em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(f)
continuando...
O advogado citou Mathurin Régnier e Macette ao primeiro magistrado. Aliás, não é necessário crer que semelhante mal-entendido fosse momentâneo, como os que se formam no segundo ato de um vaudeville para se resolverem no último ato. A Sra. de Luxemburgo, sobrinha do rei da Inglaterra e do imperador da Áustria, e a Sra. de Villeparisis pareceram sempre, quando a primeira vinha buscar a segunda para passearem de carro, duas estouvadas, dessas que é bem difícil evitar nas estâncias balneárias. Três quartas partes dos homens do faubourg Saint-Germain passam aos olhos de uma boa parte da burguesia por crápulas arruinados (o que aliás são às vezes, individualmente) e que, portanto, ninguém recebe. A burguesia é por demais honesta nesse ponto, pois as suas taras não os impediriam de forma alguma de serem recebidos com o maior favor onde ela jamais o será. E, de tal maneira imaginam que a burguesia o sabe, que afetam com uma simplicidade no que lhes diz respeito, um menosprezo pelos amigos particularmente "duros", que aumenta ainda mais o mal-entendido. Se por acaso um homem da alta sociedade se relaciona com a pequena burguesia porque, sendo extremamente rico, ocorre lhe presidir as mais importantes sociedades financeiras, a burguesia, que vê por fim um nobre digno de ser um grande burguês, juraria que ele não convive com o marquês jogador e arruinado, a quem julga tanto mais desprovido de relações quanto mais amável. E qual não é seu espanto quando o duque, presidente do conselho administrativo da colossal empresa, dá ao filho por esposa a filha do marquês; jogador, mas cujo nome é o mais antigo da França, assim como um soberano antes fará seu filho casar-se com a filha de um rei destronado que a de um presidente da república no exercício de seu mandato. Quer dizer que os dois mundos têm, um do outro, uma noção tão quimérica como os habitantes de uma praia situada numa das extremidades da baía de Balbec têm da praia localizada na outra extremidade: de Rivebelle avista-se um pouco Marcouville -l'Orgueilleuse, mas mesmo isto ilude, pois a gente julga ser avistado de Marcouville, de onde ao contrário, os esplendores de Rivebelle são em grande parte invisíveis.
O médico de Balbec, chamado em virtude de um acesso de febre tivera, achou que eu não
deveria ficar o dia inteiro à beira-mar, em pleno soalheira, e prescreveu para meu uso algumas
receitas. Minha avó as tomou com um respeito aparente, onde logo reconheci sua firme decisão
de não cumprir nenhuma, mas levou em consideração o conselho em matéria de higiene e aceitar
o oferecimento da Sra. de Villeparisis para alguns passeios de carro. Eu ia à hora do almoço, do
meu quarto ao de minha avó. Este não dava diretamente ao mar, como o meu, mas recebia luz de
três lados diversos: de uma extremidade do molhe, de um pátio e do campo, e era mobiliado de
modo diferente, com toalhas bordadas de filigranas metálicas e de flores róseas de onde parecia
emanam suave e agradável que a gente encontrava ao entrar. E, nessa hora em que vindos das
exposições e como que de horas diversas quebravam os ângulos do muro, ao lado de um reflexo
da praia, punham na cômoda um repositório como as flores do caminho, suspendiam à parede as
asas dobradas, têm as mornas de uma claridade em vias de retomar seu voo, aqueciam como um
retângulo de tapete provinciano diante da janela do patiozinho; que engrinaldava como a uma
videira, aumentavam o encanto e a complexidade da decoração dos móveis, parecendo esfoliar a
seda florida das poltronas, aquele quarto que eu atravessava um momento antes de me vestir
para o passeio, dava a impressão de um prisma onde se decoram as cores da luz de fora, ou de
uma colmeia onde os sucos do dia que estivessem dissociados, esparsos, inebriantes e visíveis,
ou de um jardim a lembrança que se dissolvesse numa palpitação de raios de prata e de pétalas.
