segunda-feira, 24 de março de 2025

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Torreão (XXXVII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXVII

UM TORREÃO


O túmulo de um amigo. 

STERNE 


     ELE OUVIU UM RUÍDO FORTE NO CORREDOR; não era a hora em que subiam até sua prisão; a águia-marinha voou gritando, a porta abriu-se, e o venerável abade Chélan, trêmulo e com uma bengala na mão, lançou-se em seus braços. 

– Oh! Meu Deus! Como é possível, meu filho?... Monstro! eu deveria dizer.

      E o bom velhinho não conseguiu dizer mais nada. Julien temeu que ele caísse. Foi obrigado a conduzi-lo a uma cadeira. A mão do tempo abatera-se sobre esse homem outrora tão vigoroso. Ele pareceu a Julien não ser mais que a sombra de si mesmo.
     Quando recobrou o fôlego, ele falou:

– Somente anteontem recebi sua carta de Estrasburgo, com os quinhentos francos para os pobres de Verrières; foi-me entregue na montanha, em Liveru, onde vivo retirado na casa de meu sobrinho Jean. Ontem fiquei sabendo da catástrofe... Ó céus! Como é possível? E o ancião não chorava mais, parecia privado de ideia; acrescentou maquinalmente: Você terá necessidade de seus quinhentos francos, trago-os de volta.
– Tenho necessidade de vê-lo, meu pai!, exclamou Julien, enternecido. Dinheiro não me falta.

     Mas não pôde mais obter uma resposta sensata. De tempo em tempo, o sr. Chélan derramava lágrimas que escorriam silenciosamente pela face; depois olhava para Julien e ficava como atônito de vê-lo tomar-lhe as mãos e levá-las aos lábios. Aquele rosto outrora tão vivo, e que mostrava com tanta energia os mais nobres sentimentos, estava completamente apático. Uma espécie de camponês veio pouco depois buscar o ancião. – Ele não deve ser fatigado, disse a Julien, que compreendeu tratar-se do sobrinho. Essa visita mergulhou Julien numa infelicidade cruel e sem lágrimas. Tudo lhe parecia triste e sem consolo; sentia o coração gelado no peito.
     Foi o instante mais cruel que sentiu desde o crime. Acabava de ver a morte, e em toda a sua feiura. Todas as ilusões de grandeza de alma e de generosidade haviam se dissipado como uma nuvem diante da tempestade.
      Essa aflitiva situação durou várias horas. Depois do envenenamento moral, é preciso remédios físicos e vinho de Champagne. Julien achou que seria uma covardia recorrer a isso. No final dessa horrível jornada, que ele passou inteiramente a caminhar por seu estreito torreão, exclamou: Como sou louco! A visão desse pobre ancião deveria lançar-me em tal tristeza se eu devesse morrer como um outro qualquer; mas uma morte rápida e na flor da idade protege-me precisamente dessa triste decrepitude.
      Não obstante os raciocínios que fizesse, Julien sentia-se enternecido como uma criatura pusilânime, e portanto infeliz com essa visita.
     Não havia mais nada de rude e de grandioso nele, mais nenhuma virtude romana; a morte aparecia-lhe a uma maior altitude e como coisa menos fácil.
     Será esse o meu termômetro, pensou. Esta noite estou seis graus abaixo da coragem que preciso para chegar à guilhotina. Hoje de manhã eu tinha essa coragem. De resto, o que importa, contanto que ela me volte no momento necessário? A ideia do termômetro divertiu-o e conseguiu finalmente distraí-lo.
     No dia seguinte, ao despertar, envergonhou-se da jornada da véspera. Minha felicidade e minha tranquilidade estão em jogo. Quase resolveu escrever ao procurador geral para pedir que ninguém mais viesse visitá-lo. E Fouqué? pensou. Se estiver a caminho de Besançon, qual não seria sua dor?
      Já fazia talvez dois meses que ele não pensava em Fouqué. Fui um grande estúpido em Estrasburgo, meu pensamento não ia além da gola do meu uniforme. A lembrança de Fouqué o ocupou por muito tempo e o deixou ainda mais enternecido. Andava de um lado a outro com agitação. Eis-me decididamente vinte graus abaixo do nível da morte... Se essa fraqueza aumentar, será melhor matar-me. Que alegria para os padres Maslon e os Valenod se morro como um lacaio!
     Fouqué chegou; esse homem simples e bom estava completamente arrasado. Sua única ideia, se tivesse alguma, era vender todos os bens para subornar o carcereiro e salvar Julien. Ele falou longamente da fuga do sr. de Lavalette.

