sexta-feira, 7 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / VII - Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

VII - Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido
     
      Como já dissemos, Cosette não se assustara. 
      O homem dirigiu-lhe a palavra: falava com voz grave e quase baixa: 

 — Minha filha, o que aí levas é pesado de mais para ti.

      Cosette ergueu a cabeça e respondeu:

— Isso é, meu senhor. 
— Dá-mo cá então — tornou o homem — que eu levo-o.

      Cosette largou o balde e o homem principiou a caminhar ao lado dela.

— Com efeito, é muito pesado! — disse ele por entre dentes, e depois acrescentou: — Que idade tens tu, pequena?
— Oito anos, meu senhor.
— E vens assim de muito longe? 
— Ali da fonte do bosque. 
— E é muito distante o lugar para onde vais? 
— A um bom quarto de hora daqui.

     O homem esteve um momento sem falar e depois disse precipitadamente:

— Então tu não tens mãe?
— Não sei — respondeu a criança. — e acrescentou antes do homem ter tempo de retomar a palavra: — Julgo que não. As outras têm, mas eu não. — após uma pausa, continuou: — Eu julgo que nunca a tive.

     O homem parou, pousou o balde no chão, baixou-se e pôs as mãos nos ombros da criança, forcejando por a examinar e ver-lhe o rosto no meio da escuridão.
     Ao lívido clarão do céu desenhava-se vagamente a figura magra e doente de Cosette.

— Como te chamas? — disse o homem. 
— Cosette.

      O homem teve como que um choque eléctrico. Contemplou-a outra vez, tirou as mãos de cima dos ombros de Cosette, pegou no balde e continuou a caminhar. 
      Ao cabo de um instante, perguntou:

— Onde moras tu, pequena? 
— Em Montfermeil, não sei se o senhor sabe onde é. 
— E é para lá que nós vamos? 
— É, sim, senhor.

      O homem fez ainda outra pausa e depois continuou:

— Quem foi que te mandou à água ao bosque a semelhante hora? 
— Foi a senhora Thenardier.

     O homem replicou com um tom de voz que forcejava por tornar indiferente, mas em que, não obstante, havia um tremor singular:

— Quem é essa senhora Thenardier? 
— É a minha patroa — disse a criança —, a dona da estalagem. 
— Da estalagem? — disse o homem. — Então vou lá pernoitar hoje. Ensina-me o caminho. 
— Nós para lá vamos — disse a criança.

      O homem caminhava bastante depressa, Cosette, porém, seguia-o sem custo e sem sentir cansaço. De espaço a espaço levantava os olhos para este homem com uma espécie de tranquilidade e abandono inexprimível. Nunca ninguém a ensinara a voltar-se para a Providência e a orar, porém ela sentia em si o que quer que fosse que se parecia com a esperança e com a alegria, e que se dirigia para o céu. 
     Decorridos alguns minutos, o homem tornou:

— Então a senhora Thenardier não tem criada? 
— Não, senhor. 
— Então és tu só? 
— Sou, sim, senhor.

     Houve ainda outra interrupção, depois da qual Cosette elevou a voz:

— Isto é, lá em casa há duas meninas. 
— Que meninas são essas? 
— Ponina e Zelma.

     Era assim que a criança simplificava estes romanescos nomes tão caros à estalajadeira.

— Que vem a ser isso de Ponina e Zelma? 
— São as filhas da senhora Thenardier. 
— E que fazem elas? — Oh! — disse a criança. — Têm lindas bonecas, coisas de ouro, nem sabem para onde se hão de voltar! Jogam, brincam, fazem o que querem. 
— Todo o dia? 
— Sim, senhor. 
— E tu? 
— Eu cá trabalho. 
— Todo o dia?

     A criança ergueu os seus grandes olhos, nos quais havia uma lágrima, que por causa da escuridão não se via e respondeu com doçura:

— Sim, meu senhor. — e, após um intervalo de silêncio, prosseguiu: — Às vezes também brinco, quando acabo o serviço e me deixam. 
— E com que brincas? 
— Com o que posso. Ninguém se importa. Mas eu não tenho muitos brinquedos, e Ponina e Zelma não querem que eu brinque com as bonecas delas. Não tenho senão uma espadita de chumbo, que não é maior do que isto.

      E a criança mostrava o dedo mínimo.

— E que não corta? 
— Ai, corta, sim, senhor; corta salada e cabeças de moscas.

      Nisto chegaram à aldeia e Cose e guiou o viajante pelas ruas. Passaram pela padaria, porém, Cose e não se lembrou de que lhe tinham mandado levar um pão. O homem havia cessado de fazer-lhe perguntas e guardava um silêncio triste. Depois que passaram a igreja, o homem, vendo todas aquelas barracas ao ar livre, perguntou a Cosette:

— Isto aqui é alguma feira? 
— Não, senhor, é o Natal.

      Ao aproximarem-se da estalagem, Cose e disse-lhe, tocando-lhe o braço timidamente:

— Ó senhor... 
— Que é, minha filha? 
— Estamos ao pé de casa. 
— E então? 
— Faz favor de me dar agora o balde? 
— Porquê? 
— É porque se a patroa vê que não fui eu que o trouxe, bate-me.

     O homem deu-lhe o balde e um instante depois estavam à porta da taberna.

continua na página 307...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VII — Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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