terça-feira, 18 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - d)

 em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(d)

continuando...

      Diziam isto com um rolar de provinciano, sem qualquer aspereza, pois todos eram notabilidades em sua província, que, como tantos outros, poderiam ter ido à Paris, ao magistrado de Caen; tinham oferecido várias vezes um cargo no Supremo Tribunal; mas haviam preferido ficar no mesmo lugar, por amor à sua cidade, ou à sua glória ou à vida obscura, ou porque eram reacionários, e pelo prazer das amizades de vizinhança nos castelos da região. Aliás, muitos não voltavam diretamente para a sua terra. Pois-visto que a baía de Balbec era um pequeno universo à parte no meio do grande, um buquê de estações onde estavam reunidos em círculo os dias variados e os meses sucessivos, de modo que, não só nos dias em que se avistava Rivebelle, o que era sinal de tempestade, sobre cujas casas o sol brilhava, ao passo que em Balbec o céu estava negro, mas também, quando os dias frios já haviam atingido Balbec, podia-se ter certeza de obter dois ou três meses suplementares de calor na margem oposta; os hóspedes habituais do Grande Hotel cujas férias começavam tarde, ou duravam mais tempo mandavam, ao principiarem as chuvas e os nevoeiros, à aproximação do outono, colocar suas malas num barco e partiam ao encontro do verão em Rivebelle ou Costedor. Aquele grupinho do hotel de Balbec olhava com ar desconfiado todos os recém-chegados; aparentando não se interessar por eles, iam todos pedir informações a seu respeito ao amigo comum; pois o mordomo era o mesmo-Aimé-que voltava todos os anos para a temporada de verão e lhes reservava as mesas; e as senhoras suas esposas, sabendo mulher de Aimé esperava um neném, trabalhavam cada uma, após o almoço, a peça do enxoval, sempre nos examinando com seus lorgnons, a minha avó e a mim, porque comíamos ovos cozidos na salada, o que era considerado vulgar; não se praticava na boa sociedade de Alençon. Afetavam uma atitude de ironia desdenhosa em relação a um francês que era chamado de Majestade e que se autoproclamara rei de uma ilhota da Oceania povoada por alguns selvagens. Estava no hotel com sua bonita amante, à cuja passagem, quando ela ia tomar banho os garotos gritavam:
     "Viva a rainha!", porque ela os cobria com uma porção de moedas de cinquenta cêntimos. O magistrado supremo e o presidente da ordem dos Advogados nem sequer desejava parecer que a via e, se algum dos amigos a olhava, julgavam-se no dever de prevenir que se tratava de uma operária.

- Mas tinham-me assegurado que em Ostende eles ocupavam a cabine.
- Lógico! Alugam-na por vinte francos. Você pode ocupá-la, se lhe agradar. E sei, de fonte limpa, que ele mandou pedir uma audiência ao rei, o qual lhe fez saber que não tinha por que entrar em relações com soberanos de opereta. 
- Ah, na verdade é engraçado... Há cada tipo de gente!  

