segunda-feira, 3 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - t)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor

Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann


(t)

continuando...

      Unicamente, quando estava em meados de janeiro, já perdidas as esperanças de uma carta de Ano-Novo e acalmada a dor suplementar que acompanhara a decepção, foi o meu desgosto de antes das "Festas" que recomeçou. E o mais cruel de tudo, talvez, é que eu mesmo era o artesão consciente, voluntário, paciente e impiedoso desse desgosto. A única coisa que me interessava, minhas relações com Gilberte, era eu mesmo quem cuidava em torna-las impossíveis, criando pouco a pouco, pela prolongada separação de minha amiga, não a sua indiferença, mas a minha, o que afinal vinha a dar no mesmo. Encarniçava-me continuamente, com a clarividência não só do que fazia no presente, mas do que daí resultaria para o futuro, num longo e cruel suicídio do eu que dentro de mim amara Gilberte; sabia não só que dentro de algum tempo não amaria mais Gilberte, mas também que ela própria o lamentaria, e que as tentativas que então faria para me ver seriam inúteis como as de hoje, não mais porque a amasse demasiado, e sim porque certamente amaria a uma outra mulher e passaria as horas a deseja-la, a esperar sem ousar desviar uma parcela desse tempo para Gilberte, que não seria mais nada para mim. E, sem dúvida, naquele momento mesmo em que já perdera Gilberte, visto que estava resolvido a não mais vê-la, a menos que houvesse um ponto formal de explicações ou uma completa declaração de amor de sua parte, (e que certamente não tinham nenhuma chance de ocorrer) e em que a amava (sentia tudo o que ela significava para mim melhor do que no ano anterior, passando todas as tardes com ela, sempre que desejasse, achava que nada ia ameaçar nossa amizade), sem dúvida naquele momento, a ideia de que haveria de experimentar os mesmos sentimentos por uma outra era-me odioso, pois tal ideia me roubava, além de Gilberte, meu amor e meu sofrimento; sofrimento em que, chorando, eu tentava justamente descobrir o que era Gilberte; sem outro remédio senão reconhecer que esse amor e esse sofrimento não pertenciam especialmente à mim, sendo, mais cedo ou mais tarde, o quinhão desta ou daquela mulher. De modo que - pelo menos era essa a minha maneira de pensar - a gente sempre está separado das outras criaturas: quando amamos, sentimos que esse amor não conserva o nome do ser amado; poderá renascer no futuro, se tiver podido nascer, mesmo no passado, por uma outra pessoa e não por esta; durante o tempo em que não amamos, se aceitamos filosoficamente que o amor é contraditório, é que esse amor de que se fala com tanta tranquilidade, não sentimos até então, portanto, é algo desconhecido, pois o conhecimento nessa matéria intermitente não sobrevive à presença efetiva do sentimento. Nesse futuro, em eu não mais amaria Gilberte e que meu sofrimento me ajudava a adivinhar sem imaginação; pudesse ainda figura-lo com clareza, certamente ainda restava tempo para avisar Gilberte de que ele haveria de formar-se aos poucos, sem dúvida era, senão iminente, pelo menos infalível. Se ao menos a própria Gilberte viesse em meu auxílio e destruísse no embrião a minha futura indiferença. As vezes não estive a ponto de escrever, ou de ir dizer a Gilberte: "Cuidado. Tome uma resolução; o passo que dou é um passo decisivo. Vou vê-la pela última vez. Em breve não a amarei mais." Mas para quê? Com que direito teria censurado à Gilberte uma indiferença que, sem me crer culpado por isso, manifestava a todos menos à ela? Pela última vez! A mim aquilo parecia uma coisa imensa, pois eu amava Gilberte. A ela, sem dúvida, causaria tanta impressão como as cartas em que os amigos pedem para nos fazer uma visita antes de se expatriarem, visita que, como de mulheres tediosas que nos amam, nós recusamos receber, pois temos outros prazeres à espera. Elástico é o tempo de que dispomos todos os dias; as paixões, sentimos que o dilatam, as que inspiramos o encolhem e o hábito o preenche.
     Além disso, seria inútil falar a Gilberte, não me compreenderia. Pensamos sempre que são nossos ouvidos, nosso espírito, que escutam; as palavras só chegariam desviadas à Gilberte, como se obrigadas a atravessar a cortina móvel de uma catarata antes de atingir minha amiga; palavras irreconhecíveis, produzindo um som ridículo, não tendo mais qualquer tipo de sentido. A verdade é que aquilo que pomos nas palavras não trilha diretamente o seu caminho, não é dotada de uma evidência irresistível. É necessário que decorra muito tempo para que uma verdade da mesma espécie possa formar-se nelas. Então o adversário político que, apesar de todas as provas e arrazoados, considerava traidor o sectário da doutrina oposta, compartilha ele mesmo a convicção detestada quando já não interessa àquele que antes buscava inutilmente difundi-la. 