Porém, antes de tudo, eu abrira minhas cortinas na impaciência de saber onde a marquesa
brincava aquela manhã na praia, como uma nereida. Pois nenhum desses mares ficava por ali
mais de um dia. Na manhã seguinte haveria outra vez que se parecia com ele. Mas nunca vi duas
vezes o mesmo mar. Havia uns de beleza tão rara que, ao percebê-los, o meu prazer em ser
constatado ainda pela surpresa. Que privilégio teria uma manhã sobre as outras; a janela, ao
entreabrir-se, desvelasse aos meus olhos maravilhados, glaucônome, cuja preguiçosa beleza e
suave respirar tinham a transparência de uma vaporosa esmeralda, através da qual eu via fluírem
os elementos que a coloriam? Fazia o sol brincar com um sorriso enfraquecido por mais invisível,
que outra coisa não era que o espaço vazio reservado à superfície translúcida, que assim se
tornava mais abrangente e sedutor que essas deusas que o escultor salienta em meio a um bloco,
que nem consegue desbastar. Assim, com sua cor única, o mar nos convidava ao passeio pelos
caminhos grosseiros e terrenos, de onde, instalados na carruagem da Sra. De Villeparisis
contemplaríamos o dia inteiro, sem nunca o alcançar, o frescor de sua palpitação macia. A Sra. de
Villeparisis mandara atrelar cedo, para que tivéssemos tempo de ir a Saint-Mars-le-Vêtu, ou aos
rochedos de Quetteholme, ou até qualquer outro ponto de excursão que, para um carro muito
vagaroso, seria bem distante e levava o dia inteiro. Na minha alegria pelo passeio demorado que
íamos fazer, cantarolava uma canção recentemente ouvida e andava de um lado para o outro à
espera de que a Sra. de Villeparisis se aprontasse. Se fosse domingo, seu carro não estaria
sozinho diante do hotel; vários fiacres alugados esperavam não só as pessoas que eram
convidadas para o castelo de Féterne, pela Sra. de Cambremer, mas as que, em vez de ali
ficarem como crianças castigadas, declaravam que o domingo era um dia aborrecido em Balbec e
iam se esconder, logo após o almoço, numa praia vizinha ou visitar algum lugar das redondezas.
Muitas vezes, quando perguntavam à Sra. Blandais se fora à casa dos Cambremer, ela respondia
peremptoriamente:
- Não, estávamos na cascata do Balbec -, como se fosse esta a única razão pela qual não
passara o dia todo em Féterne. E o advogado afirmava caridosamente:
- Invejo-os. Com muito gosto teria trocado com vocês; é bem mais divertido. Junto dos
carros, diante do pórtico onde eu esperava, estava plantado, como um arbusto de rara espécie,
um jovem criado do hotel que chamava a atenção de todos menos pela singular harmonia dos
cabelos coloridos que por sua epiderme de planta. No interior, no hall que correspondia ao nártex,
ou igreja dos catecúmenos dos templos romanos, e onde tinham direito a entrar as pessoas que
não residiam no hotel, os companheiros do groom "externo" não trabalhavam muito mais que ele;
porém ao menos executavam alguns movimentos. É provável que de manhã ajudassem na
limpeza; mas de tarde estavam ali apenas como esses membros do coro que, mesmo quando não
servem para nada, permanecem em cena para aumentar o número de figurantes. O gerente-geral,
o mesmo que me dava tanto medo, contava aumentar consideravelmente o seu número no
próximo ano, pois ''via em ponto grande". Sua decisão muito afligia o gerente do hotel, que achava
que todos aqueles meninos não passavam de uns impertinentes, querendo com isso dizer que
estorvavam a passagem e eram inúteis. Mas, pelo menos no espaço entre o almoço e o jantar,
entre as saídas e regressos dos hóspedes, preenchiam eles o vazio da ação, como as alunas da
Sra. de Maintenon que, vestidas de jovens israelitas, dançam um intermezzo cada vez que Ester
ou Joab saem de cena. Mas o groom de fora, tão rico em matizes, de talhe delgado e frágil, perto
de quem eu esperava que a marquesa descesse, conservava uma imobilidade cheia de
melancolia, pois seus irmãos mais velhos tinham largado o hotel por destinos mais brilhantes e ele
se sentia isolado naquela terra estranha. Enfim chegou a Sra. de Villeparisis. Talvez coubesse ao
groom mandar o carro se aproximar e ajudar a senhora a subir; mas, por um lado, sabia que
quem traz a criadagem consigo deve servir-se deles e, em geral, dá poucas gorjetas num hotel, e
que, por outro nobres do velho faubourg Saint-Germain procedem da mesma maneira. A
Villeparisis pertencia ao mesmo tempo a essas duas categorias. Que arborescente concluía daí
que nada havia a esperar da marquesa; deixando o mordomo e a criada de quarto desta que a
instalassem no carro com seus; sonhava tristemente com a sorte invejável dos irmãos sem sair de
sua imagem vegetal.
