A Montanha Mágica
Capítulo VII
Abundância de harmonia
...
Qual foi a nova aquisição do Sanatório Berghof que salvou o nosso velho amigo da mania
das cartas, para lançá-lo nos braços de uma paixão diferente, mais nobre, embora na verdade não
menos estranha? A ponto de falar dessa inovação, nós mesmos sentimos o misterioso encanto
que o assunto irradia, e que nos inspira o sincero desejo de comunicar os fatos ao leitor.
Tratava-se de um acréscimo feito ao número de aparelhos de diversão que se achavam no
maior dos salões da casa. A compra, cuja ideia era fruto dos incessantes cuidados da gerência,
tinha sido resolvida no seio do grêmio administrativo do sanatório e exigira despesas que não
queremos computar, mas devemos qualificar de generosas por parte da direção desse
estabelecimento, que merece a nossa irrestrita recomendação. Seria um brinquedo engenhoso do
tipo da caixa estereoscópica, do caleidoscópio em forma de luneta e do tambor cinematográfico?
Sim e, sob certos aspectos, também não. Pois, em primeiro lugar não era óptico mas acústico
aquele instrumento com que os pensionistas certa noite depararam no salão de música e que os
fez bater as mãos em sinal de aplauso e de surpresa. Além disso, as referidas atrações levianas
absolutamente não podiam ser comparadas a ele quanto à classe, ao nível e ao valor. Isso não era
um espetáculo infantil, monótono, do qual todos estavam fartos e que ninguém olhava depois de
mais de três semanas de permanência no sanatório. Era uma opulenta cornucópia de prazeres
artísticos que alegravam ou entristeciam a alma. Era um instrumento de música. Era um
fonógrafo.
Receamos seriamente que essa palavra possa ser interpretada num sentido indigno e
obsoleto, e associada a idéias que talvez correspondam aos primitivos precursores daquilo que
temos em mente, não, porém, à realidade, essa realidade que a técnica consagrada ao serviço das
musas desenvolvera, num infatigável esforço burilador, até a mais elevada perfeição. Não, meus
amigos! Não falamos de um daqueles míseros caixotes a manivela que em tempos remotos
enchiam os ouvidos pouco exigentes do público de restaurantes com seus berros fanhosos, esses
caixotes coroados pelo prato giratório e pelo braço da agulha, e que pareciam apêndices de um
monstruoso funil de trombeta. A arca preta, de madeira mate, um pouco mais comprida do que
larga, que ali, em cima de uma estantezinha, exibia as suas linhas simples e nobres, e que um fio
revestido de seda ligava a uma tomada elétrica embutida na parede, absolutamente não se parecia
com aquelas máquinas toscas, antediluvianas. Abria-se a tampa graciosamente chanfrada,
guarnecida no seu interior de um suporte metálico dobradiço que, ao levantar-se do fundo do
aparelho, fixava-a automaticamente numa posição oblíqua, protetora; e numa concavidade pouco
profunda via-se o prato giratório, forrado de pano verde, cingido de um aro niquelado, com o
pino central igualmente de níquel, que se enfiaria no furo dos discos de ebonite. Notava-se, além
disso, bem na frente, ao lado direito, um dispositivo cifrado à maneira de relógio, e que servia
para regular a velocidade. À esquerda, havia uma alavanca, mediante a qual se podia pôr em
marcha ou travar o mecanismo, e mais para trás, ao mesmo lado, o braço oco, niquelado, sinuoso
e claviforme, que se movia em articulações macias e tinha na sua extremidade o diafragma
redondo, achatado, com o torninho destinado a segurar a agulha. Abriam-se também os batentes
da porta da frente. Atrás dela descobria-se uma espécie de gelosia, formada por fasquias
enviesadas de madeira preta – e nada mais.
– É o modelo mais recente – disse o conselheiro, que acabava de entrar. – A última
conquista da técnica. Pois é, meus filhos, de primeiríssima qualidade! Ultrafino! Não há coisa
melhor nesse gênero. – Procurou arremedar de maneira cômica a linguagem de um vendedor
ignorante que apregoa a sua mercadoria. – Isto não é aparelho, não é máquina – continuou,
enquanto tirava uma agulha de uma caixinha colorida, de lata, que se achava na mesa, e a fixava
no diafragma –, isso aí é um instrumento, é um Stradivarius, um Guarneri, com ressonâncias e
vibrações do mais extremo refinamento! A marca é Polyhymnia, segundo nos informa esta
inscrição no interior da tampa. Fabricada na Alemanha. Nesse ramo ninguém nos ganha, sabem?
