terça-feira, 30 de junho de 2020

Sarau... El amor (Eduardo Galeano)

El amor





Eduardo Galeano





"En la selva amazónica, la primera mujer y el primer hombre se miraron con curiosidad. Era extraño lo que tenían entre las piernas.
- ¿Te cortaron? Preguntó el hombre.
"No", dijo ella. - Siempre he sido así.
Lo examinó de cerca. Se rascó la cabeza.
Había una herida abierta allí. Dijo:
- No coma mandioca, plátanos ni ninguna fruta que se abra cuando madure. Te curaré
Acuéstese en la hamaca y descanse.
Ella hizo. Pacientemente bebió las gachas de hierbas y se permitió aplicar las pomadas y pomadas. Tuve que apretar los dientes para no reírme cuando dijo:
- No te preocupes.
Disfrutaba el juego, aunque comenzó a cansarse de vivir en ayunas, tumbada en una hamaca.
El recuerdo de las frutas llenó su boca de agua.
Una tarde, el hombre llegó corriendo por el bosque. Saltó de euforia y gritó:
- ¡Lo encontré! ¡Lo encontré!
Acababa de ver al mono curando al mono en la copa de un árbol.
"Es así", dijo el hombre, acercándose a la mujer.
Cuando terminó el largo abrazo, un espeso aroma de flores y frutas invadió el aire. De los cuerpos que yacían juntos, nunca se vieron vapores y resplandores, y era tan hermoso que los soles y los dioses murieron de vergüenza."

Eduardo Galeano







"Na floresta amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se entreolharam com curiosidade. Era estranho o que eles tinham entre as pernas.
- Eles te cortaram? Perguntou o homem.
"Não", ela disse. - Eu sempre fui assim.
Ele examinou atentamente. Ele coçou a cabeça.
Havia uma ferida aberta lá. Disse:
- Não coma mandioca, banana ou qualquer fruta que abra quando amadurecer. Vou te curar
Deite-se na rede e descanse.
Ela fez. Pacientemente, bebeu o mingau de ervas e se permitiu aplicar as pomadas e pomadas. Eu tive que cerrar os dentes para não rir quando ele disse:
- Não te preocupes.
Ela gostou do jogo, embora tenha começado a se cansar de viver com o estômago vazio, deitado na rede.
A lembrança das frutas encheu sua boca com água.
Uma tarde, o homem veio correndo pela floresta. Ele pulou de euforia e gritou:
- Encontrei! Encontrei!
Acabara de ver o macaco curando o macaco no topo de uma árvore.
"É verdade", disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando o longo abraço terminou, um aroma espesso de flores e frutas invadiu o ar. Dos corpos juntos, nenhum vapores e flashes foram vistos, e era tão bonito que os sóis e deuses morreram de vergonha."




Ave Maria no Morro - Choro das 3

Choro das 3ªs-feiras


Choro das 3




e o morro inteiro no fim do dia
reza uma prece ave Maria
vou indo sem saber onde chegar
faça de conta que o tempo passou
e que a vida não continuou
a procura de nada
quem sabe na volta






Ave Maria no Morro de Herivelto Martins. Contamos com a participação especial de 3 músicos sorocabanos, Angelo, Ilvo Vianna Borracha​ e Paulo Roberto Godoy​.



Barracão de zinco
Sem telhado, sem pintura
Lá no morro
Barracão é bangalô

Lá não existe
Felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu

Tem alvorada, tem passarada
Alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer

E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria
E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria

Ave Maria
Ave
E quando o morro escurece
Elevo a Deus uma prece
Ave Maria


Composição de Herivelto Martins





Herivelto Martins & Pery Ribeiro







Programa - Só Pra Lembrar
- (Herivelto Martins)
TVE - 1992






então, vamos nesta vida comprida de samba-canção...


Caminhemos...








segunda-feira, 29 de junho de 2020

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 14 (2) — Albatrozes e Pinguins

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





14 — Albatrozes e Pinguins



continuando....



Encontram-se na ilha de Kerguelen algumas espécies de focas e também abundam as focas de tromba ou elefantes marinhos. Os pinguins existem em grandes quantidades e são de quatro famílias diferentes. O pinguim real, assim chamado devido ao seu porte e à beleza da plumagem. Geralmente, tem a parte superior do corpo cinzenta, por vezes mesclada de lilás, sendo a parte inferior do branco mais puro que possam imaginar. A cabeça é de um negro brilhante, assim como os pés. Mas a principal beleza da sua plumagem reside em duas largas riscas douradas que descem da cabeça ao peito. O bico é longo, umas vezes cor-de-rosa, outras vermelho vivo. Estes pássaros andam muito direitos, com uma postura pomposa, sempre com a cabeça bem erguida e as asas pendentes como dois braços e, como a cauda se projeta para fora do corpo, na mesma direção das coxas, a sua semelhança com a figura humana é realmente surpreendente e poderia enganar qualquer pessoa que os visse de repente ou à luz crepuscular. Os pinguins reais que encontramos em Kerguelen eram um pouco maiores do que os gansos. As outras espécies são: o pinguim macaroni, o jack-ass e o pinguim rookery. São muito mais pequenos, têm uma plumagem menos bela e são diferentes sob todos os aspetos.

Além do pinguim, encontram-se nesta ilha muitas outras aves, entre as quais se podem citar a uria, o petrel azul, a cerceta, o pato, a galinha de Port Egmont, o corvo-marinho verde, a pomba do Cabo, a nelly, a andorinha-do-mar, a gaivota, o petrel das tempestades ou Mother Carey, chicken, o grande petrel, ou na linguagem dos marinheiros, a Mother Carey's goose e, finalmente, o albatroz.

O grande petrel é do mesmo tamanho que o albatroz vulgar e é carnívoro. Às vezes chamam-lhe petrel-quebra-ossos ou petrel-águia-marinha. Estas aves não são esquivas e, quando convenientemente arranjadas e temperadas, constituem uma alimentação bastante agradável. Por vezes, ao voar, rasam a superfície das águas muito de perto, com as asas abertas, parecendo que não as movem, ou utilizam.