     Sem dúvida, tudo aquilo era verdade; mas era igualmente pelo aspecto de se sentir que, para uma boa parte da multidão, eles não passavam de bons burgueses, que não conheciam aquele rei e aquela rainha, pródigos de seu dinheiro; o tabelião, o magistrado, o presidente, à passagem do que chamavam uma máscara; sentiam tanto mau humor e manifestavam em voz bem alta uma indignação que estava a par seu amigo, o mordomo, o qual, obrigado a fazer boa cara aos mais generosos que autênticos, entretanto, sempre atendendo às suas o dirigia de longe aos antigos clientes um significativo piscar de olhos. Talvez tivesse também um pouco desse mesmo tédio de serem tidos, erroneamente, menos "chiques" e de não poderem explicar que o eram ainda mais no fundo daquele "Moço bonito!", com que qualificavam um jovem engomado, filho de um grande industrial e que, todos os dias, com uma roupa nova, orquídea na botoeira, almoçava com champanha e ia, pálido, impassível, um sorriso de indiferença nos lábios, jogar, na mesa do cassino, somas "que ele não tem fundos para perder", dizia com ar bem-informado o tabelião do primeiro magistrado, cuja mulher "sabia de boa fonte" que aquele jovem fazia os pais morrerem de desgosto.
     Por outro lado, o presidente da Ordem dos Advogados e seus amigos, poupavam sarcasmos a propósito de uma velha dama rica e nobre, que andava levando consigo todos os criados. Todas as vezes que a mulher do tabelião e a do primeiro magistrado a viam na sala de jantar, por ocasião das refeições, examinavam-na insolentemente com suas lentes, com o mesmo ar minucioso e desafiador como se ela fosse algum prato de nome pomposo, mas de aparência suspeita, que, após o resultado desfavorável de uma observação metódica, é mandado embora com um gesto distante e uma careta de desgosto.
     Com isso, certamente queriam indicar apenas que, se havia certas coisas que lhes faltavam no caso, algumas prerrogativas da velha dama, e o fato de estarem em relações com ela -, não era porque não pudessem, mas porque não queriam tê-las. Porém, tinham acabado por se convencer elas próprias; e era a supressão de todo desejo, de toda curiosidade pelas formas da vida que não conheciam, da esperança de agradar a novas pessoas, substituídas nelas por um desdém fingido, uma alegria artificial, que apresentava o inconveniente de colocar o desprazer sob a etiqueta de contentamento e as fazia mentir perpetuamente a si mesmas, duas condições para que fossem infelizes. Mas, sem dúvida, todo mundo naquele hotel agia da mesma maneira que elas, conquanto sob formas diversas; sacrificava, senão ao amor-próprio, ao menos a certos princípios de educação, ou a alguns hábitos intelectuais, a deliciosa inquietação de misturar-se a uma vida ignorada. Sem dúvida, o microcosmo em que se isolava a velha dama não estava empeçonhado de azedumes atrozes como o grupo em que riam de raiva a mulher do tabelião e a do primeiro magistrado. Ao contrário, estava embalsamado num perfume requintado e velhusco, mas que não era menos artificial. Pois no fundo a velha dama teria provavelmente encontrado em seduzir, em atrair a misteriosa simpatia das criaturas novas (ao mesmo tempo que ela própria se renovava), um encanto despojado do prazer que há em frequentar apenas pessoas do seu próprio mundo e em recordar que, sendo sua sociedade a melhor que existe, torna-se desprezível o desdém alheio e mal informado. Talvez sentisse que, chegando incógnita ao Grande Hotel de Balbec, teria feito sorrir, com seu vestido de lã negra e sua touca fora de moda, a algum gaiato que teria murmurado: "que múmia!", ou principalmente a um homem de talento que, tendo conservado, como o primeiro presidente, entre as suíças grisalhas, um rosto jovem e olhos espirituosos como ela os amava, e que talvez houvesse logo indicado à lente aproximadora do lorgnon conjugal o aparecimento desse fenômeno insólito; talvez fosse por inconsciente receio desse primeiro minuto, que sabemos ser breve mas que não é menos temido -como da primeira vez que a gente mergulha-, que aquela velha dama enviava previamente um criado para pôr o hotel a par de seus hábitos e, cortando as gentilezas do gerente, subia para o quarto com uma rapidez em que havia mais timidez do que orgulho, quarto onde as cortinas pessoais, substituindo as que pendiam das janelas, dos biombos e das fotografias, colocavam de tal forma entre ela e o Mundo exterior, a que devia adaptar-se, a divisão de seus hábitos, que era mais na casa que morava e na qual permanecera...
