domingo, 16 de março de 2025

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (03)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



A bolsa

continuando...


     As duas senhoras começaram falando em pintura, porque as mulheres adivinham muito bem os secretos embaraços que uma primeira visita acarreta, elas mesmas os sentem, talvez, e a natureza de seu espírito fornece-lhes mil recursos para fazê-los cessar. Interrogando o rapaz sobre os processos materiais de sua arte, sobre seus estudos, Adelaide e sua mãe conseguiram dar ânimo ao pintor para conversar. Os nadas indefiníveis da conversação das duas, cheia de benevolência, levaram muito naturalmente Hipólito a expender observações ou pensamentos que pintaram a natureza de seus costumes e de sua alma. Os desgostos haviam prematuramente envelhecido o rosto da senhora, bela sem dúvida em outros tempos, mas conservando hoje apenas os traços salientes, os contornos, numa palavra, o esqueleto de uma fisionomia, cujo conjunto indicava grande finura, muita graça no movimento dos olhos, nos quais se divisava a expressão particular às mulheres da antiga corte e que nada poderia definir. Aquelas feições tão finas, tão delicadas, tanto podiam denunciar maus sentimentos e indicar astúcia e manhas femininas, levadas a um alto grau de perversidade, como revelar as delicadezas de uma bela alma. Com efeito, o semblante da mulher é embaraçoso para os observadores vulgares, pois a diferença entre a franqueza e a hipocrisia, entre o gênio da intriga e o gênio do coração, é nele imperceptível. O homem dotado de vista penetrante adivinha essas tonalidades sutilíssimas, produzidas por uma linha mais ou menos curva, uma covinha mais ou menos escavada, uma saliência mais ou menos arqueada ou proeminente. A apreciação desses diagnósticos é inteiramente da esfera da intuição, a única que pode desvendar o que cada um está interessado em esconder. Dava-se com o rosto da velha dama o mesmo que com o apartamento em que ela morava; parecia tão difícil saber se aquela miséria encobria vícios ou uma alta probidade, como verificar se a mãe de Adelaide era uma antiga coquete, habituada a tudo pesar, calcular, vender, ou uma mulher sensível, cheia de nobreza e de amáveis qualidades. Na idade de Schinner, porém, o primeiro impulso do coração é de crer no bem. Por isso, ao contemplar a nobre e quase desdenhosa fronte de Adelaide, ao fitar seus olhos cheios de alma e de pensamentos, ele, por assim dizer, respirou os suaves e modestos perfumes da virtude. Em meio da palestra, ele aproveitou uma oportunidade para falar de retratos em geral, proporcionando-se assim o direito de examinar o horroroso pastel, cujo colorido havia desmaiado e cujo polvilho em grande parte caíra.

 — As senhoras talvez gostem muito desta pintura por causa da semelhança, porque o desenho é horrível, não? — perguntou ele, olhando para Adelaide.
 — Foi feita em Calcutá, muito apressadamente — respondeu a mãe, com voz comovida.

      Ela contemplou o esboço informe com aquele enlevo profundo que as recordações da felicidade produzem, quando despertam e caem sobre o coração, como um orvalho benfazejo, e em cujas refrescantes impressões tanto gostamos de mergulhar; mas houve também na expressão da fisionomia da velha dama vestígios de um eterno luto. Pelo menos foi assim que o pintor quis interpretar a atitude e o semblante de sua vizinha, junto à qual foi então sentar-se.

 — Senhora — disse ele —, dentro em pouco terão desaparecido as cores desse pastel. O retrato apenas existirá então na sua memória. Ali onde a senhora verá uma imagem que lhe é cara, os demais nada perceberão. Quer permitir-me transportar aquela semelhança para a tela? Ela assim ficará mais solidamente fixada do que o está nesse papel. Conceda-me em atenção à nossa vizinhança o gosto de prestar-lhe esse serviço. Há horas em que um artista gosta de descansar das suas grandes composições, por meio de trabalhos de menor alcance. Será para mim uma distração refazer essa cabeça.

      A velha dama estremeceu ao ouvir essas palavras, e Adelaide dirigiu ao pintor um desses olhares concentrados, que parecem um jorro vindo da alma. Hipólito queria ligar-se às suas vizinhas por um laço qualquer e conquistar o direito de mesclar-se à sua vida. Seu oferecimento, que se dirigia aos mais vivos sentimentos afetivos, era o único que lhes podia fazer, pois satisfazia seu orgulho de artista e nada tinha de humilhante para as duas damas. A sra. Leseigneur aceitou sem calor nem pesar, mas com a consciência das grandes almas que conhecem a extensão dos laços que semelhantes favores estabelecem e que deles constituem um magnífico elogio, uma prova de estima.