     Então, a obra-prima que, para os admiradores que a liam em voz alta, parecia mostrar por si mesma as provas de sua excelência e só oferecia aos que a escutavam uma imagem insana e medíocre, será por estes proclamada obra-prima, tarde demais para que o autor o possa saber. Da mesma forma, no amor as barreiras que, malgrado tanto esforço, não puderem ser rompidas de fora por aquele a quem elas desesperam; e é quando ele já não se preocupa com elas que, de repente, essas barreiras, atacadas outrora sem êxito, caem sem utilidade, devido ao trabalho vindo de outro lado, cumprido no íntimo daquela mulher a quem já não ama. Se anunciasse a Gilberte a minha futura indiferença e a forma de preveni-la, ela teria inferido desse gesto que meu amor e a necessidade de estar com ela seriam ainda maiores do que julgara, e o seu tédio em me ver teria aumentado. De resto, é bem certo que era esse amor que me ajudava, pelos estados de espírito disparatados que fazia sucederem dentro de mim, a prever melhor que era o fim desse mesmo amor. Entretanto, tal advertência, talvez a tivesse endereçado a Gilberte, em carta ou de viva voz, quando já houvesse passado bastante tempo, tornando-a para mim, na verdade, menos indispensável, mas também podendo lhe provar que já podia passar sem ela. Infelizmente, certas pessoas, bem ou mal-intencionadas, falaram-lhe de mim de um modo que lhe deve ter dado ideia de que o faziam a pedido meu. Todas as vezes que tinha certeza de que o Dr. Cottard, minha própria mãe e até o Sr. de Norpois tinham, com palavras desastradas, tornado inútil todo o sacrifício que eu acabara de fazer, estragado todo o resultado de minha reserva, pois assim davam falsamente a entender que já abandonara minha atitude de discrição, sentia-me duplamente aborrecido. Primeiro, já não podia datar senão desse dia a minha penosa e frutífera abstenção que os inoportunos tinham interrompido à minha revelia e, portanto, anulado. E mais, teria tido menos prazer em ver Gilberte, que agora já não acreditava que eu estivesse dignamente resignado, e sim manobrando na sombra com vistas a um encontro que ela desdenhara marcar. Mal dizia essa tagarelice inútil de pessoas que muitas vezes, sem sequer terem a intenção de prejudicar ou de prestar um serviço, por nada, só por falar, às vezes porque não pudemos nos calar diante delas e porque são indiscretas (como nós), nos causam tantos danos num certo momento. É verdade que, no cumprimento do trabalho funesto de destruição do nosso amor, tais criaturas longe estão de desempenhar um papel igual ao de duas pessoas que têm hábito de desfazer tudo no momento em que as coisas iam se arrumar, um excesso de bondade e a outra por muita maldade. Porém não queremos mal às duas, tanto quanto aos Cottards inoportunos, pois a última é a pessoa a qual amamos e a primeira somos nós mesmos. Entretanto, como quase todas as vezes em que ia vê-la; a Sra. Swann convidava para merendar com sua filha e me dizia que respondesse diretamente à Gilberte, eu escrevia a esta muitas vezes, e nessa correspondência não escolhi frases que, segundo me parece, poderiam convencê-la, procurando apenas leito mais suave para o correr das minhas lágrimas. Pois o lamento, como não busca analisar-se e sim satisfazer-se; quando a gente começa a amar, o tempo todo não querendo saber o que é o nosso amor, mas preparando as possibilidades dos encontros do dia seguinte. Quando a ele renunciamos, procuramos sim, não distinguir bem a nossa mágoa, mas expressá-la da maneira mais caridosa possível àquela que a provocou. Dizemos as coisas que precisamos dizer e que outro não compreenderá; falamos só para nós mesmos. Eu escrevia: "Achei que não seria possível. Infelizmente, vejo que não é tão difícil." Dizia também: "Provavelmente, não voltarei a vê-la." Dizia isto, continuando a evitar uma frieza que poderia ter julgado afetada, e essas palavras faziam-me chorar ao escrevê-las, sentia que exprimiam, não aquilo em que desejava acreditar, mas o que iria acontecer. Pois, da próxima vez que me convidasse para um encontro, ainda teria, como agora, a coragem de não ceder e, de recusa em recusa, chegaria aos poucos ao instante em que, de tanto não a ter visto, não desejaria mais vê-la. Chorava e criava coragem; conhecia a doçura de sacrificar a felicidade de estar junto dessa possibilidade; de um dia lhe parecer agradável, dia infelizmente em que mesmo agradável, me seria de todo indiferente. A própria hipótese, no entanto tão verossímil, de que me amava, como ela o dera a entender durante a última visita que lhe fizera, tornava menos cruel minha resolução, embora, naquele momento tivesse tomado como tédio para com a pessoa que nos aborrece, pois que passava de suscetibilidade ciumenta, de uma fingida indiferença parecida minha. Julgava, então, que dentro de alguns anos, depois que tivéssemos esquecido um do outro, quando poderia retrospectivamente lhe dizer que a carta, que neste momento estava a ponto de lhe escrever, não fora sincera de modo algum, ela responderia:   

