em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(d)
continuando...
Diziam isto com um rolar de provinciano, sem qualquer aspereza, pois todos eram notabilidades em sua província, que, como tantos outros, poderiam ter ido à Paris, ao magistrado de Caen; tinham oferecido várias vezes um cargo no Supremo Tribunal; mas haviam preferido ficar no mesmo lugar, por amor à sua cidade, ou à sua glória ou à vida obscura, ou porque eram reacionários, e pelo prazer das amizades de vizinhança nos castelos da região. Aliás, muitos não voltavam diretamente para a sua terra. Pois-visto que a baía de Balbec era um pequeno universo à parte no meio do grande, um buquê de estações onde estavam reunidos em círculo os dias variados e os meses sucessivos, de modo que, não só nos dias em que se avistava Rivebelle, o que era sinal de tempestade, sobre cujas casas o sol brilhava, ao passo que em Balbec o céu estava negro, mas também, quando os dias frios já haviam atingido Balbec, podia-se ter certeza de obter dois ou três meses suplementares de calor na margem oposta; os hóspedes habituais do Grande Hotel cujas férias começavam tarde, ou duravam mais tempo mandavam, ao principiarem as chuvas e os nevoeiros, à aproximação do outono, colocar suas malas num barco e partiam ao encontro do verão em Rivebelle ou Costedor. Aquele grupinho do hotel de Balbec olhava com ar desconfiado todos os recém-chegados; aparentando não se interessar por eles, iam todos pedir informações a seu respeito ao amigo comum; pois o mordomo era o mesmo-Aimé-que voltava todos os anos para a temporada de verão e lhes reservava as mesas; e as senhoras suas esposas, sabendo mulher de Aimé esperava um neném, trabalhavam cada uma, após o almoço, a peça do enxoval, sempre nos examinando com seus lorgnons, a minha avó e a mim, porque comíamos ovos cozidos na salada, o que era considerado vulgar; não se praticava na boa sociedade de Alençon. Afetavam uma atitude de ironia desdenhosa em relação a um francês que era chamado de Majestade e que se autoproclamara rei de uma ilhota da Oceania povoada por alguns selvagens. Estava no hotel com sua bonita amante, à cuja passagem, quando ela ia tomar banho os garotos gritavam:
"Viva a rainha!", porque ela os cobria com uma porção de moedas de cinquenta cêntimos.
O magistrado supremo e o presidente da ordem dos Advogados nem sequer desejava parecer
que a via e, se algum dos amigos a olhava, julgavam-se no dever de prevenir que se tratava de
uma operária.
- Mas tinham-me assegurado que em Ostende eles ocupavam a cabine.
- Lógico! Alugam-na por vinte francos. Você pode ocupá-la, se lhe agradar. E sei, de fonte
limpa, que ele mandou pedir uma audiência ao rei, o qual lhe fez saber que não tinha por que
entrar em relações com soberanos de opereta.
- Ah, na verdade é engraçado... Há cada tipo de gente!
Sem dúvida, tudo aquilo era verdade; mas era igualmente pelo aspecto de se sentir que,
para uma boa parte da multidão, eles não passavam de bons burgueses, que não conheciam
aquele rei e aquela rainha, pródigos de seu dinheiro; o tabelião, o magistrado, o presidente, à
passagem do que chamavam uma máscara; sentiam tanto mau humor e manifestavam em voz
bem alta uma indignação que estava a par seu amigo, o mordomo, o qual, obrigado a fazer boa
cara aos mais generosos que autênticos, entretanto, sempre atendendo às suas o dirigia de longe
aos antigos clientes um significativo piscar de olhos. Talvez tivesse também um pouco desse
mesmo tédio de serem tidos, erroneamente, menos "chiques" e de não poderem explicar que o
eram ainda mais no fundo daquele "Moço bonito!", com que qualificavam um jovem engomado,
filho de um grande industrial e que, todos os dias, com uma roupa nova, orquídea na botoeira,
almoçava com champanha e ia, pálido, impassível, um sorriso de indiferença nos lábios, jogar, na
mesa do cassino, somas "que ele não tem fundos para perder", dizia com ar bem-informado o
tabelião do primeiro magistrado, cuja mulher "sabia de boa fonte" que aquele jovem fazia os pais
morrerem de desgosto.