Partíamos; algum tempo após ter contornado a estação de trem, estávamos numa estrada
rústica que em breve se tornou tão familiar como Combray, desde o cotovelo que principiava a se
meter por entre cercados até a outra volta, quando o abandonávamos, e que, de cada lado, terras
cultivadas. No meio delas, via-se aqui e ali uma macieira, é certo que de suas flores não trazendo
mais que um buquê de pistilos, mas que me encantaram porque reconhecia essas folhas
inimitáveis, em cuja ampla beleza, como pelo tapete de uma festa nupcial já terminada, passara
recentemente de cetim branco para de flores avermelhadas. Quantas vezes em Paris, no mês de
maio do ano seguinte, ocorria comprar um ramo de macieira numa florista e passar a noite diante
deste onde desabrochava aquela mesma essência cremosa a polvilhar ainda a espuma, os brotos
das folhas; e parecia que entre suas brancas corolas como por generosidade comigo, por gosto
inventivo e também por contraste, tinha posto como brinde, de cada lado, um botão róseo que lhe
contemplava, colocava-as à luz da lâmpada, por tanto tempo que ainda assim estava ali quando a
aurora lhes trazia a mesma vermelhidão; estar mostrando ao mesmo tempo sobre Balbec (eu
procurava naquela estrada por meio da imaginação, multiplicá-las, e estendê-las) preparado,
sobre a tela já pronta, quadro que formava como aquelas do desenho que sabia de cor e que
tanto desejaria ver - e um dia haveria de conseguir o momento em que a primavera cobre as telas
de suas cores com a inspiração do gênio.
Antes de subir para o carro, já compusera o quadro marinho, na esperança de vê-lo sob o
"sol radiante", que em Balbec eu só visse fragmentado entre tantas coisas vulgares e que meu
sonho não admitia, cabines, iates de recreio. Mas, quando o carro da Sra. de Villeparisis chegou
de uma colina, eu avistava o mar entre as folhagens; desapareciam na distância os detalhes
contemporâneos que, por assim dizer, tinham da natureza e da história; eu podia, olhando as
ondas, esforçar-me por que eram as mesmas que Leconte de Lisle nos pinta na Orestíada,
quando os guerreiros da heroica Hélade, "feito bandos de pássaros, com cem mil vibram ao mar
sonoro". Mas em compensação, já estava agora; mais o mar não se apresentava com vida e, sim,
entorpecido; eu já não sentia força em suas cores estendidas, como as de uma pintura, entre as
folhas das árvores; a água parecia tão inconsistente como o céu, e apenas um tanto mais escura
que ele.