O sentimentalismo musical em forma moderna, mecanizada! A alma alemã up to date! E aí está a
discoteca – acrescentou, designando um pequeno armário com fileiras de álbuns volumosos. –
Entrego todo esse tesouro ao uso e prazer irrestrito dos senhores e das senhoras, mas pede-se ao
público que zele por ele. Que tal se ouvíssemos uma peça, a título de experiência?
Os enfermos imploraram-lhe que o fizesse. E Behrens apanhou um daqueles livros
mágicos, de valioso conteúdo, virou as páginas pesadas e de uma das bolsas de cartolina, cujos
buracos circulares deixavam ver os rótulos multicores, tirou um disco que colocou no aparelho.
Com uma única manobra acionou o prato giratório, esperou alguns segundos, até o movimento
alcançar a velocidade desejada, e aplicou a delicada ponta da agulha de aço cautelosamente à beira
do disco. Ouviu-se um leve chiado. O médico desceu a tampa, e no mesmo instante irrompeu
pelos batentes abertos da porta, por entre as fasquias da gelosia, um turbilhão orquestral, uma
melodia alegre, barulhenta, apressada, os primeiros compassos saltitantes de uma abertura de
Offenbach.
Todos escutavam, sorrindo, boquiabertos. Não podiam dar crédito a seus ouvidos, tão
puros e tão naturais saíam os trinados dos sopros de madeira. Um violino, sozinho, preludiava
fantasiando. Ouviam-se o toque do arco, o tremulo da mão esquerda, a suave transição de uma
posição a outra. O violino encontrou a melodia que procurara, uma valsa, Ai de mim, perdi a amada.
Graciosamente, a orquestra acompanhava a ária insinuante, e era delicioso quando esta,
honrosamente acolhida pelo conjunto dos músicos, se repetia sob o estrondo dos tutti. Não era,
naturalmente, a mesma coisa como se uma verdadeira orquestra tocasse no salão. O som não
sofria a menor desfiguração, mas o seu volume estava diminuído pela perspectiva; se nos é
permitido empregar diante desse fenômeno acústico uma comparação tirada do terreno da óptica:
era como se olhássemos um quadro por um binóculo às avessas, de modo que aparecesse
distante e reduzido, sem detrimento da nitidez do desenho e da luminosidade das cores. A peça
musical, engenhosa e picante, ia sendo reproduzida com todo o brilho inerente a essa
composição frívola. O final era a leveza pura e simples, um galope comicamente hesitante no
começo, um lascivo cancã, evocando a visão de cartolas brandidas no ar, de joelhos sacudidos e
de saias farfalhantes, e cujo desenlace humorístico-triunfal parecia não ter fim. A seguir, o
mecanismo desligou-se automaticamente. Terminara tudo. Houve sinceros aplausos.
Reclamaram mais música e receberam-na. Uma voz humana brotou da arca, voz máscula,
ao mesmo tempo macia e poderosa, acompanhada por uma orquestra. Era um barítono italiano
de grande fama. Desta vez já não se podia falar de distância e de véus abafadores. A magnífica
voz ressoava na plenitude natural do seu volume e vigor. Quem passasse para uma das salas
vizinhas, cujas portas estavam abertas, e não visse o aparelho, poderia pensar que o cantor em
carne e osso estivesse presente, e cantasse com as músicas na mão. Cantava na sua língua
materna, uma ária di bravura: “Sono un barbieri, di qualità, di qualità! Figaro qua, Figaro la, Figaro, Figaro,
Figaro!” Os ouvintes quase morriam de riso, ao escutar o parlando em voz de falsete e ao notar o
contraste entre a voz potente e a vertiginosa desenvoltura da língua. As pessoas mais
competentes talvez fossem capazes de observar e de apreciar a arte do fraseado e da técnica
respiratória. Mestre na apresentação irresistível, virtuose do gosto latino que exige o “da capo”, o
cantor sustentou por muito tempo a penúltima nota, antes da tônica final. Parecia aproximar-se
da ribalta e erguer uma das mãos, a ponto de o público bater palmas ainda antes do fim da ária.