Por outro lado, o presidente da Ordem dos Advogados e seus amigos, poupavam
sarcasmos a propósito de uma velha dama rica e nobre, que andava levando consigo todos os
criados. Todas as vezes que a mulher do tabelião e a do primeiro magistrado a viam na sala de
jantar, por ocasião das refeições, examinavam-na insolentemente com suas lentes, com o mesmo
ar minucioso e desafiador como se ela fosse algum prato de nome pomposo, mas de aparência
suspeita, que, após o resultado desfavorável de uma observação metódica, é mandado embora
com um gesto distante e uma careta de desgosto.
Com isso, certamente queriam indicar apenas que, se havia certas coisas que lhes
faltavam no caso, algumas prerrogativas da velha dama, e o fato de estarem em relações com ela -, não era porque não pudessem, mas porque não queriam tê-las. Porém, tinham acabado por se
convencer elas próprias; e era a supressão de todo desejo, de toda curiosidade pelas formas da
vida que não conheciam, da esperança de agradar a novas pessoas, substituídas nelas por um
desdém fingido, uma alegria artificial, que apresentava o inconveniente de colocar o desprazer
sob a etiqueta de contentamento e as fazia mentir perpetuamente a si mesmas, duas condições
para que fossem infelizes. Mas, sem dúvida, todo mundo naquele hotel agia da mesma maneira
que elas, conquanto sob formas diversas; sacrificava, senão ao amor-próprio, ao menos a certos
princípios de educação, ou a alguns hábitos intelectuais, a deliciosa inquietação de misturar-se a
uma vida ignorada. Sem dúvida, o microcosmo em que se isolava a velha dama não estava
empeçonhado de azedumes atrozes como o grupo em que riam de raiva a mulher do tabelião e a
do primeiro magistrado. Ao contrário, estava embalsamado num perfume requintado e velhusco,
mas que não era menos artificial. Pois no fundo a velha dama teria provavelmente encontrado em
seduzir, em atrair a misteriosa simpatia das criaturas novas (ao mesmo tempo que ela própria se
renovava), um encanto despojado do prazer que há em frequentar apenas pessoas do seu próprio
mundo e em recordar que, sendo sua sociedade a melhor que existe, torna-se desprezível o
desdém alheio e mal informado. Talvez sentisse que, chegando incógnita ao Grande Hotel de
Balbec, teria feito sorrir, com seu vestido de lã negra e sua touca fora de moda, a algum gaiato
que teria murmurado: "que múmia!", ou principalmente a um homem de talento que, tendo
conservado, como o primeiro presidente, entre as suíças grisalhas, um rosto jovem e olhos
espirituosos como ela os amava, e que talvez houvesse logo indicado à lente aproximadora do
lorgnon conjugal o aparecimento desse fenômeno insólito; talvez fosse por inconsciente receio
desse primeiro minuto, que sabemos ser breve mas que não é menos temido -como da primeira
vez que a gente mergulha-, que aquela velha dama enviava previamente um criado para pôr o
hotel a par de seus hábitos e, cortando as gentilezas do gerente, subia para o quarto com uma
rapidez em que havia mais timidez do que orgulho, quarto onde as cortinas pessoais, substituindo
as que pendiam das janelas, dos biombos e das fotografias, colocavam de tal forma entre ela e o
Mundo exterior, a que devia adaptar-se, a divisão de seus hábitos, que era mais na casa que
morava e na qual permanecera...
Desde então, tendo colocado entre ela de um lado, e o pessoal dos fornecedores, do
outro, os seus criados que recebiam em vez dela, o daquela nova humanidade e mantinham em
torno à sua patroa a atmosfera; tendo posto os seus preconceitos entre ela e os banhistas, sem
se preocupar em agradar às pessoas que seus amigos não teriam recebido; era no seu mundo
que continuava a viver pela correspondência com suas amigas, pela recordação, consciência
íntima que possuía de sua posição, da qualidade de seus modelos de competência de sua
polidez. Todos os dias, quando ela descia para dar um passeio em sua cabeça, sua criada de
quarto, que carregava seus objetos pessoais, seu lacaio, que seguia à sua frente, davam a
impressão dessa sentinela às portas de uma embaixada embandeirada com as cores do país do
qual dá garantia para ela, em pleno solo estrangeiro, o privilégio da extraterritorialidade. Ela não
deixou o quarto antes do meio da tarde; no dia em que chegamos vimos na sala de jantar aonde o
gerente, como éramos recém-chegados, nos colocou sob sua proteção, à hora do almoço, como
um oficial que conduz recrutas ao alfaiate para fardá-los; mas, em compensação, vimos, logo
após, um fidalgo com sua filha, de uma obscura porém antiga família da Bretanha, o Sr. e a Srta.
