terça-feira, 4 de março de 2025

Pushkin - A dama de espadas: Cap. 01

A DAMA DE ESPADAS

 Alexander Pushkin

Capítulo 1


     A longa noite de inverno passou veloz no salão da casa de Narumov, oficial da Cavalaria. Totalmente envolvidos pelos jogos de cartas, os convidados se surpreenderam quando a refeição foi servida, por volta das cinco da manhã. Os que haviam ganho estavam famintos. Já os perdedores mal tocavam na comida. Limitavam-se a deixar o olhar perdido nos pratos vazios. Somente quando os garçons começaram a abrir garrafas de champanhe é que a conversa ganhou ânimo:

— E como você se saiu, Surine? — perguntou o anfitrião. 
— Ah, eu perdi, como sempre. Devo ser o sujeito mais azarado do mundo. Mesmo me esforçando e mantendo a concentração, eu não consigo ganhar. 
— E mesmo assim você não pensa em largar o tapete verde, né? Surine, sua perseverança me emociona!
 — Mas, então, o que você pensa do Hermann? — disse outro convidado, apontando para um jovem engenheiro. — Ele nunca pôs uma carta nas mãos, nunca apostou um centavo e, mesmo assim, vem aqui, senta-se e fica até às cinco da manhã assistindo a nossos jogos.

      Surpreso por ser citado, Hermann falou:

 — Eu me interesso muito por jogos — disse o engenheiro —, mas não tenho condições de sacrificar o necessário na esperança de ganhar o supérfluo.
— O Hermann é alemão, por isso é econômico e não há nada de errado nisso. Mas se há uma pessoa que eu realmente não entendo é a minha avó, a Condessa Ana Fedotovna — comentou Tomsky.
— E por que não? — um dos convidados perguntou. 
— Eu não entendo por que ela não joga a dinheiro. 
— Parece bem normal para mim o fato de uma senhora de oitenta anos não querer apostar seu dinheiro — ponderou Narumov. 
— Acontece que ela não é uma velhinha qualquer. Não me digam que  vocês não conhecem a história? — perguntou Tomsky, medindo seus companheiros com um olhar investigativo.
— Não faço a mínima ideia. Que história é essa? — perguntou o anfitrião enquanto os demais convidados faziam um silêncio ansioso, à espera da resposta. 
— Então ouçam bem. Eu vou contar para vocês.
     
      O grupo de jogadores se ajeitou em suas cadeiras e alguns até inclinaram um pouco o torso para que sua cabeça e ouvidos chegassem mais perto de Tomsky que começava a falar:

— Há muito tempo, uns sessenta anos atrás, minha avó foi a Paris, onde causou uma grande sensação. As pessoas a seguiam pelas ruas para vislumbrar a “Vênus Moscovita”. Richelieu se apaixonou por ela e minha avó conta que ele quase se matou devido ao modo indiferente que ela o tratava. Naquela época, as mulheres costumavam jogar por dinheiro bem mais do que hoje em dia. Minha avó adorava participar dos jogos de cartas na alta sociedade de Paris. Meu avô, no início, Bancava esse prazer dela, mas como minha avó perdia frequentemente, ele passou a reclamar dos gastos. Então, para poder continuar jogando sem aborrecê-lo, ela pediu uma grande quantia em dinheiro para o Duque de Orleãs. Minha avó tinha um Pressentimento de que iria ganhar. Com o dinheiro do jogo, pagaria sua dívida com o Duque de Orleãs e usaria o resto para jogar sem depender de meu avô.
— Nossa! Era bem moderna a sua avó, hein, Tomsky? — brincou um dos convidados.
— Era sim — respondeu o neto com orgulho. 
— Mas e daí? Sua avó ganhou o jogo e o dinheiro? — queria saber Hermann.

      Tomsky retirou o sorriso de orgulho do rosto e falou:

— Ela perdeu tudo na mesma noite. Fracassou em todas as rodadas de carteado.

     O grupo de jogadores, antes animado, agora ouvia Tomsky com um silêncio triste:

— Quando chegou em casa, minha avó comunicou o ocorrido ao meu avô e ordenou que ele pagasse a dívida. Tiveram uma discussão calorosa. Ele estava cansado de pagar as dívidas de jogo dela. Pelas contas dele ela havia consumido algo em torno de meio milhão de francos em seis meses e, mesmo temendo a reação dela, se recusou a pagar a dívida. Ela deu uma forte bofetada na orelha do marido e foi dormir sozinha para demonstrar insatisfação. 