"Como? Então você me amava? Se soubesse como a chegada dessa carta, na esperança de um encontro, como ela me fez chorar!" 

     E que voltava da casa de sua mãe e enquanto escrevia a Gilberte, apenas a ideia talvez estivesse consumando exatamente aquele mal-entendido, tal ideia, própria da tristeza, pelo prazer de pensar que era amado por Gilberte, continuaria a escrever a carta. 
     Se, no momento de deixar a Sra. Swann, quando o "chá" terminava pensando no que escreveria à sua filha, a Sra. Cottard, no entanto, pensava coisas muito diversas. Fazendo sua "inspeçãozinha", não deixava de elogiar a Sra. Swann pelos móveis novos, as recentes "aquisições que via no salão". Aliás, podia reencontrar ali, embora poucos, alguns dos objetos que Odette possuíra antigamente em seu apartamento da rua La Pérouse, especialmente seus fetiches, seus animais feitos de matéria preciosa. 
      Mas tendo a Sra. Swann conhecido, por um amigo a quem venerava, o termo tocard que lhe abriu novos horizontes porque designava precisamente as coisas que alguns anos antes consideraria "chiques" todas essas coisas foram aos poucos seguindo, em sua retirada, as grades douradas que serviam de apoio aos crisântemos, as várias bomboneiras da casa Giroux e o papel de cartas com coroa (para não falar dos luíses de ouro feitos de cartolina, espalhados pelas lareiras e que, bem antes que ela conhecesse Swann, um homem de gosto a aconselhara a sacrificar). Além do mais, na desordem intencional, na confusão de ateliê artístico daquelas salas de paredes ainda pintadas de cores sombrias, que as faziam tão diversas quanto possível dos salões brancos que a Sra. Swann teve mais tarde, o Extremo Oriente recuava cada vez mais diante da invasão do século XVIII; e os almofadões que a Sra. Swann colocava e apertava às minhas costas, para que me sentisse mais "confortável", estavam semeados de buquês Luís XV, e não mais, como antigamente, de dragões chineses. No quarto onde a encontravam com mais frequência, e do qual dizia:

- Sim, gosto muito dele; passo ali bastante tempo; não poderia viver no meio de coisas hostis e pretensiosas; é aqui que eu trabalho - (sem, aliás, precisar se era em um quadro, talvez num livro, pois começava a criar o costume de escrever, que atinge as mulheres que gostam de fazer algo e não se senti rem inúteis); estava ali rodeada de porcelanas de Saxe (porque preferia esta espécie de porcelana, cujo nome pronunciava com um acento inglês, chegando a falar a qualquer pretexto: "É lindo, isto se parece com flores de Saxe!"; temia por elas, ainda mais que outrora para os seus vasos e estatuetas da China, o toque ignorante dos criados, aos quais castigava, pelos maus transes por que passava, com acessos de cólera a que Swann, patrão suave e polido, assistia sem se mostrar chocado. A vista lúcida de certas inferioridades; aliás não tira nada do afeto; este afeto, ao contrário, é que as torna encantadoras. Agora, era mais raramente em seus chambres japoneses que Odette recebia os íntimos, preferindo as sedas claras e espumantes dos peignoirs Watteau, dos quais fazia o gesto de acariciar sobre os seios a espuma florida, como se se banhasse naquelas sedas, embalando-se e ostentando-se nelas com tal aspecto de bem-estar, de frescura de pele, respirando tão profundamente, que parecia considerá-las não como decorativas, mas como um quadro, porém necessárias da mesma forma que o tub e o footing, para contentar as exigências de sua fisionomia e os requintes de sua higiene. Tinha o hábito de dizer que mais facilmente passaria sem pão do que sem arte e sem limpeza, que lhe valeria mais a pena ver arder A Gioconda que as "sujeiradas" de pessoas a quem conhecia.

      Teorias que pareciam paradoxais às suas amigas, mas faziam-na passar por mulher superior junto a elas, e lhe valeram a visita do ministro da Bélgica por semana, de modo que, no pequeno mundo em que ela era o sol, todos ficavam surpresos se soubessem que, em outra parte, na casa dos Verdurin, por exemplo, ela era tida por imbecil. Por causa dessa vivacidade de espírito, a Sra. Swann ria à companhia dos homens e das mulheres. Mas, quando criticava estas, falava sempre com alma de cocote, nelas assinalando os defeitos que podiam prejudica-las aos olhos dos homens: tornozelos grossos, tez ruim, pelos nas pernas, mau cheiro, sobrancelhas postiças. Ao contrário, para que outrora se houvesse mostrado indulgente e amável, Odette era mais calada, sobretudo se se tratava de uma pessoa infeliz. Defendia-a com habilidade, ''- Isto é injusto; é uma pessoa muito bondosa, não tenha dúvidas.''
      Não era apenas o mobiliário do salão de Odette, era a própria Odette quem a Sra. Cottard e todos os que haviam convivido antigamente com a Crécy achariam difícil de reconhecer, se a tivessem deixado de ver durante tempo. Parecia ter tantos anos menos que outrora! Sem dúvida, aquilo em parte devia-se ao fato de que ela engordara, mostrando boa saúde, com um aspecto calmo, fresco, repousado, e, por outro lado, aos penteados novos, de cabelos que davam maior amplitude ao seu rosto, animado pelo pó-de-arroz cor-de-rosa; onde os olhos e o perfil, outrora tão salientes, pareciam agora ser reabsorvidos pelas faces. Mas havia um outro motivo para essa mudança, e consistia em que ao chegar à meia-idade, afinal havia descoberto, ou inventado, um traço pessoal, um "caráter" imutável, um "tipo de beleza" e, sobre seus traços os quais durante tanto tempo, entregues aos caprichos ocasionais e ímpetos da carne e que, ao menor cansaço, assumiam uma espécie de velhice pesada; carregando-se de anos, lhe haviam composto, bem ou mal, conforme o seu gesto, uma fisionomia esparsa, diária, informe e deliciosa - havia nesse tipo fixo, como se fosse de uma juventude imortal.
      No seu quarto, em vez das belas fotografias que agora se tirava de mulher, e onde a mesma expressão enigmática e vitoriosa deixava que, fossem quais fossem, o vestido e o chapéu, a sua silhueta e seu rosto triunfavam. Swann guardava um pequeno daguerreótipo antigo, muito simples, e do qual, ainda não encontradas por ela, a juventude e a beleza pareciam ausentes. Mas sem dúvida Swann, fiel ou então por ter voltado à concepção diversa da nova vida saboreava naquela jovem esbelta, de olhos e feições pisadas, a atitude suspensa entre o andar e a imobilidade, uma grande Botticellesca. De fato, gozava de ver ainda em sua esposa um Botticelli. pelo contrário procurava não ressaltar e sim compensar; dissimular mesmo que não lhe agradava, o que era talvez para um artista o seu "caráter", como mulher julgava cheio de defeitos, não queria ouvir falar desse pintor. Possuía uma maravilhosa écharpe oriental, azul e rósea, que havia comprado por ser exatamente igual a da Virgem do Magnificat. Porém a Sra. Swann não queria usa-la. Uma vez apenas deixou o marido lhe encomendar um vestido crivado de margaridas, cinerárias, miosótis e campânulas, de acordo com a primavera. Às vezes, de noite, quando Odette estava cansada, Swann me fazia ver, em voz baixa, como ela dava, sem perceber, às suas mãos pensativas, o movimento sutil, um pouco atormentado, da Virgem que mergulha sua pena no tinteiro que o anjo lhe estende, antes de escrever no livro santo onde já está traçada a palavra
     "Magnificat". E acrescentava:

- Principalmente, não lhe diga nada; basta que o note para não fazê-lo.

      A não ser nesses momentos de abandono involuntário, em que Swann tentava recuperar o melancólico ritmo botticellesco, o corpo de Odette era agora recortado em uma única silhueta, toda ela cingida por uma linha que, para seguir o contorno da mulher, abandonara os caminhos sinuosos, as falsas saliências e reentrâncias, os entrelaçamentos, a dispersão composta das modas de antigamente, mas que, mesmo assim, onde a anatomia se enganava fazendo voltas inúteis, aquém ou além do traçado ideal, sabia retificar num traço ousado os desvios da natureza, suprindo em grande parte do trajeto as deficiências da carne e do tecido. Haviam sumido as almofadas, a "armadura" do terrível colete, bem como os corpinhos com alertas que, sustidos por barbatanas, sobressaíam por cima do vestido; todas as peças que, durante muito tempo, tinham acrescentado a Odette um ventre postiço e lhe haviam dado a aparência de ser composta de peças disparatadas sem qualquer individualidade que as unisse. As linhas verticais das franjas e a curva dos franzidos tinham cedido o posto à inflexão de um corpo que fazia palpitar a seda, como a sereia faz arfar as ondas, e dava à percalina uma expressão humana, agora que se libertara, como forma organizada e viva, do longo caos do envolvimento nebuloso das modas destronadas. Porém a Sra. Swann desejara, e soubera conservar, o vestígio de algumas delas até no meio das que havia substituído. Quando à noite, sem poder trabalhar e estando seguro de que Gilberte se achava no teatro com as amigas, eu ia sem avisar à casa dos pais dela, muitas vezes encontrava a Sra. Swann vestindo um elegante déshabillé, cuja saia, de belos tons sombrios, vermelho escuro ou alaranjado, cores que pareciam ter um sentido especial porque já não estavam na moda, era obliquamente atravessada por uma faixa ampla e perfurada, de renda negra, que lembrava os volantes de antigamente. Quando, num dia ainda frio de primavera, antes de minha briga com sua filha, ela me levara ao Jardim da Aclimação, a Sra. Swann entreabria mais ou menos a gola da jaqueta, conforme o calor que sentia enquanto andava, de forma que aparecia a gola denteada de sua blusa bem como a vislumbrada lapela de um ausente casaco sem mangas, Semelhante a um dos que usara alguns anos antes e que lhe agradava tivessem as bordas ligeiramente picotadas; e sua escocesa, pois permanecia fiel ao tipo escocês, mas suavizando de tal modo os tons (fazendo rosa o vermelho, e lilás o azul); safira, de trevos de quatro folhas de prata e medalhões de ouro, de amuletos de turquesa, contas de topázio, no próprio vestido havia um certo desenho de cores.
      Eu pensava como nos sonhos, onde alguém ama nossos desejos, como a preterimos àquela entediada, em que teríamos de encarar uma pessoa a quem já não poderíamos dizer à vontade as palavras desejadas, mas de quem sofreríamos novas friezas e inesperadas! Todos sabemos que o esquecimento e até mesmo a vaga lembrança quando já não amamos, não causam tanta dor como o amor infeliz. Eu sem confessá-lo, a doçura repousante desse esquecimento antecipado. Além disso, o que esse regime de desprendimento psíquico e delineamento pudesse ter de penoso ia aos poucos diminuindo por um outro que esse regime enfraquece a ideia fixa que forma o amor, enquanto não o completo. Meu amor ainda era bastante intenso para que continuasse até o meu prestígio aos olhos de Gilberte; prestígio que, devido à minha visita voluntária, devia, conforme achava, crescer progressivamente, de modo que os dias tranquilos e tristes em que não a via, vindo um após outro, sem interrupção; sem prescrição (a menos que um intrometido se misturasse nos seus assuntos) eram dias ganhos e não perdidos. A resignação, modalidade do hábito, permite certas forças e