O albatroz é uma das maiores e mais rápidas aves dos mares do Sul. Pertence à família das gaivotas e agarra a sua presa em pleno voo, nunca pousando a não ser para cuidar das crias. O albatroz e o pinguim estão ligados por uma estranha amizade. Os seus ninhos são construídos de uma maneira muito uniforme, de acordo com um plano estabelecido entre as duas espécies, ocupando o albatroz o centro de um quadrado formado pelos ninhos de quatro pinguins. Os navegadores são unânimes em chamar a esta espécie de acordo ou conjunto de ninhos uma rookery. Estas colônias já foram descritas mais de uma vez, mas como nem todos os nossos leitores tiveram oportunidade de ler essas descrições e como mais tarde virei a falar do pinguim e do albatroz, não me parece despropositado dizer agora algumas palavras sobre o seu modo de viver.

Quando chega a época da incubação, estas aves reúnem-se em grandes grupos e, durante alguns dias, parecem deliberar sobre o melhor método a seguir. Finalmente passam à ação. Escolhem um local plano, de dimensões adequadas, geralmente entre três e quatro acres, o mais perto possível do mar, embora fora do seu alcance. O que mais pesa na sua escolha do terreno é a uniformidade da superfície e a existência de poucas pedras. Resolvida esta questão, as aves atuam de comum acordo e, como que movidas pelo mesmo espírito, começam a fazer, com uma correção matemática, o traçado de um quadrado ou de outro paralelogramo, que se adapte melhor à natureza do terreno, numa extensão suficiente para instalar todas as aves da colônia, mas só essas, parecendo assim querer exprimir a sua intenção de fechar a colônia aos vagabundos, que não tenham participado na construção do acampamento. Um dos lados do polígono fica paralelo à costa e é aberto para que as aves possam entrar e sair.

Depois de terem traçado os limites do acampamento, começam a limpar o terreno de toda a espécie de detritos, removendo tudo, pedra a pedra, que transportam para fora, mas perto das linhas traçadas de forma a erigir uma muralha nos três lados do polígono, voltados para terra. Junto a esta muralha e do lado de dentro, constroem uma passagem perfeitamente plana, com uma largura de 6 a 8 pés, que se estende a toda a volta do acampamento, com o fim de estabelecer uma espécie de passeadouro comum.

A operação que se segue consiste em dividir todo o terreno em pequenos quadrados perfeitamente iguais em dimensões. Para o conseguir, fazem estreitos caminhos, completamente nivelados e cruzando-se em ângulos retos, através de toda a extensão da rookery. Em cada intersecção fica um ninho de pinguim e no centro de cada quadrado um ninho de albatroz, de forma que cada pinguim está rodeado por quatro albatrozes e cada albatroz está cercado de um número igual de pinguins. O ninho de um pinguim consiste num buraco aberto no solo, com uma profundidade suficiente para que o seu único ovo não role. O albatroz adota uma construção menos simples levantando um pequeno montículo com um pé de altura e dois de largura, feito de terra, algas e conchas e, no cimo, constrói o ninho.

As aves têm um cuidado muito especial em nunca deixar os ninhos vazios durante o tempo que dura a incubação e mesmo até que as crias estejam suficientemente fortes para se bastarem a si próprias. Durante a ausência do macho que foi ao mar à procura de alimentos, a fêmea substitui-o e, só quando o companheiro regressa, ela se vai embora. Os ovos nunca ficam descobertos, pois quando uma ave deixa o ninho, logo outra ocupa o seu lugar. Esta precaução é indispensável devido à tendência para a gatunice que existe na colônia, pois os seus habitantes não têm escrúpulos em se roubarem mutuamente os ovos, sempre que têm oportunidade para isso.

Embora existam algumas destas colônias, habitadas exclusivamente por pinguins e albatrozes, encontram-se, porém muitas outras com uma enorme variedade de aves marinhas, que têm os mesmos direitos, espalhando os seus ninhos onde calha, ou onde encontram espaço, mas nunca usurpando os lugares já ocupados por espécies mais fortes. O aspeto destas colônias, vistas de longe, é muito estranho. Toda a atmosfera por cima dos acampamentos está obscurecida por uma multidão de albatrozes (misturados com outras espécies mais pequenas) que sobrevoam continuamente a rookery, seja porque partem para o mar, seja porque regressam aos ninhos. Ao mesmo tempo, vê-se uma multidão de pinguins, para trás e para diante nos estreitos carreiros e no corredor que dá a volta ao acampamento, andando com o pomposo porte militar que os caracteriza. Numa palavra, seja qual for a maneira como encaremos as coisas, nada é mais surpreendente do que o espírito de reflexão manifestado por estes seres emplumados e nada é, com toda a certeza, melhor para fazer meditar qualquer ser inteligente e ponderado.

Na própria manhã da nossa chegada a Christmas Harbour, o imediato, senhor Patterson, mandou descer as embarcações para ir à caça das focas (embora a época ainda não fosse a melhor) e deixou o capitão com um jovem familiar, num ponto da costa a oeste, porque deviam ter algo para fazer no interior da ilha, de que eu não fui informado. O capitão Guy levou uma garrafa com uma carta dentro e, do local onde desembarcou, dirigiu-se a um dos picos mais altos da ilha. É provável que tencionasse deixar a carta naquele ponto para algum navio que ele soubesse vir mais tarde. Assim que o perdemos de vista (Peters e eu estávamos no barco do imediato), começamos a explorar a costa, à procura de focas. Passamos cerca de três semanas nesta tarefa, examinando minuciosamente todos os recantos não só de Kerguelen, mas também de outras ilhotas vizinhas. No entanto, os nossos trabalhos não foram coroados de grande êxito. Vimos muitas focas, mas eram tão desconfiadas que só conseguimos reunir, e com muito custo, trezentas e cinquenta peles ao todo. Os elefantes marinhos ou focas de tromba, abundam ao longo da costa da ilha principal, mas só matamos uma vintena e com grande dificuldade. Nas ilhotas encontramos uma grande quantidade de focas, mas tinham a pele dura e não as importunamos. No dia 11 de novembro voltamos a bordo da escuna, onde encontramos o capitão Guy e o sobrinho, que nos descreveram o interior da ilha como um dos sítios mais tristes e estéreis do mundo. Tinham passado dois dias em terra, devido a um mal-entendido entre eles e o segundo-piloto, que não lhes tinha enviado a tempo uma embarcação para voltarem ao navio.






continua na página 220...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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Leia também:

Edgar Allan Poe - Contos: Silêncio
Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa
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Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)
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Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido (1)
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Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 4 — Revolta e Massacre
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 5 — A Carta de Sangue
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 6 — Um Raio de Esperança
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 7 — Plano de Libertação
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 8 — O Fantasma
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Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 10 — O Brigue Misterioso
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 11 — A Garrafa de Porto
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 13 (1) — Enfim Salvos!
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 13 (2) — Enfim Salvos!
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 14 (1)  — Albatrozes e Pinguins
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 14 (2)  — Albatrozes e Pinguins
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 15 — As Ilhas que não se encontram




O BAILE DA MORTE VERMELHA, DE EDGAR ALLAN POE [Nocautes Literários]






Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXV - De Quanto Pode a Fortuna nas Coisas Humanas e...

