio brilhava. Tinha voltado a ser o homem impassível de sempre.
— Não está certo, Atticus — repetiu Jem.
— Não, filho, não está.
Fomos para casa.
Tia Alexandra estava acordada, nos esperando. Estava de penhoar e eu podia jurar que, por baixo, usava espartilho.
— Sinto muito, meu irmão — ela murmurou.
Como nunca tinha ouvido tia Alexandra chamar Atticus de “irmão”, dei uma olhada para Jem, mas ele não estava ouvindo.
Olhava para Atticus, depois para o chão, e fiquei pensando se achava que de alguma forma Atticus era o culpado pela
condenação de Tom Robinson.
— Ele está bem? — perguntou a tia, referindo-se a Jem.
— Daqui a pouco ele melhora. Foi um pouco demais para ele — Atticus respondeu com um suspiro. — Vou dormir. Se eu
não acordar de manhã, não me chamem...
— Desde o início não achei sensato deixar que eles...
— Esta é a cidade deles, minha irmã — disse Atticus. — Nós a fizemos assim, e eles precisam aprender a viver nela.
— Mas não precisam ir ao tribunal e chafurdar naquela…
— O tribunal diz tanto sobre o condado de Maycomb quanto os chás das missionárias.
— Atticus… — Tia Alexandra tinha um olhar ansioso.
— Você é a última pessoa que eu achava que fosse ficar amarga
por causa disso.
— Não estou amargo, só estou cansado. Vou dormir.
— Atticus… — chamou Jem, desolado.
Ele se virou, já na porta.
— O que foi, filho?
— Como eles puderam fazer isso? Como?
— Não sei, mas fizeram. Já fizeram antes, fizeram hoje e vão fazer de novo, e quando uma coisa assim acontece… parece
que só as crianças choram. Boa noite.
Mas as coisas sempre parecem melhores de manhã. Atticus madrugou como de hábito e estava na sala lendo o Mobile
Register quando nós entramos, sonolentos. Na cara amassada de Jem estava estampada a pergunta que sua boca sonolenta não
conseguia fazer.
— Não é hora de se preocupar ainda — garantiu Atticus enquanto íamos para a sala de jantar. — Ainda não terminamos.
Vamos entrar com um recurso, pode ter certeza. Meu Deus, Cal, o que é isso?
Ele estava olhando para o prato de café da manhã.
— O pai de Tom Robinson mandou essa galinha para o senhor hoje cedo. Eu preparei.
— Diga a ele que fico muito honrado, aposto que na Casa Branca eles não têm galinha no café da manhã. E aquilo ali, o
que é?
— Brioches. Foi Estelle do hotel que mandou — disse Calpúrnia.
Atticus olhou para ela, confuso, e Cal disse:
— É melhor o senhor ir até a cozinha, sr. Finch.
Fomos atrás dele. Na mesa da cozinha tinha comida suficiente para um batalhão: carne de porco salgada, tomates, ervilhas
até uvas. Atticus sorriu quando viu um vidro com joelho de porco na salmoura.
— Será que a tia nos deixa comer isso no jantar?
Calpúrnia acrescentou:
— Estava tudo na escada de trás quando cheguei de manhã. Eles… ficaram agradecidos pelo que o senhor fez, sr. Finch.
Eles… não estão abusando, estão?
Atticus ficou com os olhos cheios de lágrimas. Ficou calado um instante.
— Diga a eles que fico muito grato. Diga… que não devem fazer isso de novo, os tempos estão muito difíceis...
Saiu da cozinha, foi até a sala de jantar, pediu licença para a tia Alexandra, pôs o chapéu e foi para a cidade.
Ouvimos os passos de Dill no corredor, então Calpúrnia deixou o café da manhã que Atticus não tinha tomado na mesa.
Entre uma garfada e outra, Dill nos contou a reação da srta. Rachel aos fatos da noite anterior, que foi a seguinte: se um homem
como Atticus Finch quer bater com a cabeça na parede, o problema é dele.
— Eu queria contar tudo a ela — resmungou Dill, mordendo uma coxa de frango —, mas ela não queria muita conversa
hoje de manhã. Disse que passou quase a noite toda acordada, imaginando onde eu estava, que ia mandar o xerife atrás de
mim, mas ele estava no tribunal.