     Desde então, tendo colocado entre ela de um lado, e o pessoal dos fornecedores, do outro, os seus criados que recebiam em vez dela, o daquela nova humanidade e mantinham em torno à sua patroa a atmosfera; tendo posto os seus preconceitos entre ela e os banhistas, sem se preocupar em agradar às pessoas que seus amigos não teriam recebido; era no seu mundo que continuava a viver pela correspondência com suas amigas, pela recordação, consciência íntima que possuía de sua posição, da qualidade de seus modelos de competência de sua polidez. Todos os dias, quando ela descia para dar um passeio em sua cabeça, sua criada de quarto, que carregava seus objetos pessoais, seu lacaio, que seguia à sua frente, davam a impressão dessa sentinela às portas de uma embaixada embandeirada com as cores do país do qual dá garantia para ela, em pleno solo estrangeiro, o privilégio da extraterritorialidade. Ela não deixou o quarto antes do meio da tarde; no dia em que chegamos vimos na sala de jantar aonde o gerente, como éramos recém-chegados, nos colocou sob sua proteção, à hora do almoço, como um oficial que conduz recrutas ao alfaiate para fardá-los; mas, em compensação, vimos, logo após, um fidalgo com sua filha, de uma obscura porém antiga família da Bretanha, o Sr. e a Srta. de Stermaria; cuja mesa nos haviam dado, julgando que não voltariam naquela noite. Tinham vindo a Balbec, exclusivamente, para se encontrarem com castelães que conheciam nos arredores, e não passavam pela sala de jantar do hotel, entre os convites de fora e as visitas realizadas, senão o tempo estritamente necessário. Era a sua elegância que os preservava de toda simpatia humana, de todo interesse pelos conhecidos sentados a seu redor, e no meio dos quais a Srta. de Stermaria mantinha o ar glacial apressado, distante, rude, exigente e mal intencionado, que se põe no carro-restaurante no meio de viajantes nunca vistos, e a quem jamais voltaremos a ver, e com quem a gente não admite outras relações senão a defesa, contra nosso frango frio e do nosso canto no vagão. Mal começávamos a almoçar, vieram nos fazer erguer da mesa por ordem do Sr. de Stermaria, que acabavam de chegar e, sem o menor gesto de desculpas para nós, pediu em voz alta ao mordomo que cuidasse para que aquele erro não mais se repetisse, pois era-lhe desagradável que "pessoas a quem não conhecia" tivessem ocupado a sua mesa.
      Com certeza, no sentimento que levava determinada atriz (aliás conhecida devido à sua elegância, seu espírito, suas lindas coleções de alemão do que por seus desempenhos no Odeon), e mais o seu amante, rapaz rico, pelo qual ela se empenhara, bem como dois homens muito em evidência da aristocracia, a levarem uma vida à parte, a só viajarem juntos, a almoçar Balbec muito tarde, quando todas as pessoas já haviam terminado, a passar o dia inteiro em seu salão jogando cartas, não entrava má vontade alguma, apenas as exigências do gosto que tributavam a certas formas de engenho na conversação, a certos refinamentos de boa comida, o que só lhes dava para viverem e comerem juntos, e lhes tornaria insuportável a vida em comum com pessoas que não fossem iniciadas em tudo aquilo. Mesmo diante de uma mesa posta ou de uma mesa de jogo, cada um deles precisava saber que no conviva ou parceiro sentado à sua frente repousavam, em suspenso e sem utilidade, certos conhecimentos que permitem reconhecer a obra de carregação de que muitas casas parisienses se enfeitam como se se tratasse de uma "Idade Média" ou de uma "Renascença" autênticas e, em todas as coisas, critérios que lhes eram comuns para distinguir o bom do mau. Sem dúvida, naqueles momentos não era mais do que por uma rara e engraçada interjeição, atirada no meio do silêncio da refeição, ou da partida, ou pelo vestido novo e encantador que a jovem atriz pusera para almoçar ou jogar pôquer, que se manifestava a existência especial em que seus amigos queriam ficar mergulhados em toda a parte. Assim, porém, envolvendo-os em hábitos que conheciam a fundo, bastava ela para protegê-los contra o mistério da vida ambiente. Durante as longas tardes, o mar só estava suspenso diante deles como uma tela de cor agradável pendurada no toucador de um rico solteirão, e somente no intervalo das cartadas é que um dos jogadores, não tendo coisa melhor, erguia os olhos para o mar, a fim de ter uma indicação acerca do tempo ou da hora, e lembrar aos outros que a merenda esperava. E de noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos, derramando luz na sala de jantar, transformavam-na num imenso aquário maravilhoso diante de cuja parede de vidro a população obreira de Balbec, os pescadores e também as famílias de pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para contemplar, vagarosamente embalada em redemoinhos de ouro, a vida luxuosa daquelas pessoas, tão extraordinária para os pobres como a dos peixes e dos moluscos estranhos (uma grande questão social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se as pessoas obscuras que olham avidamente dentro da noite virão colhê-los em seu aquário e devorá-los). Entretanto, talvez houvesse, no meio da multidão parada e confundida na noite, algum escritor, algum amador de ictiologia humana, que, observando as maxilas dos velhos monstros femininos se fecharem sobre um pedaço de alimento engolido, se interessasse em classificá-los por suas raças, pelos caracteres inatos e também pelos adquiridos, que fazem que uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, com a salada como uma La Rochefoucauld porque desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.