O PRÍNCIPE

Maquiavel


AO MAGNÍFICO LORENZO DE MEDICI NICOLÓ MACHIAVELLI






CAPÍTULO XXV



DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE
MODO SE LHE DEVA RESISTIR

(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT
OCCURREN DUM)




Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso. 

Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral.

Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás, isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruína-se segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o momento que atravessa.

Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.

Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim e o outro não.

Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruína, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria.

O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e encontrou tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito. Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto, deu início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de outra parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei em campanha e desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos, julgou não poder negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta.

Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que jamais outro pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois se ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos os planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro Papa teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado daquele modo de proceder a que a natureza o inclinava.

Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a dominam.




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Brevíssima biografia de Nicolau Maquiavel

Nicolau Maquiavel
Filósofo político e escritor italiano
Por Dilva Frazão



Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi um filósofo político, historiador, diplomata e escritor italiano, autor da obra-prima "O Príncipe". Foi profundo conhecedor da política da época, estudou-a em suas diferentes obras. Viveu durante o governo de Lourenço de Médici. Realista e patriota definiu os meios para erguer a Itália.

Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, Itália, no dia 3 de maio de 1469. Sua família de origem Toscana participou dos cargos públicos por mais de três séculos. Filho de Bernardo Maquiavel, jurista e tesoureiro da província de Marca de Ancona e de Bartolomea Nelli, que era ligada às mais ilustres família de Florença.

Interessado pelos problemas de seu tempo, Maquiavel participou ativamente da política de Florença. Com 29 anos, tornou-se secretário da Segunda Chancelaria durante o governo de Piero Soderim. Tinha a seu cargo questões militares de ordem interna como a redação de documentos oficiais. Ocasionalmente, realizou missões diplomáticas envolvendo a França, Alemanha, os Estados papais e diversas cidades italianas, como Milão, Pisa e Veneza...

... A obra “O Príncipe”, escrita por Maquiavel em 1513, e publicada postumamente em 1532, se transformou em sua obra-prima. O livro, um manual sobre a arte de governar, foi inspirado no estilo político de César Bórgia um dos mais ambiciosos comandantes italianos, que ficou conhecido por seu poder e atrocidades que cometeu para conseguir o que queria. Maquiavel viu nele o modelo para os demais governantes da época.

A obra revela a preocupação de Maquiavel com o momento histórico da Itália, fragilizada pela falta de unidade nacional e alvo de invasões e intrigas diplomáticas. Indignado com a decadência política e moral da Itália, o autor dirige conselhos a um príncipe imaginário, com o único objetivo de unificar a Itália e criar uma nação moderna e poderosa.

Para Maquiavel, o importante era realizar o desejo projetado, mesmo sob qualquer forma de governo – monarquia ou república, e por qualquer meio, inclusive a violência. Considerava os fatores morais, religiosos e econômicos, que operavam na sociedade como forças que um governante hábil poderia e deveria utilizar para construir um estado nacional forte. Assim, o príncipe com seu exército nacional que substituísse as precárias forças mercenárias, deveria ser capaz de estender seu domínio sobre todas as cidades italianas, acabando com a discórdia.


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Leia também:

Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXVI - Exortação para procurar tomar a Itália...
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXIV - Por que os Príncipes da Itália perderam seus Estados
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXIII - Como se afastam os aduladores
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXII - Dos Secretários Que os Príncipes Têm Junto de Si
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XXI - O Que Convém a um Príncipe Para Ser Estimado
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XX - Se as fortalezas e muitas outras coisas... são úteis ou não
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XIX - De como se deva evitar o ser desprezado e odiado
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XVIII - De que modo os príncipes devem manter a fé da palavra dada
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XVII - Da Crueldade e da Piedade
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XVI - Da Liberalidade e da Parcimônia
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XV - Daquelas coisas pelas quais os homens, e especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XIV - O Que Compete a Um Príncipe Acerca da Milícia (Tropa)
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XIII - Dos Soldados Auxiliares, Mistos e Próprios
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XII - De Quantas Espécies São as Milícias, e dos Soldados Mercenários
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos XI - Dos Principados Eclesiásticos
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos X - Como se deve medir as forças de todos os Principados
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos IX - Do Principado Civil
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos VIII - Dos que chegaram ao Principado por Meio de Crimes
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos VII - Dos Principados novos que se conquistam com as armas e fortuna...(2)
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos VII - Dos Principados novos que se conquistam com as armas e fortuna...
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos VI - Dos Principados novos que se conquistam com as armas...
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos V - De que modo se deve governar as cidades...
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos IV Por Que o Reino de Dario, Ocupado por Alexandre, Não se Rebelou...
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos III Dos Principados Mistos (conclusão)
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos II Dos Principados Mistos
Maquiavel - O Príncipe: Capítulos I e II e resenha crítica




Ética e Política | Maquiavel | O Príncipe



sábado, 27 de junho de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Quando alertam as crianças contra desconhecidos, quando interpretam na frente delas um incidente sexual, falam-lhes de bom grado de doentes, de maníacos, de loucos; é uma explicação cômoda; a menina apalpada por um desconhecido no cinema, a menina diante de quem um passante desabotoa a braguilha, pensa que enfrentou loucos. Sem dúvida o encontro com a loucura é desagradável: um ataque de epilepsia, de histeria, uma disputa violenta põem em relevo a falha de ordem do mundo adulto e a criança que a testemunha sente-se em perigo; mas enfim, assim como há vagabundos, mendigos, enfermos em uma sociedade harmônica, nela se podem encontrar também certos anormais sem que os alicerces dessa sociedade se abalem. É quando os pais, os amigos, os mestres são suspeitados de celebrarem missas negras às escondidas que a criança tem realmente medo. 