— Dill, você não pode continuar saindo de casa sem avisar. Isso só deixa sua tia ainda mais irritada — disse Jem.
Dill deu um suspiro resignado.
— Cansei de dizer a ela aonde eu ia… Mas ela vê coisa onde não tem. Aposto que ela bebe meio litro de uísque no café da
manhã… Eu sei que ela bebe dois copos cheios. Eu vi.
— Não fale assim, Dill — zangou tia Alexandra. — Não fica bem para uma criança. É… cínico.
— Não sou cínico, srta. Alexandra. Dizer a verdade não é cinismo, é?
— Do jeito que você fala, é.
Jem olhou para ela, mas disse a Dill:
— Vamos. Pode levar essa coxa de galinha.
Quando chegamos na varanda da frente, a srta. Stephanie Crawford estava entretida contando tudo para a srta. Maudie e o
sr. Avery. Olharam para nós e continuaram falando. Jem rosnou alto. Eu desejei ter uma arma.
— Detesto quando os adultos ficam olhando pra gente — disse Dill. — Parece que a gente fez alguma coisa errada.
A srta. Maudie chamou Jem.
Jem resmungou e se levantou do balanço.
— Nós vamos com você — disse Dill.
A srta. Stephanie franziu o nariz de curiosidade. Ela queria saber quem tinha dado permissão para entrarmos no tribunal.
Não tinha nos visto lá, mas, naquela manhã, a cidade toda sabia que estávamos no balcão dos negros. Será que Atticus tinha
nos colocado lá para fazer alguma espécie de…? Não era direito ficar lá com todos aqueles... Scout tinha entendido todo o...?
Não ficamos arrasados ao ver nosso pai perder a causa?
— Fica quieta, Stephanie. — O tom da srta. Maudie era mortal. — Tenho mais o que fazer do que passar a manhã inteira
aqui na varanda… Vim até aqui, Jem Finch, para saber se você e seus parceiros querem comer um bolo. Levantei às cinco
para prepará-lo, então é melhor vocês quererem. Com licença, Stephanie. Tenha um bom dia, sr. Avery.
Na mesa da cozinha da srta. Maudie tinha um bolo grande e mais dois bolinhos. Deviam ser três pequenos. Não era do
feitio da srta. Maudie esquecer Dill e nossa cara deve ter demonstrado isso. Mas entendemos tudo quando ela cortou uma fatia
do bolo grande para Jem.
Enquanto comíamos, nos demos conta de que aquele era o jeito da srta. Maudie de dizer que, para ela, nada tinha mudado.
Ficou numa cadeira da cozinha, olhando para nós, em silêncio.
De repente, ela disse:
— Não se preocupe, Jem. As coisas nunca são tão ruins quanto parecem.
Quando a srta. Maudie queria dizer algo importante em casa, colocava as mãos espalmadas sobre os joelhos e ajeitava a
ponte móvel na boca. Foi o que ela fez, e nós aguardamos.
— Quero dizer apenas que há homens neste mundo que nasceram para fazer o trabalho duro para nós. O pai de vocês é um
desses.
— Ah, entendi — concordou Jem.
— Não venha com “ah, entendi” — retrucou a srta. Maudie, identificando uma reação fatalista de Jem. — Você não tem
idade para entender o que eu disse.
Jem olhava para o bolo, que estava pela metade.
— É como ser uma lagarta no casulo — disse ele. — Uma coisa adormecida, toda enrolada num lugar quente. Eu sempre
achei que as pessoas de Maycomb eram as melhores pessoas do mundo, pelo menos pareciam ser.
— Somos as pessoas mais seguras do mundo — ajuntou a srta. Maudie. — Raramente se exige que sejamos cristãos mas,
quando isso acontece, temos homens como Atticus para nos representar.
Jem deu um sorriso amargo.
— Gostaria que todo o condado pensasse assim.
— Ficaria surpreso se soubesse quantos de nós pensam assim.
— Quem? — Jem elevou a voz. — Quem nessa cidade fez alguma coisa para ajudar Tom Robinson?
— Em primeiro lugar, os amigos negros dele, e pessoas como nós. Como o juiz Taylor. Como o sr. Heck Tate. Pare de
comer e comece a pensar, Jem. Não passou pela sua cabeça que o juiz não indicou Atticus para defender aquele rapaz por
acaso? Que talvez ele tivesse razões para fazer isso?