Vendo que eu gostava das igrejas, a Sra. de Villeparisis prometia-me que haveríamos de
visitá-las aos poucos; principalmente a de Carqueville, "toda coberta de hera antiga", disse ela,
fazendo com a mão um movimento que parecia envolver com prazer a fachada ausente em uma
folhagem delicada e invisível. A Sra. de Villeparisis, com freqüência, tinha desses miúdos gestos
descritivos, acompanhados de uma palavra precisa para definir o encanto e a particularidade de
um monumento, evitando sempre os termos técnicos, mas sem poder dissimular que sabia muito
bem das coisas de que falava. À maneira de desculpa, alegava que um dos castelos de seu pai,
no qual se criara, ficava num distrito em que havia igrejas de estilo semelhante às dos arredores
de Balbec, e teria sido vergonhoso que ela não tomasse gosto pela arquitetura, ainda mais que
aquele castelo era o mais belo exemplar dos da Renascença. Mas, como também era um
verdadeiro museu, e como, por outro lado, ali haviam tocado Chopin e Liszt, e Lamartine recitado
seus versos, e todos os artistas conhecidos de um século inteiro ali haviam deixado pensamentos,
escrito melodias, feito desenhos no álbum da família; a Sra. de Villeparisis, fosse por gracejo, boa
educação, modéstia verdadeira, ou falta de espírito filosófico, atribuía a essa origem puramente
material o seu conhecimento de todas as artes; acabava considerando pintura e música, literatura
e filosofia; como o privilégio de uma jovem educada da maneira mais aristocrática em um
monumento ilustre e catalogado. Parecia que, para ela, não havia outros quadros senão os que se
herdam. Ficou satisfeita que minha avó gostasse de um colar que estava usando e que lhe
chegava à cintura. Estava no retrato de sua bisavó pintado por Ticiano e que nunca saíra da
família, de modo que se podia afirmar que era um Ticiano legítimo. Ela não queria ouvir falar em
quadros comprados Deus sabe como, por algum Creso; estava de antemão convencida de que
eram falsos e não manifestava desejo algum de vê-los. Sabíamos que ela própria pintava
aquarelas de flores e minha avó, que ouvira elogiá-las, falou-lhe delas. A Sra. de Villeparisis
mudou de assunto, por modéstia, mas sem mostrar maior espanto ou prazer do que uma artista
bastante conhecida, a quem os cumprimentos não trazem nada de novo. Contentou-se em dizer
que era um passatempo encantador porque, se as flores nascidas do pincel não eram famosas,
pelo menos pintá-las obrigava-nos a viver na companhia de flores naturais, cuja beleza,
principalmente quando é necessário olhá-las bem de perto para as copiar, não cansa nunca. Mas
em Balbec, a Sra. de Villeparisis tirava férias para descansar os olhos. Minha avó e eu ficamos
muito espantados ao perceber que a marquesa era mais "liberal" até que a maior parte da
burguesia. Ela se admirava que causas como é o do escândalo da expulsão dos jesuítas, dizendo
que isto sempre se fizera, mesmo sob a monarquia, mesmo na Espanha. Defendia a República,
cujo anticlericalismo censurava apenas em termos medidos:
"Acharia tão ruim que me impedissem de ir à missa como se me forçassem a ir sem ter
vontade", chegando mesmo a citar certas frases, como:
- É como esses romances de Stendhal, por quem você parece ter admiração. Você o
deixaria muito espantado se lhe falasse desse modo, que se encontrava com ele em casa do Sr.
Mérimée este sim, um homem de talento-, me disse várias vezes que Beyle (era este o seu nome)
era de uma vulgaridade, mas muito espirituoso num jantar e não alimentava ilusões de seus livros.
Aliás, você bem sabe como respondeu, com um ar de elogios excessivos do Sr. de Balzac. Nisto,
pelo menos, era homem de bom tom.
Ela possuía autógrafos de todos esses escritores e parecia achar às relações particulares
que sua família tivera com tais artistas, seu julgamento a respeito deles era muito mais justo que o
de rapazinhos como eu, que não os tinham conhecido.
- Creio que posso falar neles porque frequentavam a casa de meu pai e, como dizia o Sr.
Sainte-Beuve, que era muito espirituoso, sobre tais escritores, convém acreditar nos que os viram
de perto e puderam julgar mais precisamente o quanto valiam.
Às vezes, como o carro subisse por uma estrada entre campos cultivados, alguns
camponeses hesitantes, parecidos com os de Combray, seguiam nosso carro, tornando mais reais
os campos, ajuntando-lhes um sinal de autenticidade, como a preciosa florzinha com que certos
mestres antigos assinavam os quadros. O andamento dos nossos cavalos em breve nos separava
deles, porém pouco adiante já víamos outro que nos esperava, espetando na erva à nossa frente
a sua estrela azul; vários deles se atreviam a chegar à beira da estrada, e formava-se uma
nebulosa com minhas lembranças antigas e aquelas florzinhas domésticas.
Descíamos a encosta; então cruzávamos, subindo a pé, de bicicleta, numa carroça ou num
carro, com uma dessas criaturas-flores do dia claro, mas que não são como as flores dos campos,
pois cada uma encerra algo que não existe nas outras, o que impede que possamos satisfazer
com suas iguais o desejo que nos inspira-, uma moça de granja que guiava sua vaca, ou meio
deitada numa charrete, filha de lojista a passeio, uma senhorita elegante sentada na banqueta de
um landô, diante dos pais.