Quando me falaram pela primeira vez de relações sexuais entre homem e mulher, declarei que eram impossíveis, posto que meus pais as deveram ter tido também e eu os estimava demasiado para acreditá-lo. Eu dizia que era por demais repugnante para que o viesse a fazer um dia. Infelizmente iria ser desiludida pouco depois, ouvindo o que meus pais faziam. . . Esse instante foi pavoroso; escondi o rosto na coberta, tapando os ouvidos, e desejei estar a mil quilômetros dali [1].


(1) Citado pelo Dr. Liepmann em Jeunesse et sexualité.


Como passar da ideia de pessoas vestidas e dignas, pessoas que ensinam a decência, a discrição, a razão, à de dois animais nus e que se enfrentam? Há nisso uma contestação dos adultos por si próprios que amiúde lhes abala o pedestal, enche de trevas o céu. Muitas vezes a criança recusa com obstinação a odiosa revelação: "Meus pais não fazem isso", declara. Ou tenta dar a si mesma uma imagem decente do coito: "Quando se quer um filho", dizia uma menina, "a gente vai ao médico, despe-se, põe uma venda nos olhos, porque não se deve olhar; o médico amarra os pais um ao outro e ajuda para que tudo dê certo"; transformara o ato amoroso em uma operação cirúrgica, sem dúvida pouco agradável, mas tão honrosa como uma visita ao dentista. Entretanto, apesar de recusas e fugas, o mal-estar e a dúvida insinuam-se no coração da criança; produz-se um fenômeno tão doloroso quanto o da desmama: não mais porque a criança é separada da carne materna, mas porque, em torno dela, o universo protetor se desmorona; ela se reencontra sem teto sobre a cabeça, abandonada, absolutamente só em face de um futuro cheio de trevas. O que aumenta a angústia da menina é o fato de que ela não consegue delimitar exatamente os contornos da maldição equívoca que pesa sobre ela. As informações obtidas são incoerentes, os livros contraditórios. As próprias exposições técnicas não dissipam a sombra espessa; cem perguntas se apresentam: é o ato sexual doloroso? Ou delicioso? Quanto tempo dura? Cinco minutos ou uma noite inteira? Lê-se por vezes que uma mulher ficou grávida com um só amplexo e outras vezes que permaneceu estéril após horas de volúpia. As pessoas "fazem isso" todos os dias? Ou raramente? A criança tenta informar-se lendo a Bíblia, consultando dicionários, interrogando colegas e conduz-se às apalpadelas na obscuridade e na repugnância. A esse respeito é um documento muito interessante o inquérito levado a efeito pelo Dr. Liepmann. Eis algumas das respostas que lhe foram dadas por moças acerca da iniciação sexual:


Continuei a perambular com minhas idéias nebulosas e absurdas. Ninguém ventilava o assunto, nem minha mãe, nem minha professora: nenhum livro tratava da questão a fundo. Pouco a pouco tecia-se uma espécie de mistério e horror em torno do ato que se me afigurava a princípio tão natural. As meninas mais velhas, de doze anos, valiam-se de brincadeiras grosseiras para criar como que uma ponte entre elas e nossas companheiras de classe. Tudo isso era ainda tão vago e tão repugnante que discutíamos acerca de onde se formavam as crianças e se a coisa só acontecia uma vez para o homem, porquanto o casamento era a causa de tal confusão. Minhas regras, que apareceram quando tive quinze anos, foram para mim uma nova surpresa. Achava-me, por minha vez, como que arrastada até certo ponto na dança. . . . . .

Iniciação sexual! Era uma expressão a que não se devia aludir em casa de meus p a i s ! . . . Procurava nos livros mas atormentava-me e me enervava a procurar sem saber onde encontrar o caminho que devia seguir... Frequentava uma escola de meninos: para o professor a coisa parecia não existir. . . A obra de Horlam, Garçonnet et fillette, trouxe enfim a verdade. Meu estado de crispação, de superexcitação insuportável dissipou-se, embora eu fosse então muito infeliz e me tivesse sido necessário muito tempo para reconhecer e compreender que somente o erotismo e a sexualidade constituíam o verdadeiro amor.

Etapas de minha iniciação: 1º) Primeiras perguntas e algumas noções vagas (nada satisfatórias). De 3 1/2 anos até 1 1 . . . Nenhuma resposta às perguntas que eu fiz nos anos seguintes. Quando tive 7 anos eis que vi, ao dar de comer a uma coelha, filhotes se arrastarem por baixo d e l a . . . Minha mãe disse-me que entre os animais, e também entre os homens, os filhos cresciam no ventre da mãe e saíam pelos flancos. Esse nascimento a partir do flanco pareceu-me absurdo... Uma ama-seca contou-me muitas coisas acerca da gravidez, da gestação, da menstruação... Finalmente a última pergunta que fiz a meu pai sobre sua função real foi-me respondida com histórias obscuras de pólen e pistilo. 2º) Algumas tentativas de iniciação pessoal (11 a 13 anos). Descobri uma enciclopédia e uma obra de medicina. .. Não passou de uma informação teórica constituída de gigantescas palavras estranhas. 3º) Controle dos conhecimentos adquiridos (13 a 20 anos): a) na vida quotidiana; b) nos trabalhos científicos.

Quando eu tinha 8 anos brincava amiúde com um menino de minha idade. De uma feita tratamos do assunto. Eu já sabia, porque minha mãe mo dissera, que uma mulher tem muitos ovos no corpo. . . e que um filho nascia de um desses ovos todas as vezes que a mãe sentia um agudo desejo de tê-lo. . . Tendo dado a mesma explicação a meu colega, dele recebi esta resposta; "Você é completamente estúpida! Quando nosso açougueiro e a mulher querem ter um filho eles se enfiam na cama e fazem porcarias". Fiquei indignada. . . Tínhamos então (por volta de 12 1/2 anos) uma criada que nos contava toda espécie de histórias sujas. Eu não dizia uma palavra sequer a mamãe porque tinha vergonha; mas perguntava-lhe se se pegava um filho sentando nos joelhos de um homem. Ela explicou-me tudo como pôde.