de Stermaria; cuja mesa nos haviam dado, julgando que não voltariam naquela noite. Tinham
vindo a Balbec, exclusivamente, para se encontrarem com castelães que conheciam nos
arredores, e não passavam pela sala de jantar do hotel, entre os convites de fora e as visitas
realizadas, senão o tempo estritamente necessário. Era a sua elegância que os preservava de
toda simpatia humana, de todo interesse pelos conhecidos sentados a seu redor, e no meio dos
quais a Srta. de Stermaria mantinha o ar glacial apressado, distante, rude, exigente e mal
intencionado, que se põe no carro-restaurante no meio de viajantes nunca vistos, e a quem jamais
voltaremos a ver, e com quem a gente não admite outras relações senão a defesa, contra nosso
frango frio e do nosso canto no vagão. Mal começávamos a almoçar, vieram nos fazer erguer da
mesa por ordem do Sr. de Stermaria, que acabavam de chegar e, sem o menor gesto de
desculpas para nós, pediu em voz alta ao mordomo que cuidasse para que aquele erro não mais
se repetisse, pois era-lhe desagradável que "pessoas a quem não conhecia" tivessem ocupado a
sua mesa.
Com certeza, no sentimento que levava determinada atriz (aliás conhecida devido à sua
elegância, seu espírito, suas lindas coleções de alemão do que por seus desempenhos no
Odeon), e mais o seu amante, rapaz rico, pelo qual ela se empenhara, bem como dois homens
muito em evidência da aristocracia, a levarem uma vida à parte, a só viajarem juntos, a almoçar
Balbec muito tarde, quando todas as pessoas já haviam terminado, a passar o dia inteiro em seu
salão jogando cartas, não entrava má vontade alguma, apenas as exigências do gosto que
tributavam a certas formas de engenho na conversação, a certos refinamentos de boa comida, o
que só lhes dava para viverem e comerem juntos, e lhes tornaria insuportável a vida em comum
com pessoas que não fossem iniciadas em tudo aquilo. Mesmo diante de uma mesa posta ou de
uma mesa de jogo, cada um deles precisava saber que no conviva ou parceiro sentado à sua
frente repousavam, em suspenso e sem utilidade, certos conhecimentos que permitem
reconhecer a obra de carregação de que muitas casas parisienses se enfeitam como se se
tratasse de uma "Idade Média" ou de uma "Renascença" autênticas e, em todas as coisas,
critérios que lhes eram comuns para distinguir o bom do mau. Sem dúvida, naqueles momentos
não era mais do que por uma rara e engraçada interjeição, atirada no meio do silêncio da refeição,
ou da partida, ou pelo vestido novo e encantador que a jovem atriz pusera para almoçar ou jogar
pôquer, que se manifestava a existência especial em que seus amigos queriam ficar mergulhados
em toda a parte. Assim, porém, envolvendo-os em hábitos que conheciam a fundo, bastava ela
para protegê-los contra o mistério da vida ambiente. Durante as longas tardes, o mar só estava
suspenso diante deles como uma tela de cor agradável pendurada no toucador de um rico
solteirão, e somente no intervalo das cartadas é que um dos jogadores, não tendo coisa melhor,
erguia os olhos para o mar, a fim de ter uma indicação acerca do tempo ou da hora, e lembrar aos
outros que a merenda esperava. E de noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos,
derramando luz na sala de jantar, transformavam-na num imenso aquário maravilhoso diante de
cuja parede de vidro a população obreira de Balbec, os pescadores e também as famílias de
pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para contemplar,
vagarosamente embalada em redemoinhos de ouro, a vida luxuosa daquelas pessoas, tão
extraordinária para os pobres como a dos peixes e dos moluscos estranhos (uma grande questão
social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se as
pessoas obscuras que olham avidamente dentro da noite virão colhê-los em seu aquário e
devorá-los). Entretanto, talvez houvesse, no meio da multidão parada e confundida na noite,
algum escritor, algum amador de ictiologia humana, que, observando as maxilas dos velhos
monstros femininos se fecharem sobre um pedaço de alimento engolido, se interessasse em
classificá-los por suas raças, pelos caracteres inatos e também pelos adquiridos, que fazem que
uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, com a salada como
uma La Rochefoucauld porque desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.