      Àquela hora, viam-se os três homens de smoking esperando a mulher que estava atrasada, a qual, em breve, depois de ter chamado o lift do seu andar, saía do elevador como de uma caixa de brinquedos, num vestido quase sempre novo e com écharpes escolhidas segundo o gosto especial do seu amante. Os quatro, que eram de opinião de que o fenômeno internacional do Palace, implantado em Balbec, fizera ali florir o luxo mas não a boa cozinha, entravam num carro e iam jantar a meia légua dali, num pequeno e bem considerado restaurante, onde; tinham intermináveis conferências como cozinheiro sobre a composição do cardápio e a confecção dos pratos. Durante esse trajeto, a estrada margeada de mansões que parte de Balbec não era para eles, - senão a distância que seria preciso um pouco distinta, na noite negra, da que separava suas residências parisienses do café Anglais ou da Tour d'Argent-antes de chegar ao pequeno e fino restaurante onde, enquanto os amigos do rapaz rico o invejavam por ter uma amante tão bem vestida, as écharpes desta se desdobravam diante do pequeno grupo como um véu macio e perfumado, mas que era o bastante para separá-los do resto do mundo.
     Infelizmente para o meu sossego, eu estava bem longe de ser e daquela gente. Alguns ali me preocupavam; gostaria de não ser ignorado homem de testa fugidia, de olhar esquivo, que vagava entre os antolhos, os preconceitos e de sua educação, o grão-senhor daquelas terras, e que não era menos que o cunhado de Legrandin, que vinha às vezes de visita a Balbec e que aos domingos, ia para o garden-party semanal que ele e a mulher ofereciam, levavam do hotel uma boa parte de seus hóspedes, porque um ou dois dentre eles eram de fato convidados para a festa, e os outros, para não darem a impressão que não o eram, escolhiam esse dia para fazer uma excursão distante. Todavia a primeira vez em que entrou no hotel foi muito mal recebido, pois o pessoal acabara de chegar da Côte d'Azur, ainda não sabia de quem se tratava, estava vestido de flanela branca, mas também, fiel aos velhos costumes franceses e ignorantes da vida dos Palaces, tirara o chapéu ao entrar no saguão por lábia às senhoras, o que fez com que o gerente nem sequer tocasse no seu chapéu para cumprimentá-lo, julgando que se tratasse de alguém de condição muito humilde, que denominava homem "saindo do ordinário". Somente a mulher dele chamou a atenção para o recém-chegado, que denotava a vulgaridade afetada das pessoas elegantes, e declarou, com base no discernimento infalível e na indiscreta autoridade de uma pessoa para quem a alta sociedade de Le Mans não tem segredos, que sentia-se diante dela a presença de um homem de grande distinção; muito bem-educado, e que se sobressaía dentre toda aquela gente que encontrava em Balbec e que ela considerava indignos de convívio enquanto frequentasse. Esse juízo favorável que pronunciou a respeito do cunhado de Legrandin se fundava provavelmente no aspecto apagado de alguém que nada tem para se impor; talvez tivesse reconhecido nesse fidalgo do campo com sacristão, os sinais maçônicos de seu próprio clericalismo.
      Por mais que me certificasse de que aqueles rapazes que todos montavam a cavalo em frente ao hotel eram os filhos do proprietário mal reputado de um magazine de novidades e que meu pai nunca teria consentido conhecer, a vida na praia os transformava, a meus olhos, em estátuas equestres semideuses, e o melhor que podia esperar era que nunca deixassem de lançarem olhares sobre o pobre rapaz que eu era, que só deixava a sala de jantar do hotel para ir sentar-se na areia. Gostaria de inspirar simpatia, até mesmo ao aventureiro que fora o rei de uma ilha deserta da Oceania, e até ao jovem tuberculoso, e aprazia-me pensar que sob aquele seu exterior insolente haveria uma alma tímida e carinhosa que talvez me guardasse tesouros de afeto. Aliás (ao contrário do que se costuma dizer das amizades feitas em viagem), como o sermos vistos na companhia de determinada pessoa pode nos conferir, numa praia para onde às vezes voltaremos, um prestígio seu igual na verdadeira vida mundana, não existe nada como as amizades dos banhos de mar, as quais a gente não só não evita como cultiva cuidadosamente na vida de Paris. Preocupava-me com a opinião de todas essas notabilidades momentâneas ou locais a meu respeito, devido à minha inclinação a me colocar no lugar das pessoas e a recriar seu estado de espírito; imaginava-as situadas não no seu nível real, aquele que teriam ocupado em Paris, por exemplo, e que seria um nível bastante inferior, mas no que pensavam ter, efetivamente, possuíam em Balbec, onde a falta de uma medida comum lhes dava uma superioridade relativa, emprestando-lhes um singular interesse. E, de todas essas pessoas, nenhuma havia cujo desprezo mais me fosse penoso como o do Sr. de Stermaria. Pois reparara em sua filha desde a entrada, seu lindo rosto pálido e quase azulado, o que havia de particular no porte de sua alta estatura, no seu modo de andar, e que com boas razões me evocava sua linhagem, sua educação aristocrática, e tanto mais nitidamente porque conhecia seu nome como aqueles temas expressivos criados pelos compositores de gênio e que pintam de modo esplêndido o fulgor das chamas, os murmúrios do rio e a paz campestre, que os ouvintes de um concerto, depois de terem folheado o programa, já de imaginação avivada, reconhecem bem. Acrescentando aos encantos da Srta. de Stermaria a ideia de sua causa, a "raça" tornava-os mais completos e inteligíveis. Fazia-os também mais desejáveis, anunciando serem pouco acessíveis, como um preço elevado aumenta a estima de um objeto que nos agradou. A estirpe hereditária dava àquela epiderme composta de sumos selecionados o sabor de um fruto exótico ou de um molho célebre.