Por onde saíam as crianças, aprendi-o na escola e tive a sensação de que era uma coisa horrível. Mas como vinham ao mundo? Tínhamos da coisa uma ideia até certo ponto monstruosa, principalmente depois que, indo para a escola, certa manhã de inverno, em plena obscuridade, tínhamos juntas encontrado um sujeito que nos mostrara suas partes sexuais e nos dissera, aproximando-se de nós: "Não lhes parece gostoso de mastigar?" Nossa repugnância fora inconcebível e ficamos literalmente revoltadas. Até aos 21 anos eu imaginava que a vinda ao mundo, das crianças, se efetuava pelo umbigo.

Uma menina chamou-me de lado e perguntou: "Sabe de onde saem as crianças?" Finalmente resolveu declarar: "Puxa! Como você é boba! As crianças saem da barriga das mães e para que nasçam é preciso que as mulheres façam com os homens uma coisa imunda!" Depois do que explicou-me mais minuciosamente a porcaria. Mas eu estava toda transtornada, recusando-me absolutamente a considerar possível que ocorressem coisas semelhantes. Dormíamos no mesmo quarto que nossos p a i s . . . Numa das noites que se seguiram, ouvi acontecer o que não considerara possível e tive vergonha, sim, vergonha de meus pais. Tudo isso fez de mim como que um outro ser. Senti horríveis sofrimentos morais. Considerava-me uma criatura profundamente depravada por estar a par dessas coisas.


É preciso dizer que mesmo uma informação coerente não resolveria o problema; apesar de toda a boa vontade dos pais e dos professores, não se poderia pôr em palavras e conceitos a experiência erótica; esta só se compreende vivendo-a; qualquer análise, por mais séria que fosse, teria um aspecto humorístico e deixaria de desvendar a verdade. Partindo dos poéticos amores das flores, das núpcias dos peixes, passando pelos pintainhos, o gato, o cabrito, e chegando até a espécie humana, pode-se teoricamente esclarecer o mistério da geração: o da volúpia e do amor carnal permanece total. Como se explicaria a uma criança de sangue calmo o prazer de uma carícia ou de um beijo? Em família dão-se e recebem-se beijos, às vezes até nos lábios: por que em certos casos esse encontro de mucosas provoca vertigens? Não se descrevem cores a um cego. Enquanto falta a intuição da turvação, e do desejo que dá à função erótica seu sentido e unidade, os diferentes elementos que a constituem parecem chocantes e monstruosos. A menina revolta-se particularmente quando compreende que é virgem e selada e que, para transformá-la em mulher, será necessário que um sexo de homem a penetre. Sendo o exibicionismo uma perversão assaz comum, muitas meninas viram pênis em estado de ereção. Em todo caso observaram sexos de animais e é lamentável que tantas vezes o do cavalo lhes atraia o olhar; concebe-se que se sintam apavoradas. Medo do parto, medo do sexo masculino, medo dos "ataques" que podem ter os casados, repugnância por certas práticas sujas, irrisão em relação a gestos desprovidos de qualquer significação, tudo isso leva amiúde a menina a declarar: "Não casarei nunca" [2]. É a defesa mais segura contra a dor, a loucura, a obscenidade. Em vão tentam explicar-lhe que, chegando o dia, nem a defloração nem o parto lhe parecerão tão terríveis, que milhões de mulheres a isso se resignaram e nem por isso vão passando menos bem. Quando a criança tem medo de um acontecimento exterior, libertam-na, mas predizendo-lhe que mais tarde o aceitará naturalmente: é sua própria pessoa que ela teme então encontrar alienada, perdida no fundo do futuro. As metamorfoses da lagarta que se transforma em crisálida e borboleta põem certo mal-estar no coração: será a mesma lagarta após tão longo sono? Reconhece-se ela sob as asas brilhantes? Conheci meninas para as quais o espetáculo de uma crisálida mergulhava em um devaneio assustado.


[2] "Cheia de repugnância supliquei a Deus que me outorgasse uma vocação religiosa que me permitisse não obedecer às leis da maternidade. E depois de ter longamente pensado nos mistérios repugnantes que sem querer escondia a mim mesma, fortalecida por tanta repulsa como por um sinal divino, concluía: a castidade é certamente minha vocação", escreve _Yassu Gauclère em L'Orange Bleue. Entre outras, a ideia de perfuração horrorizava-a. "Era isso então o que tornava terrível a noite_ de núpcias! Essa descoberta transtornou-me, acrescentando a repugnância que já sentia anteriormente o terror físico dessa operação que eu imaginava extremamente dolorosa. Meu terror houvera ainda aumentado se tivesse suposto que pela mesma via ocorria o nascimento, mas tendo sabido de há muito que os filhos nasciam no ventre da mãe, eu acreditava que dele se destacavam por segmentação."

E, no entanto, a metamorfose ocorre. A menina não lhe percebe o sentido, mas percebe que em suas relações com o mundo e com o próprio corpo alguma coisa vai mudando sutilmente: é sensível a contatos, gostos, odores que antes a deixavam indiferente; imagens barrocas sobem-lhe à cabeça; nos espelhos ela mal se reconhece; sente-se "estranha", as coisas parecem-lhe "estranhas"; assim acontece com a pequena Emily que Richard Hughes descreve em Um Ciclone na Jamaica:


Para refrescar-se, Emily sentara-se na água até o ventre e centenas de peixinhos titilavam-lhe cada polegada do corpo com suas bocas curiosas: era como se fossem beijos leves e sem sentido. Nos últimos tempos, ela pusera-se a detestar que a tocassem, mas aquilo era abominável. Não o pôde mais suportar: saiu da água e tornou a vestir-se.