Àquela hora, viam-se os três homens de smoking esperando a mulher que estava
atrasada, a qual, em breve, depois de ter chamado o lift do seu andar, saía do elevador como de
uma caixa de brinquedos, num vestido quase sempre novo e com écharpes escolhidas segundo o
gosto especial do seu amante. Os quatro, que eram de opinião de que o fenômeno internacional
do Palace, implantado em Balbec, fizera ali florir o luxo mas não a boa cozinha, entravam num
carro e iam jantar a meia légua dali, num pequeno e bem considerado restaurante, onde; tinham
intermináveis conferências como cozinheiro sobre a composição do cardápio e a confecção dos
pratos. Durante esse trajeto, a estrada margeada de mansões que parte de Balbec não era para
eles, - senão a distância que seria preciso um pouco distinta, na noite negra, da que separava
suas residências parisienses do café Anglais ou da Tour d'Argent-antes de chegar ao pequeno e
fino restaurante onde, enquanto os amigos do rapaz rico o invejavam por ter uma amante tão bem
vestida, as écharpes desta se desdobravam diante do pequeno grupo como um véu macio e
perfumado, mas que era o bastante para separá-los do resto do mundo.
Infelizmente para o meu sossego, eu estava bem longe de ser e daquela gente. Alguns ali
me preocupavam; gostaria de não ser ignorado homem de testa fugidia, de olhar esquivo, que
vagava entre os antolhos, os preconceitos e de sua educação, o grão-senhor daquelas terras, e
que não era menos que o cunhado de Legrandin, que vinha às vezes de visita a Balbec e que aos
domingos, ia para o garden-party semanal que ele e a mulher ofereciam, levavam do hotel uma
boa parte de seus hóspedes, porque um ou dois dentre eles eram de fato convidados para a festa,
e os outros, para não darem a impressão que não o eram, escolhiam esse dia para fazer uma
excursão distante. Todavia a primeira vez em que entrou no hotel foi muito mal recebido, pois o
pessoal acabara de chegar da Côte d'Azur, ainda não sabia de quem se tratava, estava vestido de
flanela branca, mas também, fiel aos velhos costumes franceses e ignorantes da vida dos
Palaces, tirara o chapéu ao entrar no saguão por lábia às senhoras, o que fez com que o gerente
nem sequer tocasse no seu chapéu para cumprimentá-lo, julgando que se tratasse de alguém de
condição muito humilde, que denominava homem "saindo do ordinário". Somente a mulher dele
chamou a atenção para o recém-chegado, que denotava a vulgaridade afetada das pessoas
elegantes, e declarou, com base no discernimento infalível e na indiscreta autoridade de uma
pessoa para quem a alta sociedade de Le Mans não tem segredos, que sentia-se diante dela a
presença de um homem de grande distinção; muito bem-educado, e que se sobressaía dentre
toda aquela gente que encontrava em Balbec e que ela considerava indignos de convívio
enquanto frequentasse. Esse juízo favorável que pronunciou a respeito do cunhado de Legrandin
se fundava provavelmente no aspecto apagado de alguém que nada tem para se impor; talvez
tivesse reconhecido nesse fidalgo do campo com sacristão, os sinais maçônicos de seu próprio
clericalismo.