Certamente Bloch me abrira uma nova era e mudara-me o valor da vida, no dia em que me
ensinara que meus sonhos nos passeios solitários para os lados de Méséglise, quando desejava
que passasse uma moça do campo para tomá-la nos braços, não eram uma quimera que não
correspondesse a coisa alguma fora de mim, mas que toda moça que encontrasse, camponesa
ou citadina, estaria em condições de satisfazer tais desejos. Conquanto agora, por estar doente e
nunca sair sozinho, não pudesse fazer amor com elas, sentia-me no entanto alegre como uma
criança nascida numa prisão ou num hospital e que, tendo acreditado durante muito tempo que o
organismo humano só pode digerir pão seco e remédios, soube de repente que os pêssegos,
abricós e uvas não são um simples ornato dos campos, mas alimentos deliciosos e assimiláveis.
Mesmo que o carcereiro ou o enfermeiro não o deixe apanhar esses belos frutos, o mundo todavia
lhe parece melhor e a existência mais clemente. Pois um desejo se embeleza à nossos olhos, e
apoiamo-nos a ele com maior confiança quando sabemos que a realidade exterior a ele
corresponde, ainda que não seja realizável ao nosso caso. Pensamos com mais alegria numa
vida em que possamos imaginar saciá-lo, desde que afastemos um instante do nosso espírito o
pequeno obstáculo acidental e particular que nos impede realizá-lo pessoalmente. Quanto às
belas moças que passavam, desde o dia em que soubera que suas faces podiam ser beijadas,
tornara-me curioso acerca de suas almas. E o universo me parecera crescer de interesse.
O carro da Sra. de Villeparisis andava rápido. Mal me dava tempo de ver a menina que
vinha em nossa direção; entretanto como a beleza das criaturas não é igual à das coisas e
sentimos muito bem que pertence a uma criatura útil ciente e de vontade própria, enquanto sua
individualidade, alma vaga, desconhecida de mim, se pintava numa pequena imagem
prodigiosamente, mas completa, no fundo de seu olhar distraído, logo, misteriosa como os pólens
bem preparados para os pistilos, sentia jorrar em mim o embrião tão minúsculo, do desejo de não
deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tomasse consciência de minha pessoa,
sem impedir que seus olhos se dirigissem a outro homem, sem que me fixasse em suas fantasias
e contagiar seu coração. Todavia, o nosso carro se afastava, a linda menina já estava rindo, como
lhe faltassem a meu respeito sobre quaisquer noções das que constituem uma pessoa, seus
olhos, que mal me haviam avistado, já me esqueciam. Julgara assim tão linda só por tê-la visto de
forma tão fugaz? Talvez, a impossibilidade de ter parado junto de uma mulher, o risco de não
encontrá-la em outra ocasião, davam-lhe subitamente o mesmo encanto que uma certa doença ou
a pobreza que nos impedem de visitá-lo, ou, aos dias tão aborrecidos que nos restam por viver, a
idéia do combate em que certamente morreria; de forma que, se não fosse o hábito, a vida
deveria parecer deliciosa às pessoas que estivessem ameaçadas de morrer a todo instante ou
seja, a toda humanidade. Além disso, se a imaginação é levada pelo desejo daquilo que não pode
possuir, seu impulso não é limitado por uma realidade inteiramente percebida de encontros, onde
o encanto da passante está em geral diretamente relacionado a rapidez da passagem. Por pouco
que a noite tombava e que o carro deparava-se no campo ou na cidade, não há torso feminino,
mutilado como um mármore antigo; pela velocidade que nos arrasta e pelo crepúsculo que o
afoga, que não há coração, a cada volta da estrada, do fundo de cada loja, as flechas da Beleza
que seria lícito perguntar se, neste mundo, ela é outra coisa além de complemento que nossa
imaginação, sobre excitada pela angústia, ajusta à mulher que passa fragmentária e fugitiva. Se
eu pudesse ter descido do carro e falar à moça por quem talvez ficasse decepcionado com algum
defeito de sua pele, que não pudera distinguir. (Então, de súbito, todo esforço para penetrar em
sua vida pareceria impossível. Pois a beleza é uma sequência de hipóteses, e fidelidade barrando
o caminho que já víamos abrir-se para o desconhecido.) Tal palavra que ela tivesse dito, um
sorriso, que me houvesse fornecido; uma cifra inesperadas para ler a expressão de seu rosto e de
seu porte, tornariam banais. É possível, pois jamais encontrei na vida mulheres - como naqueles
dias em que estava com uma pessoa muito grave, não podia me separar não obstante os mil
pretextos que inventava; em anos depois de minha primeira viagem a Balbec, dando um passeio
dê um amigo de meu pai, e vendo uma mulher que caminhava depressa; pensei que não era
razoável, por uma questão de conveniência, perder minha porção de felicidade na única vida que
sem dúvida existe. E, saltando do carro sem pedir desculpas, parti em busca da desconhecida;
perdi-a no cruzamento de duas ruas, voltei a encontrá-la numa terceira e me achei, todo
resfolegante, debaixo de um lampião, diante da velha Sra. Verdurin, a quem evitava por toda a
parte e que, surpresa e feliz, exclamou:
- Oh, como foi amável em correr para me cumprimentar!