      Ora, o acaso pôs em nossas mãos, de repente, o modo de obtermos, minha avó e eu, um prestígio imediato aos olhos de todos os hóspedes do hotel. De fato, desde aquele primeiro dia, no momento em que a velha dama descia de seu quarto, produzindo, devido ao lacaio que a precedia e à camareira que corria atrás dela com um livro e uma manta esquecidos, uma viva impressão nos espíritos e excitando em todos nós uma curiosidade e um respeito aos quais era visível que nem o Sr. de Stermaria escapava, o gerente se inclinou para minha avó e, por amabilidade (como se mostra o xá da Pérsia ou a rainha Ranavalo a uma pessoa obscura que, evidentemente, não pode ter qualquer relação com a poderosa Majestade, mas deve gostar de vê-lo a poucos passos), segredou-lhe ao ouvido:
     "A marquesa de Villeparisis"; e, no mesmo instante ao olhar para minha avó, não pôde reter um olhar de surpresa alegre. Pode-se imaginar que a súbita aparição dela, nada mais influente, causou nos traços de uma velhinha. Não me causaria alegria maior, pois, não conhecia ninguém, sem quaisquer recurso para aproximar-me da Srta. de Stermaria. Isto é, não conhecia ninguém do ponto de vista prático. Porque esteticamente falando o número de tipos humanos é bastante limitado, onde quer que vá, do prazer de encontrar pessoas conhecidas sem ter necessidade de buscá-las; como fazia Swann com os quadros dos velhos mestres. Assim passamos os primeiros dias de nossa temporada em Balbec. Numa ocasião encontramos o porteiro dos Swann e a própria Sra. Swann, convertidos em garçom de café, num estranho de passagem que não volta a ver a praia. E uma espécie de imantação que atrai e retém por maneira tão inseparável bem apertadas umas junto à outras, certas características de fisionomia e mentalidade que quando a natureza assim introduz uma pessoa em um corpo novo não muda muito. Num garçom conservava intactos sua estrutura, o perfil do nariz e parte do queixo; a Sra. Swann, em sua nova condição no sexo masculino de banho, conservara não somente sua fisionomia, mas também sua forma especial de falar. Apenas, agora, no seu cinturão vermelho, usando a bandeirola que proíbe os banhos de mar (porque os banhos de mar aos que não sabem nadar, são muito prudentes); ela em seu antigo estado feminino como no afresco da Vida de Moisés, onde Swann a reconhecia por trás das feições da filha de Jetro. Ao passo que aquela Sra. de Villeparisis era na verdade não vítima de um encantamento que a despojasse de seu poder; ao contrário capaz de colocar influência à minha disposição, centuplicando-a; graças à ela como pelas asas de um pássaro fabuloso, levando-me em suas asas para diminuir as distâncias sociais infinitas - pelo menos em Balbec, que me separavam da Srta.de Stermaria.
     Infelizmente, se havia alguém mais fechado em seu universo particular, esse alguém era minha avó. Simplesmente não me compreenderia; e no caso de haver se inteirado do interesse que me inspiravam as opiniões das pessoas e que experimentava grande prazer; mal notava e partiria de Balbec sem confessar-lhe que essas pessoas me dariam grande satisfação, pois o prestígio da marquesa no hotel e sua amizade nos colocaria em bom lugar aos olhos de Stermaria. Não que eu imaginasse que a amiga de minha avó não fosse o protótipo da aristocracia, pois estava muito acostumado com seu nome familiar aos meus ouvidos; antes que meu espírito desde menino, ouvia-o pronunciado em casa. Seu título sobre seu nome não era mais que uma particularidade estranha; como ocorre com esses nomes de ruas, diferente do que ocorre com os nomes de ruas tão vulgares e populares. A marquesa de Villeparisis, não me trazia a visão de um mundo especial; porém minha avó achava que não se fazia amizade durante as viagens. Achando que todos partilhavam da mesma ideia, no mesmo instante, que a velha dama Villeparisis, nos olhava, minha avó não pôde reter um olhar de alegre surpresa.
      A senhora de Villeparisis comia também no restaurante do hotel, mas no extremo oposto. Não conhecia nenhuma das pessoas que viviam no hotel ou que foram ali de visita, nem sequer o senhor do Cambremer; porque vi que este cavalheiro não a saudava um dia em que foi comer com sua esposa ao hotel, convidado pelo advogado de Cherburgo, o qual, transportado por aquela honra de sentar a sua mesa ao nobre, evitava a seus amigos de todos os dias e limitava-se a lhes fazer algum piscar de olhos de longe, maneira de aludir a este acontecimento histórico, bastante discreto para que não pudesse tomar-se como um convite para aproximar-se de sua mesa.