Por mais que me certificasse de que aqueles rapazes que todos montavam a cavalo em
frente ao hotel eram os filhos do proprietário mal reputado de um magazine de novidades e que
meu pai nunca teria consentido conhecer, a vida na praia os transformava, a meus olhos, em
estátuas equestres semideuses, e o melhor que podia esperar era que nunca deixassem de
lançarem olhares sobre o pobre rapaz que eu era, que só deixava a sala de jantar do hotel para ir
sentar-se na areia. Gostaria de inspirar simpatia, até mesmo ao aventureiro que fora o rei de uma
ilha deserta da Oceania, e até ao jovem tuberculoso, e aprazia-me pensar que sob aquele seu
exterior insolente haveria uma alma tímida e carinhosa que talvez me guardasse tesouros de
afeto. Aliás (ao contrário do que se costuma dizer das amizades feitas em viagem), como o
sermos vistos na companhia de determinada pessoa pode nos conferir, numa praia para onde às
vezes voltaremos, um prestígio seu igual na verdadeira vida mundana, não existe nada como as
amizades dos banhos de mar, as quais a gente não só não evita como cultiva cuidadosamente na
vida de Paris. Preocupava-me com a opinião de todas essas notabilidades momentâneas ou
locais a meu respeito, devido à minha inclinação a me colocar no lugar das pessoas e a recriar
seu estado de espírito; imaginava-as situadas não no seu nível real, aquele que teriam ocupado
em Paris, por exemplo, e que seria um nível bastante inferior, mas no que pensavam ter,
efetivamente, possuíam em Balbec, onde a falta de uma medida comum lhes dava uma
superioridade relativa, emprestando-lhes um singular interesse. E, de todas essas pessoas,
nenhuma havia cujo desprezo mais me fosse penoso como o do Sr. de Stermaria. Pois reparara
em sua filha desde a entrada, seu lindo rosto pálido e quase azulado, o que havia de particular no
porte de sua alta estatura, no seu modo de andar, e que com boas razões me evocava sua
linhagem, sua educação aristocrática, e tanto mais nitidamente porque conhecia seu nome como
aqueles temas expressivos criados pelos compositores de gênio e que pintam de modo
esplêndido o fulgor das chamas, os murmúrios do rio e a paz campestre, que os ouvintes de um
concerto, depois de terem folheado o programa, já de imaginação avivada, reconhecem bem.
Acrescentando aos encantos da Srta. de Stermaria a ideia de sua causa, a "raça" tornava-os mais
completos e inteligíveis. Fazia-os também mais desejáveis, anunciando serem pouco acessíveis,
como um preço elevado aumenta a estima de um objeto que nos agradou. A estirpe hereditária
dava àquela epiderme composta de sumos selecionados o sabor de um fruto exótico ou de um
molho célebre.
Ora, o acaso pôs em nossas mãos, de repente, o modo de obtermos, minha avó e eu, um
prestígio imediato aos olhos de todos os hóspedes do hotel. De fato, desde aquele primeiro dia,
no momento em que a velha dama descia de seu quarto, produzindo, devido ao lacaio que a
precedia e à camareira que corria atrás dela com um livro e uma manta esquecidos, uma viva
impressão nos espíritos e excitando em todos nós uma curiosidade e um respeito aos quais era
visível que nem o Sr. de Stermaria escapava, o gerente se inclinou para minha avó e, por
amabilidade (como se mostra o xá da Pérsia ou a rainha Ranavalo a uma pessoa obscura que,
evidentemente, não pode ter qualquer relação com a poderosa Majestade, mas deve gostar de
vê-lo a poucos passos), segredou-lhe ao ouvido:
"A marquesa de Villeparisis"; e, no mesmo instante ao olhar para minha avó, não pôde
reter um olhar de surpresa alegre. Pode-se imaginar que a súbita aparição dela, nada mais
influente, causou nos traços de uma velhinha. Não me causaria alegria maior, pois, não conhecia
ninguém, sem quaisquer recurso para aproximar-me da Srta. de Stermaria. Isto é, não conhecia
ninguém do ponto de vista prático. Porque esteticamente falando o número de tipos humanos é
bastante limitado, onde quer que vá, do prazer de encontrar pessoas conhecidas sem ter
necessidade de buscá-las; como fazia Swann com os quadros dos velhos mestres. Assim
passamos os primeiros dias de nossa temporada em Balbec. Numa ocasião encontramos o
porteiro dos Swann e a própria Sra. Swann, convertidos em garçom de café, num estranho de
passagem que não volta a ver a praia. E uma espécie de imantação que atrai e retém por maneira
tão inseparável bem apertadas umas junto à outras, certas características de fisionomia e
mentalidade que quando a natureza assim introduz uma pessoa em um corpo novo não muda
muito. Num garçom conservava intactos sua estrutura, o perfil do nariz e parte do queixo; a Sra.
Swann, em sua nova condição no sexo masculino de banho, conservara não somente sua
fisionomia, mas também sua forma especial de falar. Apenas, agora, no seu cinturão vermelho,
usando a bandeirola que proíbe os banhos de mar (porque os banhos de mar aos que não sabem
nadar, são muito prudentes); ela em seu antigo estado feminino como no afresco da Vida de
Moisés, onde Swann a reconhecia por trás das feições da filha de Jetro. Ao passo que aquela Sra.
de Villeparisis era na verdade não vítima de um encantamento que a despojasse de seu poder; ao
contrário capaz de colocar influência à minha disposição, centuplicando-a; graças à ela como
pelas asas de um pássaro fabuloso, levando-me em suas asas para diminuir as distâncias sociais
infinitas - pelo menos em Balbec, que me separavam da Srta.de Stermaria.