Naquele ano em Balbec, quando tinha desses encontros, afirmava à minha avó e à Sra. de
Villeparisis que, devido a uma grande dor de cabeça, era preferível que voltasse a pé para casa.
Elas recusavam deixar-me descer do carro. E eu acrescentava a linda moça (bem mais difícil de
reencontrar do que um monumento, pois era anônima e móvel) à coleção daquelas todas que
tinha prometido a mim mesmo ver de perto. Entretanto, uma ocorreu passar de novo a meus
olhos, em condições tais que julguei poder conhecê-la quando quisesse. Era uma leiteira que
vinha de um sítio trazendo um suplemento de creme para o hotel. Pensei que me reconhecera e,
de fato, olhava-me com uma atenção que talvez fosse causada pelo espanto que lhe dava a
minha atenção. Ora, no dia seguinte, em que ficara repousando a manhã inteira, quando
Françoise veio descerrar as cortinas, por volta do meio-dia, entregou-me uma carta que fora
deixada para mim no hotel. Não conhecia ninguém em Balbec. Não tinha dúvidas de que a carta
fosse da leiteira. Infelizmente, era apenas de Bergotte que, de passagem, tentara me ver mas,
tendo sabido que eu dormia, deixara-me algumas linhas amáveis, para as quais o ascensorista
fizera um envelope que eu havia julgado escrito pela leiteira. Fiquei tremendamente desapontado,
e a ideia de que era bem mais difícil e lisonjeiro receber uma carta de Bergotte, não me consolou
em nada o fato de não ter sido escrita pela leiteira. O caso é que não voltei mais a ver aquela
moça, como acontecia com as outras que só avistava do carro da Sra. de Villeparisis. Vê-las e
perdê-las todas; aumentava o estado de agitação em que vivia e reconhecia uma certa sapiência
nos filósofos que nos recomendam limitar nossos desejos (se é que pretendem estar falando do
desejo que nos inspiram as outras pessoas, pois é o único que pode provocar ansiedade, ao se
aplicar ao desconhecido consciente. Supor que a filosofia queria falar do desejo das riquezas é
absurdo demais). Entretanto, estava disposto a julgar incompleta semelhante sabedoria, pois dizia
comigo que esses encontros me faziam achar ainda mais belo um mundo que assim deixava
crescer em todos os caminhos do campo umas flores tão corriqueiras e raras a um tempo;
tesouros fugitivos do dia, dádivas do passeio, que dão novo gosto à vida e que somente devido à
circunstâncias contingentes, que talvez não se reproduzissem no futuro, me haviam impedido de
desfrutar agora. Mas talvez, esperando que um dia, mais livre, eu pudesse encontrar moças
idênticas em outras estradas, já começasse a falsear o elemento exclusivamente individual do
desejo de viver com uma mulher que nos, pareceu bonita; pelo simples fato de admitir a
possibilidade de fazê-lo nascer artificialmente, de modo implícito a sua natureza ilusória.
continua na página 125...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - f)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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