indefinidamente. Aquelas, tão ínfimas, com que pudera suportar meus dias, na primeira noite de minha briga com Gilberte, desde então chegaram à ausência incalculável. Apenas, a tendência a se prolongar, que todas as coisas têm, é por vezes cortada por impulsos bruscos, aos quais cedemos, praticamente sem escrúpulos, justo por sabermos durante quantos dias e meses teriam durado; ou saberíamos ainda, resistir. E muitas vezes ocorre que esvaziamos muitas vezes a bolsa de dinheiro bem quando ia ficar cheia, sem esperar pelo resultado do tratamento quando já estávamos acostumados a segui-lo. Um dia em que repetia à Sra. Swann as palavras de costume acerca do prazer que Gilberte ao me ver sentia; como que ao alcance da mão, aquela ventura de que já roeu há tanto tempo, fiquei perturbado ao verificar que ainda não me era: desfrutá-la; e custou-me esperar pelo dia seguinte; resolvera ir surpreender antes do jantar.
      O que me ajudou a ter paciência por todo o espaço de um dia; - projeto que engendrei. Desde o instante em que tudo estava esquecido, reconciliara com Gilberte, só queria vê-la como apaixonado. Todos os dias recebia de mim as mais belas flores que houvesse. Se a Sra. Swann, tivesse o direito de se mostrar mãe muito severa, não me permitisse o envio de flores, eu encontraria presentes mais preciosos e menos constantes, não me davam muito dinheiro para comprar coisas caras. Pensei nunca potiche chinês antigo que me fora deixado pela tia Léonie; todos os dias agourava que Françoise viria dizer-lhe: "Caiu..." e que dele não sobraria tais condições, não era mais prudente vendê-lo, para poder dar todo o presente que desejava à Gilberte? Achava que poderia conseguir uns mil francos; por estar embrulhado; por força do hábito, nunca havia reparado nele; se o desembrulhasse teria ao menos uma vantagem, a de conhecê-lo. Antes de ir à casa dos Swann, eu mesmo o carreguei, dando o endereço deles ao cocheiro, e avisando que fosse pelos Champs-Élysées, onde ficava a loja de um grande negociante de antiguidades chinesas conhecido de meu pai. Para minha grande surpresa, ofereceu-me logo pelo potiche não mil, mas dez mil francos. Peguei as notas, deslumbrado: durante um ano, poderia encher Gilberte de rosas e lilases. Quando voltei para o carro, deixando o negociante, o cocheiro, com toda a naturalidade, visto que os Swann moravam perto do Bois, em vez de seguir o caminho de costume, desceu a avenida dos Champs-Élysées. Já ultrapassara a esquina da rua de Berri quando, ao crepúsculo, julguei reconhecer, bem perto da casa dos Swann, mas indo em direção contrária e afastando-se, Gilberte, que caminhava devagar, embora com passo firme, ao lado de um rapaz com quem conversava e cujo rosto não pude distinguir. Ergui-me no carro, querendo parar, depois hesitei. Os dois passeantes já estavam um tanto longe, e as duas linhas suaves e paralelas que seu lento passeio traçava iam se esfumando na sombra elísia. Em breve parei diante da casa de Gilberte. Fui recebido pela Sra. Swann:

- Oh, ela vai ficar triste - disse-me -; nem sei como é que não está presente. Saiu com muito calor de uma aula; disse que desejava tomar um pouco de ar com uma das amigas.
- Creio tê-la visto na avenida dos Champs-Élysées. 
- Não acho que se tratasse dela. Em todo caso, não conte nada a seu pai, pois não gosta nada que ela saía a essas horas. Good evening.

      Despedi-me, disse ao cocheiro que voltasse pelo mesmo caminho, mas já não encontrei os dois passeando. Para onde teriam ido? Que diriam um ao outro, na noite, com aquele ar confidencial?

continua na página 88...
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À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - r)
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Volume 4
Volume 5
Volume 6
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