Era esplêndido.
E isso não era tudo. Uma trompa de caça executou com escrupulosa delicadeza variações
sobre uma canção popular. Um soprano fez vibrar as clarinadas, os staccati e os gorjeios de uma
ária de La traviata com a mais encantadora frescura e precisão. O fantasma de um violinista de
celebridade mundial tocou, como se se achasse por trás de alguns véus, uma romança de
Rubinstein, com acompanhamento de um piano que soava tão duro como um cravo. A arca
milagrosa fervia aos poucos, mas ainda saíam dela badaladas de sinos, glissandi de harpas,
clangores de trombetas e rufos de tambores. Finalmente tocaram discos de dança. Já havia até
algumas amostras da importação mais recente, ao gosto das tavernas de portos exóticos: o tango,
destinado a relegar a valsa vienense ao baile dos avós. Dois pares que sabiam executar os passos
da moda exibiram-se sobre o tapete. Behrens acabava de retirar-se, depois de recomendar-lhes
que não usassem uma agulha mais de uma vez e que tratassem os discos como se fossem ovos
frescos. Hans Castorp encarregou-se do aparelho.
Por que justamente ele? Isso se dera com a maior naturalidade. Falando laconicamente,
em voz abafada, opusera-se àqueles que, depois da saída do conselheiro, queriam tomar a si a
incumbência de mudar os discos ou as agulhas e de acionar ou desligar o motor elétrico. –
Deixem isto comigo! – dissera, afastando-os do aparelho, e eles, indiferentes, lhe haviam
obedecido; primeiro, porque ele dava a impressão de ser entendido no assunto desde havia muito
tempo, e segundo, porque não faziam questão de trabalhar na fonte do prazer, ao invés de se
deixar servir comodamente e sem responsabilidade, até o momento em que isso lhes causasse
tédio.
Hans Castorp era diferente. Enquanto o conselheiro apresentava a nova aquisição, o
jovem mantivera-se silenciosamente no fundo da sala; não se ria, não batera palmas, mas prestara
intensa atenção às peças oferecidas, torcendo uma sobrancelha entre dois dedos, como às vezes
tinha por hábito. Tomado de certa inquietação, de quando em quando mudara de lugar, sem que
o público o notasse. Entrara na biblioteca, a fim de escutar ali. Mais tarde plantara-se ao lado de
Behrens, com as mãos nas costas e com a cara fechada. Examinara a arca, para lhe aprender o
fácil manejo. Uma voz dizia nele: “Alto! Alerta! Começa uma época! Isso veio para mim!” Estava
cheio do infalível pressentimento de mais uma paixão, de outro encantamento, do peso de um
novo amor. Um jovem da planície, que ao primeiro olhar lançado a uma garota sente-se ferido
pela flecha farpada do amor, não experimenta sensações diferentes. Os atos subsequentes de
Hans Castorp foram determinados pelo ciúme. Propriedade comum? Qual nada, a curiosidade
indolente não tem nem o direito nem a força necessária para possuir! “Deixem isto comigo!”,
disse Hans Castorp entre dentes, e eles pareciam muito satisfeitos. Dançaram mais um pouco ao
som das músicas fúteis que ele lhes oferecia. Pediram ainda um disco de canto, um dueto de
ópera, a barcarola dos Contos de Hoffmann, cuja graça lhes enfeitiçava os ouvidos, e quando Hans
Castorp chaveou a tampa, recolheram-se ao repouso, tagarelando, superficialmente animados
pelo novo brinquedo. Era precisamente isto o que o jovem esperava. Haviam abandonado tudo
na mais completa desordem, as caixinhas de agulhas e os álbuns abertos, os discos espalhados por
toda parte. Era típico! Hans Castorp fez como se os seguisse, mas, clandestinamente, separou-se
deles na escada. Voltou ao salão, cerrou todas as portas e permaneceu ali durante grande parte da
noite, intensamente atarefado.