Até a harmoniosa Tessa de Margaret Kennedy conhece essa estranha perturbação:


Subitamente, sentiu-se profundamente infeliz. Seus olhos contemplaram fixamente a obscuridade do saguão cortado em dois pelo luar que entrava como uma vaga pela porta aberta. Não pôde aguentar. Ergueu-se de um salto com um gritinho exagerado: "Oh! exclamou, como detesto o mundo inteiro!" Correu então a esconder-se na montanha, assustada e furiosa, atormentada por um triste pressentimento que parecia encher a casa sossegada. Aos tropeços pelo atalho, recomeçou a murmurar para si mesma: "Quisera morrer, quisera estar morta".

Sabia que não pensava o que dizia, não tinha a menor vontade de morrer. Mas a violência das palavras parecia satisfazê-la. . .


No livro já citado de Carson Mac Cullers esse momento inquietante é longamente descrito.


Era no verão em que Frankie se sentia enjoada e cansada de ser Frankie. Odiava-se, tornara-se uma vagabunda, uma inútil que rodava pela cozinha: suja e esfomeada, 'miserável e triste. Demais, era uma criminosa. . . Aquela primavera fora uma estação estranha, que não acabava. As coisas puseram-se a mudar e Frankie não compreendia a mudança. . . Havia algo nas árvores verdejantes e nas flores de abril que a entristecia. Não sabia por que estava triste, mas por causa dessa tristeza singular pensou que deveria ter saído da cidade. . . Deveria ter saído da cidade e ido para longe. Pois naquele ano a primavera fora displicente e açucarada. As longas tardes passavam devagar e a doçura verde da estação dava-lhe n o j o . . . Cedo pela manhã ia, às vezes, ao pátio e ficava um bom momento a olhar a alvorada; e era como uma pergunta que lhe surgia no coração e. a que o céu não respondia. Coisas que antes nunca notara começaram a impressioná-la: as luzes das casas que percebia à noite quando passeava, uma voz desconhecida saindo de um beco. Olhava as luzes, ouvia as vozes e algo dentro dela retesava-se à espera. Mas as luzes apagavam-se, a voz calava e, apesar de sua espera, era tudo. Tinha medo dessas coisas que a levavam a perguntar-se repentinamente quem era, que iria tornar-se no mundo, e por que se achava ali a ver uma luz, a escutar e a fixar o céu: sozinha. Tinha medo e o peito oprimia-se estranhamente. . . .

Passeava na cidade e as coisas que via e ouvia pareciam-lhe inacabadas e havia nela aquela angústia. Apressava-se em fazer alguma coisa: mas não era nunca o que devera ter feito. . . Após os longos crepúsculos da estação, depois de ter perambulado pela cidade toda, seus nervos vibravam como uma melodia melancólica de jazz, seu coração endurecia-se e parecia parar.


O que ocorre nesse período perturbado é que o corpo infantil se torna corpo de mulher, faz-se carne. Salvo em casos de deficiência glandular, em que o paciente permanece fixado em seu estádio infantil, a crise da puberdade inicia-se por volta dos 12 ou 13 anos [3]. Tal crise principia muito antes para a menina do que para o menino e provoca mudanças muito mais importantes. A menina enfrenta-a com inquietação, com desprazer. No momento em que se desenvolvem os seios e o sistema piloso, nasce um sentimento que por vezes se transforma em orgulho mas que é originalmente de vergonha; subitamente a criança enche- se de pudor, recusa-se a mostrar-se nua, mesmo às irmãs ou à mãe, examina-se com um espanto misto de horror e é com angústia que espia a turgidez do caroço duro, um pouco doloroso que surge sob as mamas antes tão inofensivas quanto o umbigo. Ela inquieta-se por sentir em si um ponto vulnerável: sem dúvida a machucadura é pequena ao lado de uma queimadura ou de uma dor de dentes, mas, acidentes ou doenças, as dores são sempre anomalias, ao passo que o jovem seio é habitado normalmente por não se sabe que surdo rancor. Alguma coisa está ocorrendo, que não é doença , que está implicada na própria lei da existência e que no entanto é luta, dilaceração. Por certo, do nascimento à puberdade a menina cresceu, mas nunca se sentiu crescer: dia após dia, seu corpo lhe foi apresentado como uma coisa exata, acabada; e eis que agora ela "se forma": a própria palavra a horroriza; os fenômenos vitais só são tranquilizadores quando encontram um equilíbrio e assumem o aspecto imoto de uma flor fresca, de um animal lustroso; mas na germinação de seu seio a menina experimenta a ambiguidade da palavra: vivo. Ela não é ouro nem diamante e sim uma estranha matéria, móvel, incerta, no fundo da qual impuras alquimias se elaboram. Está habituada a uma cabeleira que se desenrola com a tranqüilidade de uma meada de seda, mas essa nova vegetação sob as axilas e no baixo ventre metamorfoseia-a em bicho ou em alga. Estando mais ou menos informada, ela pressente nessas mudanças uma finalidade que a arranca a si própria; ei-la jogada em um ciclo vital que transborda o momento de sua própria existência; ela adivinha uma dependência que a destina ao homem, ao filho, ao túmulo. Em si mesmos os seios apresentam-se como uma proliferação inútil, indiscreta. Braços, pernas, pele, músculos, até as nádegas redondas sobre as quais se senta, tudo tinha até então um emprego claro; somente o sexo, definido como órgão urinário, era um tanto equívoco, mas secreto, invisível a outrem. Por baixo do suéter, da blusa, os seios se exibem e esse corpo, que a menina confundia com seu eu, aparece-lhe como carne; é um objeto que os outros olham e vêem. "Durante dois anos usei capas para esconder o peito, a tal ponto tinha vergonha dele", disse-me uma mulher. E outra contou-me: "Lembro-me ainda do estranho desnorteamento que senti quando uma amiga de minha idade, porém mais precocemente formada, ao apanhar uma bola deixou-me entrever, pela abertura do corpinho, dois seios já pesados: através desse corpo tão próximo do meu e pelo qual o meu iria moldar-se, era de mim mesma que corava". — "Com treze anos passeava de pernas nuas e vestido curto", disse-me uma outra mulher; "um homem fez, zombando, uma reflexão acerca de minhas pernas grossas. No dia seguinte minha mãe obrigou-me a pôr meias e a alongar a saia; mas não esquecerei nunca o choque recebido subitamente ao me ver vista". A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade; torna-se-lhe estranho ; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam-lhe a anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne.