      Como as pessoas pareciam interessadas na história, Tomsky continuou:

— No dia seguinte, minha avó procurou novamente meu avô. Ela pensava que, por ter discutido com ele na noite anterior, ele estaria mais calmo e lhe daria o dinheiro. Mas, na verdade, ele estava aborrecido e novamente lhe negou o dinheiro. Desesperada, ela resolveu pedir auxílio para algum amigo e entrou em contato com o Conde de Saint Germain.
— O Conde de Saint Germain? — perguntou admirado um dos jogadores. 
— Esse conde não era um aventureiro famoso? — perguntou Hermann. 
— Sim, o próprio Conde de Saint Germain. Ele era uma figura fascinante.  Dizem que era alquimista, que conseguia transformar chumbo em ouro. Há relatos de que Germain descobriu o elixir da vida e é um imortal. Outros dizem que descobriu a pedra filosofal e outras maravilhas. Para algumas pessoas, ele era um espião, para outras um vigarista, mas o certo é que a sociedade francesa da época adorava a sua presença.
— Eu ouvi dizer que ele era ou é, eheheh, um sujeito galante e conquistador de mulheres — comentou um capitão.
— Sua avó era amiga dele? 
— Hermann, ela havia conhecido o conde na noite anterior, mas decidiu lhe pedir dinheiro porque teria vergonha de acionar um amigo mais antigo para cobrir uma dívida de jogo. Além disso, muita gente dizia que o Conde de Saint Germain era muito rico e tais boatos condiziam com seus modos e roupas.
— E o conde emprestou o dinheiro? — quis saber um apostador mais apressado.
— Calma amigo, eu chego lá — respondeu Tomsky sorrindo. — Ao receber o convite para encontrar minha avó, o conde prontamente se dirigiu à sua casa. Com o seu jeito encantador, a Vênus moscovita contou sobre sua falta de sorte nas cartas e a frieza de seu marido em não querer solucionar o problema. O conde  ouviu atentamente, orgulhoso com a possibilidade de salvar aquela linda mulher da vergonha da dívida. Quando minha avó terminou o relato, Saint Germain falou:
— Eu certamente poderia lhe emprestar a quantia necessária para pagar essa dívida. Contudo, penso que você não ficaria em paz enquanto não me pagasse e a última coisa que eu quero é causar preocupações que venham a marcar o seu belo rosto. Por isso tenho uma ideia melhor.
— Que ideia seria essa, conde? — perguntou minha avó com o coração aflito.
— Você pode ganhar seu dinheiro em uma nova aposta!

     O sorriso tímido que minha avó trazia na boca desapareceu com a proposta do conde.

— Mas como vou reaver toda essa quantia se não me restou nada para iniciar um novo jogo?

      O conde sorriu animado e disse:

 — Mas não é necessário dinheiro, querida! Escute bem a minha ideia.

      Tomsky olhou para os seus amigos jogadores. O sol frio do inverno começava a se espreguiçar atrás das janelas do salão. Com solenidade, Tomsky falou:

— O conde aproximou sua boca da orelha de minha avó e lhe revelou um segredo pelo qual qualquer um de nós aqui pagaria uma pequena fortuna. Naquela mesma noite minha avó compareceu ao palácio de Versalhes, onde seria realizado o JEU DE LA REINE [1]. O Duque de Orleãs estava presente. Quando ele se aproximou, ela deu uma desculpa qualquer por ainda não ter pago sua dívida e o convidou para uma nova partida. Confiando que poderia vencê-la mais uma vez, ele aceitou. O jogo estava bem disputado, até minha avó escolher três cartas imbatíveis em sequência e vencer o jogo, saldando sua dívida.
— Ah, isso foi sorte — disse um dos convidados. 
— Não sei se acredito nisso — desconfiou Hermann. 
— Vai ver as cartas estavam marcadas — sugeriu outro convidado. 
— Eu penso que não — Tomsky respondeu seriamente.
— Espere um pouco, Tomsky — disse Narumov. — Você tem uma avó que sabe como destrinchar três cartas vencedoras em sequência e ela nunca lhe contou o segredo de como fazer isso? 
— Aí é que está o mistério de toda esta história, amigo. Ela teve quatro filhos. Meu pai e mais três, todos eles foram jogadores determinados e ambiciosos e mesmo assim nenhum deles conseguiu lhe arrancar o segredo das cartas. 
— E quem lhe contou a história? — perguntou Hermann.
— Meu tio, o conde Ivan Ilitch, jurando sob sua honra que era uma história verdadeira. Ele também me contou que outro nobre, chamado Tchaplitzky, quando jovem, perdeu trezentos mil rublos para o famoso jogador Zoritch. Minha avó nunca gostou das extravagâncias da juventude, mas teve pena do rapaz e resolveu ajudá-lo a vencer Zoritch, se ele prometesse nunca mais voltar a jogar após a vitória. Na mesma noite, Tchaplitzky jogou três cartas em sequência e recuperou todo o dinheiro que havia perdido.
— Esse Tchaplitzky não é o mesmo milionário que ficou famoso por morrer na miséria? — perguntou Hermann.
 — Sim, é ele mesmo, e se não me engano ficou paupérrimo após voltar a jogar — confirmou Tomsky com seriedade. — Mas creio que agora é hora de irmos dormir, pois o sol já vai alto no céu.

      Os convidados esvaziaram seus copos, despediram-se e foram embora.

continua na pág 06...
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[1] JEU DE LA REINE: o jogo de cartas da Rainha da França, um grande evento social da época

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