– Fazes-me sentir pena, disse-lhe Julien; o sr. de Lavalette era inocente, eu sou culpado. Sem querer, fazes-me pensar na diferença...

     Mas é verdade mesmo? Venderias todos os teus bens?, disse Julien, tornando-se outra vez observador e desconfiado.
      Fouqué, encantado de ver o amigo responder enfim à sua ideia dominante, explicou longamente e em detalhes o que tiraria de cada uma de suas propriedades.
      Que esforço sublime num proprietário rural! Quantas economias, quantas sovinices que me faziam corar quando as via fazer, ele sacrifica por mim! Aqueles elegantes jovens que conheci na mansão de La Mole, e que leem René, não teriam esses ridículos; mas, com exceção dos muito jovens e enriquecidos por herança, que ignoram o valor do dinheiro, qual desses belos parisienses seria capaz de tal sacrifício?
      Todos os erros de francês, todos os gestos comuns de Fouqué desapareceram, Julien lançou-se em seus braços. Jamais a província, comparada a Paris, recebeu mais bela homenagem. Fouqué, encantado com o momento de entusiasmo que via nos olhos do amigo, tomou-o como um consentimento à fuga.
     Essa visão do sublime devolveu a Julien a força que a visita do sr. de Chélan o fizera perder. Ele ainda era muito jovem; mas, em minha opinião, foi uma bela planta. Em vez de ir do terno ao astucioso, como a maioria dos homens, a idade lhe teria dado a bondade fácil de comover-se, ele teria se curado de uma desconfiança insensata... Mas de que servem estas inúteis predições?
     Os interrogatórios tornavam-se mais frequentes, a despeito dos esforços de Julien, cujas respostas buscavam sempre abreviar o caso: – Matei ou, pelo menos, tive a intenção de matar e com premeditação, ele repetia a cada vez. Mas o juiz era acima de tudo formalista. As declarações de Julien não abreviavam de modo algum os interrogatórios; o amor-próprio do juiz ofendera-se. Julien não ficou sabendo que quiseram transferi-lo para um terrível cárcere, e que foi graças aos esforços de Fouqué que lhe deixaram aquele belo quarto, a cento e oitenta degraus de altura.
     O abade de Frilair era um dos homens importantes que encomendavam a Fouqué sua provisão de lenha de aquecimento. O bom comerciante foi procurar o poderoso vigário-geral. Para a sua inexprimível satisfação, o sr. de Frilair anunciou-lhe que, tocado pelas boas qualidades de Julien e pelos serviços que outrora prestara ao seminário, pretendia recomendá-lo aos juízes. Fouqué entreviu a esperança de salvar o amigo e, ao sair, prosternando-se até o chão, suplicou ao vigário-geral distribuir em missas, para implorar a absolvição do acusado, uma soma de dez luíses.
     Fouqué equivocava-se estranhamente. O sr. de Frilair não era um Valenod. Ele recusou e deu mesmo a entender ao bondoso camponês que ele faria melhor guardando seu dinheiro. Vendo a impossibilidade de ser claro sem imprudência, aconselhou que desse aquela quantia em esmolas aos pobres prisioneiros que, de fato, nada possuíam.
      Esse Julien é uma criatura singular, sua ação é inexplicável, pensava o sr. de Frilair, e nada deve sê-lo para mim... Talvez se possa fazer dele um mártir... De qualquer modo, saberei o fim desse caso e talvez encontre um meio de amedrontar essa sra. de Rênal, que não nos estima e, no fundo, me detesta... Talvez possa encontrar em tudo isso uma forma de reconciliação manifesta com o sr. de La Mole, que tem um fraco por esse seminarista.
     A transação sobre o processo fora assinada algumas semanas antes, e o abade Pirard havia partido de Besançon, não sem antes ter falado do misterioso nascimento de Julien, no dia mesmo em que o infeliz atentava contra a vida da sra. de Rênal na igreja de Verrières.
      Julien não via senão um acontecimento desagradável entre ele e a morte, era a visita de seu pai. Consultou Fouqué sobre a ideia de escrever ao procurador geral, para ser dispensado de qualquer visita. Esse horror de ver o pai, em tal momento, chocou profundamente o coração honesto e burguês do comerciante de madeiras.
      Ele julgou compreender por que tanta gente odiava apaixonadamente seu amigo. Por respeito pela infelicidade, não deixou transparecer sua maneira de sentir.

– De qualquer maneira, respondeu friamente, essa ordem de incomunicabilidade não seria aplicada a teu pai. 
 

continua página 322...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Um Torreão (XXXVII)
O Vermelho e o Negro: Um Homem Poderoso (XXXVIII)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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