Ia se familiarizando com a inovação. Sem que ninguém o incomodasse, examinava os
tesouros musicais que acompanhavam o aparelho, o conteúdo de todos os pesados álbuns. Havia
doze, de dois tamanhos diferentes, e cada qual continha doze discos. Muitas dessas chapas pretas,
com os angustos sulcos circulares, eram gravadas dos dois lados. Certas peças estendiam-se por
sobre o disco inteiro, e não eram raros os casos em que o mesmo disco continha duas obras
diferentes. Assim parecia, no início, difícil e mesmo perturbadora a tarefa de obter uma visão de
conjunto desse terreno cheio de belas possibilidades, que lhe cabia conquistar. Hans Castorp
experimentou aproximadamente uns vinte e cinco discos, servindo-se de certo tipo de agulhas
finas que tocavam em surdina, para não molestar ninguém e para não ser ouvido através da noite.
Mas isso representava apenas a oitava parte de tudo quanto se lhe oferecia e clamava por ser
experimentado. Por enquanto, Hans Castorp se contentou com uma rápida leitura dos títulos, e
só de vez em quando escolhia a esmo uma amostra das silenciosas gravações circulares, para
incorporá-la na arca que a faria soar. Era só pelo colorido que lhes cobria a parte central, e por
nada mais, que esses discos de ebonite se distinguiam à primeira vista. Um era igual ao outro.
Todos estavam cobertos até quase o centro por um sem-número de círculos concêntricos, e no
entanto esse lineamento delicado continha tudo o que se pudesse imaginar de música, os mais
felizes achados de todas as regiões da alma, em esmerada interpretação.
Existiam ali numerosas aberturas e movimentos avulsos, pertencentes ao mundo sublime
da sinfonia, tocados por orquestras famosas, cujos regentes eram designados pelo nome. Seguia
se uma série de Lieder cantados por membros de grandes óperas, com acompanhamento de
piano; tratava-se em parte de obras elevadas, produtos do esforço consciente de artistas
individuais, em parte de singelas cantigas do povo, e ainda de outras peças que, por assim dizer,
constituíam um meio-termo entre ambos os gêneros: embora frutos de uma arte intelectual,
representavam, quanto à inspiração e à forma, a alma e o gênio do povo no que possuía de mais
puro e mais piedoso; eram canções populares artificiais, se é possível usar o epíteto “artificial”
sem lhes diminuir o caráter genuíno da invenção. Referindo-nos sobretudo a uma canção que
Hans Castorp conhecia desde criança, mas pela qual só agora começava a sentir um amor
misterioso, rico em associações, canção essa de que falaremos noutra parte... Que mais havia, ou,
para tornar a resposta mais fácil: que faltava, afinal? Havia abundância do gênero lírico. Um coro
internacional de festejados cantores e cantoras, acompanhados por orquestras discretamente
refreadas, empregava o dom divino das suas vozes afeitas ao bel canto, na interpretação de árias,
duetos, ensembles, provenientes das mais diversas regiões e épocas do repertório operístico: a
beleza meridional, com o seu arrebatamento ao mesmo tempo generoso e frívolo; o mundo dos
povos germânicos, mescla de espírito brincalhão e demoníaco; a grande ópera e a ópera cômica,
de origem francesa. Era tudo? Ah, não! Vinha ainda o grupo de músicas de câmara, os quartetos e
os trios, os solos instrumentais de violinos, violoncelos e flautas, os cantos de concerto, com
acompanhamento obligato de violino ou flauta, as peças puramente pianísticas, para não falar das
diversões leves, como os couplets e os discos de serventia concreta, gravados por orquestras de
dança, e que requeriam uma agulha grossa.
Hans Castorp examinava e classificava tudo isso. Manobrando em completa solidão,
entregou parte do tesouro ao instrumento que o despertava para uma vida sonora. Com a cabeça
ardendo, recolheu-se ao quarto numa hora tão avançada como aquela em que terminara o
primeiro festim organizado pela saudosa personalidade do majestoso e fraternal Peeperkorn. Das
duas da madrugada até as sete da manhã, sonhou com a arca mágica. No seu sonho via o prato
giratório dar voltas em torno do pino, tão depressa que não se podia distinguir nenhum
pormenor, e todavia sem o mínimo ruído, num movimento que consistia não somente no
turbilhonante fluxo circular, mas também numa estranha ondulação lateral, de maneira que ao
braço articulado, portador da agulha, que passava por cima, era imprimida uma oscilação elástica,
muito proveitosa, segundo tudo fazia crer, ao vibrato e ao portamento dos instrumentos de corda e
das vozes humanas. Mas, tanto em sonho como em estado de vigília, continuava incompreensível
por que o simples ato de acompanhar uma linha fina como um cabelo, por cima de uma caixa de
ressonância, e com o único auxílio da membrana do diafragma, era capaz de reproduzir a vasta
complexidade das composições que enchiam os ouvidos interiores do adormecido.