 — Parece-me — disse o pintor — que esse uniforme é de um oficial de Marinha?
— Sim — disse ela —, é o de um comandante de navio, o sr. de Rouville, meu marido. Morreu em Batávia, em consequência de ferimentos recebidos em combate com um vaso de guerra inglês, com o qual se encontrou nas costas da Ásia. Ele comandava uma fragata de cinquenta e seis canhões, ao passo que o Revenge era uma nau de noventa e seis bocas de fogo. A luta foi muito desigual, mas ele se defendeu com tanta coragem que a sustentou até a noite e pôde escapar. Quando regressei à França, Bonaparte ainda não estava no poder, e recusaram-me uma pensão. Quando, ultimamente, eu a solicitei outra vez, o ministro disse-me com dureza que, se o barão de Rouville tivesse emigrado, eu a teria obtido, que hoje ele seria contra-almirante; enfim Sua Excelência terminou opondo-me não sei que lei sobre perda de direitos. Só fiz essa tentativa, a que fui impelida por amigos, por causa de minha pobre Adelaide. Sempre tive repugnância de estender a mão em nome de uma dor que tira à mulher sua voz e suas forças. Não me agrada essa avaliação pecuniária de um sangue irreparavelmente derramado...
 — Minha mãe, esse assunto sempre lhe faz mal.

      Ante essas palavras de Adelaide, a baronesa Leseigneur de Rouville curvou a cabeça e calou-se.

— Senhor — disse a rapariga a Hipólito —, eu pensava que os trabalhos dos pintores fossem, de um modo geral, pouco ruidosos.

      A essa pergunta, Schinner corou, lembrando-se do barulho que fizera. Adelaide não concluiu e poupou-lhe uma mentira qualquer, levantando-se de repente ao ruído de um carro que se deteve na porta; foi ao seu quarto, de onde voltou em seguida com dois castiçais dourados, guarnecidos de velas já usadas, que ela acendeu bem depressa, e, sem esperar o tinir da sineta, abriu a porta da primeira peça, onde deixou a lâmpada. O ruído de um beijo, dado e recebido, repercutiu até o coração de Hipólito. A impaciência mal contida do rapaz para ver aquele que tratava Adelaide tão familiarmente não foi logo satisfeita. Os visitantes tiveram com a moça uma conversação em voz baixa que ele achou demasiado comprida. Finalmente, a srta. de Rouville apareceu, acompanhada por dois homens, cujo vestuário, fisionomia e aspecto constituem toda uma história. O primeiro, homem de cerca de sessenta anos, vestia uma dessas casacas inventadas, creio eu, para Luís XVIII, que então reinava, e nas quais o problema mais difícil do vestuário foi resolvido por um alfaiate que deveria ser imortal. Esse artista conhecia, sem dúvida nenhuma, a arte das transições que foi todo o espírito desse tempo tão politicamente móvel. Não é um mérito bastante raro o saber julgar a própria época? Aquela casaca, que os rapazes de hoje podem tomar por fábula, não era nem civil nem militar e podia passar ora por militar, ora por civil. Flores-de-lis bordadas ornavam os debruados das abas posteriores. Os botões dourados tinham também flores-de-lis. Nos ombros, duas passadeiras vazias pediam dragonas. Esses dois indícios de milícia ali estavam como uma petição sem apostila. No velho, a botoeira da casaca de fazenda azul estava florida com diversas fitas. Com certeza sempre trazia na mão seu tricórnio, guarnecido com alamar de ouro, pois as mechas níveas de seus cabelos empoados não apresentavam vestígios da pressão do chapéu. Parecia não ter mais de cinquenta anos e dava a impressão de gozar de perfeita saúde. Não deixando de acusar o caráter leal e franco dos velhos emigrados, sua fisionomia denotava também os costumes libertinos e fáceis, as paixões alegres e a despreocupação daqueles mosqueteiros, outrora célebres nos anais da galantaria. Seus gestos, seu porte, suas maneiras demonstravam que ele não se queria corrigir nem do seu monarquismo, nem da sua religião, nem dos seus amores.
      Uma figura verdadeiramente fantástica acompanhava esse pretensioso voltigeur de Luís XIV [1] (tal foi a alcunha dada pelos bonapartistas àqueles nobres remanescentes da monarquia); mas, para bem descrevê-la, seria preciso fazer dela o objeto principal do quadro, no qual ela é apenas um acessório. Imaginem uma personagem magra e seca, vestida como o outro, mas não sendo, por assim dizer, mais do que seu reflexo, ou sua sombra, se quiserem. A casaca, nova no primeiro, no outro estava velha e sovada. O pó dos cabelos parecia, no último, menos branco, o ouro das flores-de-lis era menos brilhante, as passadeiras das dragonas mais desesperadas e amarrotadas, a inteligência mais fraca, a vida mais próxima ao termo fatal, do que no primeiro. Enfim, realizava o dito de Rivarol sobre Champcenetz: “É o meu lugar”.[2] Nada mais era do que a cópia do outro, uma cópia pálida e pobre, pois existia entre eles a diferença que há entre a primeira e a última prova de uma litografia. Esse ancião mudo foi um mistério para o pintor e conservou-se constantemente um mistério. O cavalheiro — era cavalheiro — não falou, e ninguém lhe dirigiu a palavra. Seria um amigo, um parente pobre, um homem que acompanhava o velho conquistador, como uma dama de companhia acompanha uma velha senhora? Teria ele salvo a fortuna ou apenas a vida do seu benfeitor? Seria o Trim de um outro capitão Toby?[3] Por toda parte, como em casa da baronesa de Rouville, ele despertava sempre curiosidade, sem jamais satisfazê-la. Quem poderia, sob a Restauração, lembrar-se dos laços que antes da Revolução prendiam o cavalheiro à esposa de seu amigo, morta fazia vinte anos?
     A personagem que parecia ser a mais moça daqueles dois destroços adiantou-se galantemente para a baronesa de Rouville, beijou-lhe a mão e sentou-se a seu lado. A outra saudou e colocou-se perto do seu modelo, a uma distância representada por duas cadeiras. Adelaide veio apoiar seus cotovelos no espaldar da poltrona ocupada pelo velho gentil-homem, imitando, sem o saber, a pose que Guérin deu à irmã de Dido no seu célebre quadro.[4] Conquanto a familiaridade do velho fidalgo fosse a de um pai, de momento suas liberdades pareceram desagradar à moça.