[3] Descrevemos no vol. I, cap. I, os processos propriamente fisiológicos dessa crise.




continua página 48...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.



"O que é uma mulher?"



Simone de Beauvoir - Porque Sou Feminista (1975)




sexta-feira, 26 de junho de 2020

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XX

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XX
EM QUE FIX ENTRA EM CONTATO DIRETO COM PHILEAS FOGG





Durante esta cena que iria talvez comprometer tão gravemente seu futuro, Mr. Fogg, acompanhando Mrs. Aouda, passeava pelas ruas da cidade inglesa. Desde que Mrs. Aouda tinha aceitado sua oferta de conduzi-la à Europa, ele começara a providenciar todos os detalhes necessários para uma viagem tão longa. Que um inglês como ele fizesse a volta ao mundo com uma sacola de viagem na mão, admite-se; mas uma mulher não a poderia empreender nestas condições. Daí a necessidade de comprar roupas e objetos para a viagem. Mr. Fogg se incumbiu desta tarefa com a calma que o caracterizava, e a todas as desculpas e objeções da viúva, confusa com tanta amabilidade:

— É no interesse da minha viagem, está no meu programa, respondia invariavelmente.

Feitas as aquisições, Mr. Fogg e a jovem regressaram ao hotel e jantaram à mesa dos hóspedes, que estava suntuosamente servida. Depois, Mrs. Aouda, um pouco cansada, subiu para o seu apartamento, depois de ter apertado “à inglesa” a mão do seu imperturbável salvador.

O respeitável gentleman, este, absorveu-se durante toda a tarde na leitura do Times e do Illustrated London News.

Se fosse homem capaz de ficar espantado com algo, teria ficado ao não ver aparecer o seu criado à hora de deitar. Mas, sabendo que o paquete para Yokohama não deveria sair de Hong Kong antes do dia seguinte pela manhã, não se preocupou. No dia seguinte, Passepartout não se apresentou ao toque da sineta de Mr. Fogg.

O que pensou o honrado gentleman ao saber que o seu criado não tinha voltado ao hotel, ninguém poderá dizer. Mr. Fogg contentou-se com pegar sua sacola de viagem, pediu para avisarem Mrs. Aouda, e mandou buscar um palanquim. Eram oito horas, e o preamar, que o Carnatic deveria aproveitar para sair dos escolhos do porto, estava previsto para as nove e meia.

Quando o palanquim chegou à porta do hotel, Mr. Fogg e Mrs. Aouda subiram para o confortável veículo, e as bagagens seguiram atrás sobre uma carreta. Meia hora mais tarde, os viajantes desciam no cais de embarque, e aí Mr. Fogg soube que o Carnatic tinha partido na véspera.

Mr. Fogg, que esperava encontrar, ao mesmo tempo, o paquete e o criado, ficara sem um e sem outro. Mas nenhum sinal de desapontamento apareceu em seu semblante, e como Mrs. Aouda o olhava com inquietude, contentou-se em responder:

— É um incidente, senhora, nada mais que um incidente.

Neste momento, um personagem, que o observava com atenção, aproximou-se. Era o inspetor Fix, que o cumprimentou e disse:

— Não era o senhor, como eu, um dos passageiros do Rangoon, que chegou ontem?

— Sim, senhor, respondeu friamente Mr. Fogg, mas não tenho a honra...

— Desculpe-me, mas pensava encontrar aqui o seu criado.

— Sabe onde ele está, senhor? perguntou ansiosamente a jovem.

— O que! respondeu Fix, fingindo surpresa, não está aqui?

— Não, respondeu Mrs. Aouda. Desde ontem que não aparece. Teria embarcado sem nós no Carnatic?

— Sem os senhores, madame?... respondeu o agente. Mas, desculpe a minha pergunta, contavam partir neste paquete?

— Sim, senhor.

— Eu também, madame, e, como vê, estou muito desapontado. O Carnatic, tendo terminado seus reparos, deixou Hong Kong doze horas antes sem avisar ninguém, e agora vai ser preciso esperar oito dias pela próxima partida! Ao pronunciar as palavras “oito dias”, Fix sentia o coração pular de alegria. Oito dias! Fogg retido oito dias em Hong Kong! Haveria tempo para receber o mandado de prisão. Finalmente a sorte declarava-se a favor do representante da lei.

Avaliem, então, o golpe mortal que recebeu, quando ouviu Mr. Fogg dizer com a sua voz calma:

— Mas há outros navios além do Carnatic, parece-me, no porto de Hong Kong!

E Mr. Fogg, oferecendo seu braço a Mrs. Aouda, dirigiu-se para as docas à procura de um navio que estivesse de partida.

Fix, assombrado, foi atrás. Dir-se-ia que um fio o atava àquele homem. Contudo, a sorte parecia verdadeiramente ter abandonado aquele a quem até então tanto servira. Phileas Fogg, durante três horas, percorreu o porto em todos os sentidos, decidido, se preciso fosse, a fretar uma embarcação para o transportar a Yokohama; mas só viu navios carregando ou descarregando, e que, portanto, não poderiam estar de partida. Fix sentiu renascer sua esperança. Entretanto Mr. Fogg não se desconcertava, e ia continuar a sua busca, mesmo que precisasse passar a Macau, quando foi abordado por um marinheiro na entrada do porto.

— Vossa Honra procura um barco? perguntou-lhe o marinheiro, tirando o chapéu.

— Tem um barco pronto para partir? perguntou Mr. Fogg.

— Sim, Vossa Honra, o barco de pilotagem n.° 43, o melhor da frotilha.

— Navega rápido?

— Entre oito e nove milhas, mais ou menos. Quer vê-lo?

— Sim.

— Vossa Honra ficará satisfeito. É algum passeio no mar?

— Não. De uma viagem.

— Uma viagem?

— Encarregar-se-ia de levar-me a Yokohama?

O marinheiro, a estas palavras, deteve os movimentos do braço, esbugalhou os olhos.

— Vossa Honra está brincando? disse.

— Não! Perdi a partida do Carnartic, e preciso estar dia 14, o mais tardar, em Yokohama, para tomar o paquete para São Francisco.

— Lamento, respondeu o piloto, mas é impossível.