De manhã cedo, ainda antes do café, voltou ao salão e, com as mãos postas, sentado
numa poltrona, fez sair da arca a voz maravilhosa de um barítono que cantava, com
acompanhamento de harpa, a ária de Wolfram von Eschenbach, da ópera Tannhäuser. A harpa
tinha um som perfeitamente natural; eram arpejos autênticos, não adulterados, que partiam da
arca, junto com a voz humana, ampla, suave, bem-articulada. Era pasmoso. E nada podia haver
de mais terno no mundo do que um dueto de uma ópera italiana de um compositor moderno,
que Hans Castorp tocou a seguir – essa aproximação sentimental, cheia de humildade e ternura,
que se produz entre uma voz de tenor mundialmente famosa, que muitas vezes figurava nos
álbuns, e um sopranozinho meigo, cristalino; era impossível imaginar coisa mais delicada do que
esse “Dami il braccio, mia piccina...”, cantado pelo homem, e aquela pequena frase simples, doce, de
melodia pressurosa com que ela lhe respondia...
Hans Castorp sobressaltou-se, quando a porta se abriu às suas costas. Era o conselheiro,
que lançava um olhar ao salão. Em avental de médico, o estetoscópio no bolso do peito,
permaneceu um instante com o trinco da porta na mão, acenando para o alquimista de sons.
Depois que este retribuiu o aceno por cima do ombro, o rosto do chefe, com as faces azuladas e
o bigodinho torto de um lado, logo sumiu atrás da porta cerrada. E Hans Castorp tornou a dirigir
a atenção ao harmonioso casalzinho de namorados invisíveis.
Mais tarde, no decorrer do dia, após o almoço e o jantar, havia ouvintes a observar-lhe as
atividades, um público que se renovava constantemente – uma vez que consideramos o próprio
Hans Castorp, não como parte do auditório, senão como autor do divertimento oferecido.
Também ele tendia para esse ponto de vista, e os habitantes do Berghof admitiram-no
tacitamente desde o início, não se opondo ao ato enérgico com que o jovem se nomeara a si
próprio administrador e guardião da nova instituição pública. Para essa gente, isso não
representava nenhum sacrifício. Verdade é que manifestavam certo arrebatamento superficial
quando aquele idolatrado tenor, extasiando-se em harmonia e doçura, derramava a voz que
encantava o mundo, em cantilenas e efusões de paixão altamente artísticas. Mas, não obstante o
seu júbilo ruidoso, faltava-lhes o verdadeiro amor, e por isso estavam muito dispostos a deixar os
cuidados do aparelho a quem quisesse encarregar-se deles. Era Hans Castorp quem mantinha em
ordem o tesouro dos discos; era ele quem anotava no interior da capa o conteúdo do respectivo
álbum, de maneira a se poder encontrar imediatamente qualquer música desejada; era ele quem
lidava com o instrumento. Dentro de pouco tempo, isso já se notava pelos seus gestos rápidos,
precisos e delicados. Realmente, que teriam feito os outros? Teriam violado os discos,
maltratando-os com agulhas gastas; tê-los-iam abandonado nas cadeiras, sem invólucro protetor;
teriam abusado do aparelho para brincadeiras estúpidas, tocando uma peça sublime com a
velocidade de cento e dez ou colocando o ponteiro em zero, de modo a tirarem da caixa ora um
trilo histérico ora um grunhido sufocado... Já haviam chegado a fazer tudo isso. Embora doentes,
eram rudes. Eis por que Hans Castorp, ao cabo de algum tempo, confiscou simplesmente a chave
do armário que continha os álbuns e as agulhas. Daí por diante andava com ela no bolso, e quem
quisesse ouvir um concerto teria de chamá-lo.