- Com todo o prazer; não tínhamos coragem de propô-la ao senhor, agora é comensal de marquesas! - disse aquela noite a mulher do magistrado.
- Ora, vamos, eles não têm nada de tão extraordinário. Vejam, tenho de jantar na casa dela. Se quiserem, podem ir no meu lugar. É um oferecimento de coração. Francamente, tanto me faz ir como ficar...
- Não, não, eu seria exonerado como reacionário. - exclamou o magistrado, rindo até as lágrimas da piada. - E o senhor, também é recebido em Féter. - acrescentou, voltando-se para o tabelião.
- Sim, vou lá aos domingos; questão de entrar por uma porta e sair outra. Mas eles não almoçam na minha casa como na casa do advogado.

     O Sr. de Stermaria não estava em Balbec naquele dia, para grande pesar advogado. Mas este, insidiosamente, comentou com o mordomo:

- Aimé, pode dizer ao Sr. de Stermaria que ele não é o único nobre que está na sala de jantar. Reparou naquele senhor que almoçou comigo esta manhã? De bigodinho, e com ar militar? Muito bem, é o marquês de Cambremer.  
- Sim? Pois não me espanta.
- Isto lhe mostrará que não é o único aristocrata no salão. Que fique sabendo! Não é mau baixar um pouco a crista desses nobres. Aimé, não diga se não quiser, não falo por mim; aliás, ele conhece bem o marquês.

     E no dia seguinte o Sr. de Stermaria, que sabia que o advogado defendia a causa de um de seus amigos, foi em pessoa apresentar-se.

- Nossos amigos comuns, os de Cambremer, queriam precisamente reunir, nossos dias não coincidiram, e, enfim, não sei o que houve - disse o advogado; que, como muitos mentirosos, não imaginam que um dia alguém há de pôr em pratos limpos um detalhe insignificante, e que no entanto basta (se o acaso nos coloca a par de uma humilde realidade que está em contradição com o que se disse) para denunciar um caráter e inspirar desconfiança para sempre.

continua na página 115...

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