— Que é isso, estás enfadada comigo? — perguntou ele.

     Depois lançou sobre Schinner um desses olhares enviesados, cheios de finura e de manha, olhares diplomáticos, cuja expressão traía a prudente inquietação, a curiosidade polida das pessoas bem-educadas que parecem, ao ver um desconhecido, perguntar: “É ele dos nossos?”.

 — Apresento-lhe nosso vizinho — disse-lhe a velha senhora, mostrando-lhe Hipólito. — Este senhor é um pintor célebre, cujo nome deve ser-lhe conhecido, não obstante sua despreocupação pelas artes.

      O gentil-homem percebeu a malícia de sua velha amiga na omissão do nome, e saudou o rapaz.

— Certamente — disse ele — muito ouvi falar de seus quadros no último Salão. O talento, senhor, tem belos privilégios — acrescentou, olhando para a roseta vermelha do artista. — Essa distinção que temos de adquirir à custa de nosso sangue e de longos serviços, os senhores a obtêm ainda moços. Mas todas as glórias são irmãs — concluiu ele, levando a mão à sua cruz de São Luís.

continua pág 403...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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[1]  Voltigeur: fuzileiro de infantaria ligeira; no sentido figurado: partidário apaixonado.
[2] O dito de Rivarol sobre Champcenetz: Rivarol (1753-1801), espirituoso jornalista e escritor, autor do famoso Discurso sobre a Universalidade da Língua Francesa, teve como colaborador de seus panfletos o cavalheiro de Champcenetz (1759-1794), jornalista ultrarrealista, executado durante a Revolução.
[3] O caporal Trim é o criado inseparável do capitão Toby, duas figuras originais e divertidas do romance Tristram Shandy, de Sterne.
[4] O célebre quadro de Guérin (1774-1833): Eneias contando a Dido os desastres de Troia. Por uma coincidência das mais interessantes, Baudelaire, ao analisar, em suas Curiosidades estéticas, este mesmo quadro, observa que “o olho úmido desta Dido, afogado nos vapores do keepsake, quase anuncia certas parisienses de Balzac”.

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