Pela noite, depois da reunião, quando os pensionistas acabavam de se recolher, vinham as
suas melhores horas. Permanecia então no salão ou voltava ali clandestinamente, para tocar
músicas, sozinho, até altas horas da noite. Verificou que o perigo de perturbar com isso o sossego
da casa era menor do que acreditara. O alcance desses sons espectrais era evidentemente
pequeno. As vibrações, por mais surpreendente que fosse o efeito por elas causado perto da sua
fonte, enfraqueciam a alguma distância, mostrando-se débeis e desprovidas de verdadeiro poder,
como toda fantasmagoria. Hans Castorp achava-se entre as quatro paredes, a sós com as
maravilhas da arca, com as exuberantes produções desse ataudezinho truncado, de madeira de
violino. Diante dos batentes abertos desse pequeno templo de fosca negrura, instalava-se numa
poltrona, com as mãos postas, inclinando a cabeça para um ombro, e com a boca entreaberta
banhava-se em melodias.
Os cantores e as cantoras que estava ouvindo – não os via. Sua forma humana
encontrava-se na América, em Milão, em Viena, em São Petersburgo. Não fazia mal que não se
encontrassem ali, pois aquilo que Hans Castorp possuía era o que neles havia de melhor, era a sua
voz, e o jovem apreciava essa depuração e abstração que restava bastante acessível aos sentidos
para permitir-lhe um bom controle humano – sobretudo quando se tratava de artistas alemães,
compatriotas seus – com eliminação de todos os inconvenientes que acarretaria a excessiva
proximidade física. Podia-se distinguir o dialeto, a dicção, a origem étnica dos artistas. O caráter
vocal revelava fatos relacionados com a envergadura espiritual de cada um deles. Pela maneira
como aproveitavam ou desperdiçavam as possibilidades de interpretação, evidenciava-se o grau
da sua inteligência. Hans Castorp exasperava-se quando fracassavam. Também sofria e mordia os
lábios cada vez que ocorriam imperfeições da reprodução técnica. Sentia-se como sobre brasas
quando, no meio de um disco muitas vezes tocado, uma nota de canto soava estridente ou
berrante, o que sucedia frequentemente com as delicadas vozes femininas. Mesmo assim se
conformava, pois quem ama tem de sofrer. Às vezes se inclinava por sobre o mecanismo que
girava, palpitando, como sobre um ramalhete de lilases, com a cabeça sumida numa nuvem de
sons. Mantinha-se à frente da arca aberta, e saboreava o prazer soberano de um regente,
enquanto com um gesto de mão, no momento preciso, dava aos clarins o sinal de ataque. Tinha
alguns favoritos na coleção, números de canto e peças instrumentais, que nunca se cansava de
ouvir. Não podemos deixar de citá-los.
Um pequeno grupo de discos apresentava as cenas finais daquela ópera pomposa,
transbordante de gênio melódico, que fora composta por um grande compatriota do Sr.
Settembrini, o velho mestre da música dramática meridional, na segunda metade do século
passado, por encomenda de um potentado oriental, e devia a sua origem à circunstância solene da
entrega à humanidade de uma obra da técnica destinada a aproximar os povos. Devido à sua
formação, Hans Castorp sabia pouco mais ou menos do que se tratava. Conhecia em linhas gerais
os destinos de Radamés, Amnéris e Aída, que cantavam para ele em italiano, no interior da caixa,
e assim entendia praticamente tudo quanto diziam o incomparável tenor, o majestoso contralto
com a magnífica mudança de timbre na meia-voz, e o soprano cristalino. Não os entendia palavra
por palavra, mas apanhava uma ou outra frase, graças ao seu conhecimento das situações e à
simpatia que experimentava por elas, essa afeição íntima que se intensificava à medida que tocava
aqueles quatro ou cinco discos, a ponto de se transformar num autêntico sentimento amoroso.
continua pág 419...
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Leia também:
Capítulo I / A Chegada
Capítulo II / Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III / Ensombramento pudico
Capítulo IV / Compra necessária (a)
Capítulo V / Sopa eterna e clareza repentina (a)
Capítulo VI / Transformações (a)
Capítulo VII
Abundância de harmonia - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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