— Ofereço cem libras (2.500 F) por dia, e uma gratificação de duzentas libras se chegar a tempo.

— A sério? perguntou o piloto.

— Muito a sério, respondeu Mr. Fogg.

O piloto afastara-se um pouco para o lado. Olhava o mar, evidentemente hesitando entre o desejo de ganhar uma soma enorme e o medo de se aventurar tão longe. Fix estava com pânicos mortais.

Neste interim, Mr. Fogg voltara-se para Mrs. Aouda.

— Não tem medo, madame? perguntou.

— Consigo, não, senhor Fogg, respondeu a jovem.

O piloto aproximara-se outra vez do gentleman, e girava o chapéu entre as mãos.

— Então, piloto? disse Mr. Fogg.

— Então, Meu Senhor, respondeu o piloto, não posso arriscar nem meus homens, nem a mim, nem mesmo a si, em uma travessia tão longa num barco de vinte toneladas apenas, e nesta época do ano. Além disso, não chegaríamos a tempo, porque há mil seiscentas e cinqüenta milhas de Hong Kong a Yokohama.

— Mil e seiscentas apenas, disse Mr. Fogg.

— Dá na mesma.

Fix respirou fundo.

— Mas, acrescentou o piloto, haverá talvez meio de se arranjar de outro modo.

Fix não respirava mais.

— Como? perguntou Phileas Fogg.

— Indo a Nagasaki, a extremidade sul do Japão, mil e cem milhas, ou apenas a Shangai, oitocentas milhas de Hong Kong. Nesta última travessia, não nos afastaríamos da costa chinesa, o que seria uma grande vantagem, ainda mais que aí as correntes levam para o norte.

— Piloto, respondeu Phileas Fogg, é em Yokohama que devo tomar o paquete, não em Shangai ou em Nagasaki.

— Por que não? respondeu o piloto. O paquete para São Francisco não parte de Yokohama. Faz escala em Yokohama e em Nagasaki, mas o seu porto de partida é Shangai!

— Está certo do que diz?

— Certo.

— E quando o paquete deixa Shangai?

— Dia 11, às sete da noite. Temos, pois, quatro dias pela frente. Quatro dias, são noventa e seis horas, e com uma média de oito milhas por hora, se tivermos sorte, se o vento soprar de sudeste, se o mar estiver calmo, podemos fazer as oitocentas milhas que nos separam de Shangai.

— E pode partir...

— Em uma hora. O tempo de comprar os víveres e aparelhar.

— Negócio fechado... É dono do barco?

— Sim, John Bunsby , patrão da Tankadère.

— Quer um sinal?

— Se isso não ofender Vossa Honra.

— Aqui estão duzentas libras por conta... Senhor, acrescentou Phileas Fogg voltando-se para o agente, se quiser aproveitar...

— Senhor, respondeu resolutamente Mr. Fix, ia lhe pedir esse favor.

— Bem. Em meia hora estaremos a bordo.

— Mas o pobre rapaz... disse Mrs. Aouda, a quem o desaparecimento de Passepartout preocupava extremamente.

— Vou fazer por ele tudo o posso fazer, respondeu Phileas Fogg.

E, enquanto Fix, nervoso, febril, raivoso, se encaminhava para o barco-piloto, os dois se dirigiram para os escritórios da polícia de Hong Kong. Ali, Phileas Fogg deu a descrição de Passepartout, e deixou uma quantia suficiente para repatriá-lo.

A mesma formalidade foi cumprida junto ao agente consular francês, e o palanquim, após passar pelo hotel, onde as bagagens foram pegas, reconduziu os viajantes ao embarcadouro.

Soavam três horas. O barco-piloto n.° 43, com sua tripulação a bordo, seus víveres embarcados, estava pronto para largar.

A Tankadère era uma pequena goleta atraente de vinte toneladas, bem pinçada na frente, bem solta em suas maneiras, muito alongada em suas linhas d’água. Parecida um iate de corrida. Seus cobres brilhantes, sua ferragens galvanizadas, sua coberta branca como marfim, indicavam que o mestre John Bunsby sabia conservá-la em bom estado. Seus dois mastros inclinavam-se um pouco para trás. Levava velas latinas, mezena, traquete, e, com vento pela popa, podia cortar o mar maravilhosamente. Devia navegar rápido, e, de fato, já ganhara diversos prêmios nos “matches” de barcos de pilotagem.

A tripulação da Tankadère era composta pelo mestre John Bunsby e quatro homens. Eram desses marinheiros valorosos que, com qualquer tempo, se aventuram à busca dos navios, e conheciam muito bem estes mares. John Bunsby , homem de cerca de quarenta e cinco anos, vigoroso, bronzeado de sol, o olhar vivo, a expressão enérgica, bem aprumado, bom no que fazia, teria inspirado confiança aos mais medrosos.

Phileas Fogg e Mrs. Aouda passaram ao navio. Fix já se achava ali. Pela escotilha de popa da goleta, descia-se para um quarto quadrado, cujas anteparas se desdobravam em forma de catres por cima de um divã circular. No meio, uma mesa iluminada por um lampião que oscilava. Era pequeno, mas limpo.

— Lamento não poder lhe oferecer coisa melhor, disse Mr. Fogg a Fix, que se inclinou sem responder.

O inspetor de polícia sentiu uma espécie de humilhação em aproveitar assim os obséquios do senhor Fogg.

— Com certeza, pensava, é um tratante muito delicado, mas é um tratante.

As três e dez, as velas foram içadas. O pavilhão inglês tremulava no casco da goleta. Os passageiros estavam sentados no convés. Mr. Fogg e Mrs. Aouda lançaram um último olhar para o cais, para ver se Passepartout aparecia.

Fix não estava sem apreensões, porque o acaso poderia conduzir àquele lugar o infeliz rapaz a quem tratara tão indignamente, e então dar-se-iam explicações, das quais Fix não se sairia muito bem. Mas o francês não apareceu, e, sem dúvida, o narcótico embrutecedor ainda o tinha sob sua influência.

— Afinal, o mestre John Bunsby fez-se ao largo, e a Tankadère, tomando o vento em suas velas, lançou-se balouçando sobre as ondas.





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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster


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A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS - Jules Verne
│ Resenha Animada