Elias Canetti
AS ENTRANHAS DO PODER
Os Matadores Seguem Sendo os Poderosos
Não foi apenas como um todo que a mão atuou como modelo e
estímulo. Também os dedos, isoladamente — e, em particular, o dedo
indicador estendido —, adquiriram significado. Em sua extremidade, o
dedo se afila e se arma de uma unha: foi ele o primeiro a proporcionar a
sensação ativa do furar. O punhal, que se desenvolveu a partir dele, é um
dedo mais duro e mais bem afiado. A flecha foi um cruzamento do
pássaro com o dedo. Afim de penetrar mais fundo, ela se alongou; para
voar melhor, teve de afilar-se. O bico e o espinho contribuíram também
em sua composição; o bico, aliás, é próprio daquilo que voa. Já o bastão
a lado, por sua vez, transformou-se na lança: um braço que desemboca
num único dedo.
Comum a todas as armas desse tipo é a concentração num único
ponto. Pelo duro e longo espinho, o próprio homem foi espetado; com
seus dedos, ele o extraiu. O dedo que se destaca do restante da mão e faz
as vezes de um espinho, a passar adiante a espetada, constitui,
psicologicamente, a origem dessa espécie de arma. O espetado espeta a
si próprio, graças a seus dedos e aos dedos artificiais que, pouco a
pouco, aprende a construir.
Das habilidades da mão, nem todas conferem o mesmo poder; seu
prestígio é assaz variado. Aquilo que é importante para a vida prática de
um grupo de homens será altamente estimado. Do mais alto prestígio
desfruta, porém, aquilo que está direcionado para matar. Tudo quanto
pode chegar a matar é temido; o que não serve diretamente a esse
propósito é tão somente útil. Todos os pacientes afazeres da mão
conferem àqueles que a eles se limitam nada mais que submissão. Mas
os outros, os que se dedicam a matar, estes detêm o poder.
continua página 331...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Os Matadores Seguem Sendo os Poderosos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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