É mesmo. Quando o tribunal tinha de designar um advogado, em geral o caso era entregue a Maxwell Green, o mais novo
advogado do condado, que não tinha experiência. Ele deveria ter assumido o caso de Tom Robinson.
— Pense nisso — disse a srta. Maudie. — Não foi por acaso. Na noite passada, fiquei na varanda, esperando. Esperei
horas vocês virem pela calçada e enquanto esperava pensei que Atticus Finch não ia ganhar a causa, ele não podia ganhar, mas
é o único homem das redondezas que consegue fazer o júri deliberar por tanto tempo num caso assim. E pensei com meus
botões: bom, estamos dando um passo à frente; pequeno mas, mesmo assim, um passo.
— Tudo bem, mas será que não tem juízes e advogados cristãos que possam compensar esses jurados ignorantes? —
resmungou Jem. — Quando eu crescer…
— Isso é uma coisa que você vai ter que discutir com o seu pai — disse a srta. Maudie.
Descemos os degraus frios da escada nova da srta. Maudie e fomos para o sol. O sr. Avery e a srta. Stephanie continuavam
conversando. Tinham seguido pela calçada e estavam em frente à casa da srta. Stephanie. A srta. Rachel estava indo ao
encontro deles.
— Quando crescer, acho que vou ser palhaço — disse Dill.
Jem e eu paramos.
— Isso mesmo, palhaço. A única coisa que sei fazer na vida é rir das pessoas, então vou entrar para o circo e rir à beça —
explicou Dill.
— Você está se confundindo, Dill. Os palhaços são tristes, o público é que ri deles — disse Jem.
— Bom, vou ser um novo tipo de palhaço. Vou ficar no meio do picadeiro e rir de todo mundo. Olha ali — ele apontou. —
Eles deviam estar montados em vassouras voadoras. A tia Rachel já tem a dela.
As srta. Stephanie e srta. Rachel acenavam exageradamente para nós, de um jeito que parecia confirmar o que Dill tinha
dito.
— Ai, meu Deus, acho que fica feio fazer de conta que não vimos as duas — murmurou Jem.
Tinha algo errado. O sr. Avery estava vermelho de tanto espirrar e quase nos soprou para fora da calçada quando nos
aproximamos. A srta. Stephanie tremia de excitação e a srta. Rachel pegou no ombro de Dill.
— Vão para o quintal dos fundos e não saiam de lá. A situação vai ficar perigosa — ela avisou.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ainda não sabem? A cidade inteira está comentando…
Nesse momento, tia Alexandra apareceu na porta e nos chamou, mas era tarde demais. A srta. Stephanie teve o prazer de
nos contar que, naquela manhã, o sr. Bob Ewell parou Atticus na esquina do correio, cuspiu na cara dele e disse que ia acabar
com ele, nem que levasse a vida inteira.
continua página 152...
___________________
Leia também:
O Sol é para todos: 1ª Parte (1a) /O Sol é para todos: 1ª Parte (2) / O Sol é para todos: 1ª Parte (3)
O Sol é para todos: 1ª Parte (4) /O Sol é para todos: 1ª Parte (5) / O Sol é para todos: 1ª Parte (6)
O Sol é para todos: 1ª Parte (7) / O Sol é para todos: 1ª Parte (8a) / O Sol é para todos: 1ª Parte (9a)
O Sol é para todos: 1ª Parte (10a) / O Sol é para todos: 1ª Parte (11a) / O Sol é para todos: 2ª Parte (12a)
O Sol é para todos: 2ª Parte (13) / O Sol é para todos: 2ª Parte (14) / O Sol é para todos: 2ª Parte (15a)
O Sol é para todos: 2ª Parte (16) / O Sol é para todos: 2ª Parte (17a) / O Sol é para todos: 2ª Parte (18a)
O Sol é para todos: 2ª Parte (18b) / O Sol é para todos: 2ª Parte (19) / O Sol é para todos: 2ª Parte (20)
O Sol é para todos: 2ª Parte (21) / O Sol é para todos: 2ª Parte (22) /
__________________
Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
__________________
Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
Nenhum comentário:
Postar um comentário