Infelizmente, se havia alguém mais fechado em seu universo particular, esse alguém era
minha avó. Simplesmente não me compreenderia; e no caso de haver se inteirado do interesse
que me inspiravam as opiniões das pessoas e que experimentava grande prazer; mal notava e
partiria de Balbec sem confessar-lhe que essas pessoas me dariam grande satisfação, pois o
prestígio da marquesa no hotel e sua amizade nos colocaria em bom lugar aos olhos de
Stermaria. Não que eu imaginasse que a amiga de minha avó não fosse o protótipo da
aristocracia, pois estava muito acostumado com seu nome familiar aos meus ouvidos; antes que
meu espírito desde menino, ouvia-o pronunciado em casa. Seu título sobre seu nome não era
mais que uma particularidade estranha; como ocorre com esses nomes de ruas, diferente do que
ocorre com os nomes de ruas tão vulgares e populares. A marquesa de Villeparisis, não me trazia
a visão de um mundo especial; porém minha avó achava que não se fazia amizade durante as
viagens. Achando que todos partilhavam da mesma ideia, no mesmo instante, que a velha dama
Villeparisis, nos olhava, minha avó não pôde reter um olhar de alegre surpresa.
A senhora de Villeparisis comia também no restaurante do hotel, mas no extremo
oposto. Não conhecia nenhuma das pessoas que viviam no hotel ou que foram ali de visita,
nem sequer o senhor do Cambremer; porque vi que este cavalheiro não a saudava um dia em que
foi comer com sua esposa ao hotel, convidado pelo advogado de Cherburgo, o qual, transportado
por aquela honra de sentar a sua mesa ao nobre, evitava a seus amigos de todos os dias e
limitava-se a lhes fazer algum piscar de olhos de longe, maneira de aludir a este acontecimento
histórico, bastante discreto para que não pudesse tomar-se como um convite para aproximar-se
de sua mesa.
- Com todo o prazer; não tínhamos coragem de propô-la ao senhor, agora é comensal de
marquesas! - disse aquela noite a mulher do magistrado.
- Ora, vamos, eles não têm nada de tão extraordinário. Vejam, tenho de jantar na casa
dela. Se quiserem, podem ir no meu lugar. É um oferecimento de coração. Francamente, tanto me
faz ir como ficar...
- Não, não, eu seria exonerado como reacionário. - exclamou o magistrado, rindo até as
lágrimas da piada. - E o senhor, também é recebido em Féter. - acrescentou, voltando-se para o
tabelião.
- Sim, vou lá aos domingos; questão de entrar por uma porta e sair outra. Mas eles não
almoçam na minha casa como na casa do advogado.
O Sr. de Stermaria não estava em Balbec naquele dia, para grande pesar advogado. Mas
este, insidiosamente, comentou com o mordomo:
- Aimé, pode dizer ao Sr. de Stermaria que ele não é o único nobre que está na sala de
jantar. Reparou naquele senhor que almoçou comigo esta manhã? De bigodinho, e com ar militar?
Muito bem, é o marquês de Cambremer.
- Sim? Pois não me espanta.
- Isto lhe mostrará que não é o único aristocrata no salão. Que fique sabendo! Não é mau
baixar um pouco a crista desses nobres. Aimé, não diga se não quiser, não falo por mim; aliás, ele
conhece bem o marquês.
E no dia seguinte o Sr. de Stermaria, que sabia que o advogado defendia a causa de um
de seus amigos, foi em pessoa apresentar-se.
- Nossos amigos comuns, os de Cambremer, queriam precisamente reunir, nossos dias
não coincidiram, e, enfim, não sei o que houve - disse o advogado; que, como muitos mentirosos,
não imaginam que um dia alguém há de pôr em pratos limpos um detalhe insignificante, e que no
entanto basta (se o acaso nos coloca a par de uma humilde realidade que está em contradição
com o que se disse) para denunciar um caráter e inspirar desconfiança para sempre.
continua na página 115...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - d)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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