sábado, 22 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - f)

 em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(f)

continuando...

      O advogado citou Mathurin Régnier e Macette ao primeiro magistrado. Aliás, não é necessário crer que semelhante mal-entendido fosse momentâneo, como os que se formam no segundo ato de um vaudeville para se resolverem no último ato. A Sra. de Luxemburgo, sobrinha do rei da Inglaterra e do imperador da Áustria, e a Sra. de Villeparisis pareceram sempre, quando a primeira vinha buscar a segunda para passearem de carro, duas estouvadas, dessas que é bem difícil evitar nas estâncias balneárias. Três quartas partes dos homens do faubourg Saint-Germain passam aos olhos de uma boa parte da burguesia por crápulas arruinados (o que aliás são às vezes, individualmente) e que, portanto, ninguém recebe. A burguesia é por demais honesta nesse ponto, pois as suas taras não os impediriam de forma alguma de serem recebidos com o maior favor onde ela jamais o será. E, de tal maneira imaginam que a burguesia o sabe, que afetam com uma simplicidade no que lhes diz respeito, um menosprezo pelos amigos particularmente "duros", que aumenta ainda mais o mal-entendido. Se por acaso um homem da alta sociedade se relaciona com a pequena burguesia porque, sendo extremamente rico, ocorre lhe presidir as mais importantes sociedades financeiras, a burguesia, que vê por fim um nobre digno de ser um grande burguês, juraria que ele não convive com o marquês jogador e arruinado, a quem julga tanto mais desprovido de relações quanto mais amável. E qual não é seu espanto quando o duque, presidente do conselho administrativo da colossal empresa, dá ao filho por esposa a filha do marquês; jogador, mas cujo nome é o mais antigo da França, assim como um soberano antes fará seu filho casar-se com a filha de um rei destronado que a de um presidente da república no exercício de seu mandato. Quer dizer que os dois mundos têm, um do outro, uma noção tão quimérica como os habitantes de uma praia situada numa das extremidades da baía de Balbec têm da praia localizada na outra extremidade: de Rivebelle avista-se um pouco Marcouville -l'Orgueilleuse, mas mesmo isto ilude, pois a gente julga ser avistado de Marcouville, de onde ao contrário, os esplendores de Rivebelle são em grande parte invisíveis.
     O médico de Balbec, chamado em virtude de um acesso de febre tivera, achou que eu não deveria ficar o dia inteiro à beira-mar, em pleno soalheira, e prescreveu para meu uso algumas receitas. Minha avó as tomou com um respeito aparente, onde logo reconheci sua firme decisão de não cumprir nenhuma, mas levou em consideração o conselho em matéria de higiene e aceitar o oferecimento da Sra. de Villeparisis para alguns passeios de carro. Eu ia à hora do almoço, do meu quarto ao de minha avó. Este não dava diretamente ao mar, como o meu, mas recebia luz de três lados diversos: de uma extremidade do molhe, de um pátio e do campo, e era mobiliado de modo diferente, com toalhas bordadas de filigranas metálicas e de flores róseas de onde parecia emanam suave e agradável que a gente encontrava ao entrar. E, nessa hora em que vindos das exposições e como que de horas diversas quebravam os ângulos do muro, ao lado de um reflexo da praia, punham na cômoda um repositório como as flores do caminho, suspendiam à parede as asas dobradas, têm as mornas de uma claridade em vias de retomar seu voo, aqueciam como um retângulo de tapete provinciano diante da janela do patiozinho; que engrinaldava como a uma videira, aumentavam o encanto e a complexidade da decoração dos móveis, parecendo esfoliar a seda florida das poltronas, aquele quarto que eu atravessava um momento antes de me vestir para o passeio, dava a impressão de um prisma onde se decoram as cores da luz de fora, ou de uma colmeia onde os sucos do dia que estivessem dissociados, esparsos, inebriantes e visíveis, ou de um jardim a lembrança que se dissolvesse numa palpitação de raios de prata e de pétalas. Porém, antes de tudo, eu abrira minhas cortinas na impaciência de saber onde a marquesa brincava aquela manhã na praia, como uma nereida. Pois nenhum desses mares ficava por ali mais de um dia. Na manhã seguinte haveria outra vez que se parecia com ele. Mas nunca vi duas vezes o mesmo mar. Havia uns de beleza tão rara que, ao percebê-los, o meu prazer em ser constatado ainda pela surpresa. Que privilégio teria uma manhã sobre as outras; a janela, ao entreabrir-se, desvelasse aos meus olhos maravilhados, glaucônome, cuja preguiçosa beleza e suave respirar tinham a transparência de uma vaporosa esmeralda, através da qual eu via fluírem os elementos que a coloriam? Fazia o sol brincar com um sorriso enfraquecido por mais invisível, que outra coisa não era que o espaço vazio reservado à superfície translúcida, que assim se tornava mais abrangente e sedutor que essas deusas que o escultor salienta em meio a um bloco, que nem consegue desbastar. Assim, com sua cor única, o mar nos convidava ao passeio pelos caminhos grosseiros e terrenos, de onde, instalados na carruagem da Sra. De Villeparisis contemplaríamos o dia inteiro, sem nunca o alcançar, o frescor de sua palpitação macia. A Sra. de Villeparisis mandara atrelar cedo, para que tivéssemos tempo de ir a Saint-Mars-le-Vêtu, ou aos rochedos de Quetteholme, ou até qualquer outro ponto de excursão que, para um carro muito vagaroso, seria bem distante e levava o dia inteiro. Na minha alegria pelo passeio demorado que íamos fazer, cantarolava uma canção recentemente ouvida e andava de um lado para o outro à espera de que a Sra. de Villeparisis se aprontasse. Se fosse domingo, seu carro não estaria sozinho diante do hotel; vários fiacres alugados esperavam não só as pessoas que eram convidadas para o castelo de Féterne, pela Sra. de Cambremer, mas as que, em vez de ali ficarem como crianças castigadas, declaravam que o domingo era um dia aborrecido em Balbec e iam se esconder, logo após o almoço, numa praia vizinha ou visitar algum lugar das redondezas. Muitas vezes, quando perguntavam à Sra. Blandais se fora à casa dos Cambremer, ela respondia peremptoriamente:

- Não, estávamos na cascata do Balbec -, como se fosse esta a única razão pela qual não passara o dia todo em Féterne. E o advogado afirmava caridosamente:
- Invejo-os. Com muito gosto teria trocado com vocês; é bem mais divertido. Junto dos carros, diante do pórtico onde eu esperava, estava plantado, como um arbusto de rara espécie, um jovem criado do hotel que chamava a atenção de todos menos pela singular harmonia dos cabelos coloridos que por sua epiderme de planta. No interior, no hall que correspondia ao nártex, ou igreja dos catecúmenos dos templos romanos, e onde tinham direito a entrar as pessoas que não residiam no hotel, os companheiros do groom "externo" não trabalhavam muito mais que ele; porém ao menos executavam alguns movimentos. É provável que de manhã ajudassem na limpeza; mas de tarde estavam ali apenas como esses membros do coro que, mesmo quando não servem para nada, permanecem em cena para aumentar o número de figurantes. O gerente-geral, o mesmo que me dava tanto medo, contava aumentar consideravelmente o seu número no próximo ano, pois ''via em ponto grande". Sua decisão muito afligia o gerente do hotel, que achava que todos aqueles meninos não passavam de uns impertinentes, querendo com isso dizer que estorvavam a passagem e eram inúteis. Mas, pelo menos no espaço entre o almoço e o jantar, entre as saídas e regressos dos hóspedes, preenchiam eles o vazio da ação, como as alunas da Sra. de Maintenon que, vestidas de jovens israelitas, dançam um intermezzo cada vez que Ester ou Joab saem de cena. Mas o groom de fora, tão rico em matizes, de talhe delgado e frágil, perto de quem eu esperava que a marquesa descesse, conservava uma imobilidade cheia de melancolia, pois seus irmãos mais velhos tinham largado o hotel por destinos mais brilhantes e ele se sentia isolado naquela terra estranha. Enfim chegou a Sra. de Villeparisis. Talvez coubesse ao groom mandar o carro se aproximar e ajudar a senhora a subir; mas, por um lado, sabia que quem traz a criadagem consigo deve servir-se deles e, em geral, dá poucas gorjetas num hotel, e que, por outro nobres do velho faubourg Saint-Germain procedem da mesma maneira. A Villeparisis pertencia ao mesmo tempo a essas duas categorias. Que arborescente concluía daí que nada havia a esperar da marquesa; deixando o mordomo e a criada de quarto desta que a instalassem no carro com seus; sonhava tristemente com a sorte invejável dos irmãos sem sair de sua imagem vegetal.

      Partíamos; algum tempo após ter contornado a estação de trem, estávamos numa estrada rústica que em breve se tornou tão familiar como Combray, desde o cotovelo que principiava a se meter por entre cercados até a outra volta, quando o abandonávamos, e que, de cada lado, terras cultivadas. No meio delas, via-se aqui e ali uma macieira, é certo que de suas flores não trazendo mais que um buquê de pistilos, mas que me encantaram porque reconhecia essas folhas inimitáveis, em cuja ampla beleza, como pelo tapete de uma festa nupcial já terminada, passara recentemente de cetim branco para de flores avermelhadas. Quantas vezes em Paris, no mês de maio do ano seguinte, ocorria comprar um ramo de macieira numa florista e passar a noite diante deste onde desabrochava aquela mesma essência cremosa a polvilhar ainda a espuma, os brotos das folhas; e parecia que entre suas brancas corolas como por generosidade comigo, por gosto inventivo e também por contraste, tinha posto como brinde, de cada lado, um botão róseo que lhe contemplava, colocava-as à luz da lâmpada, por tanto tempo que ainda assim estava ali quando a aurora lhes trazia a mesma vermelhidão; estar mostrando ao mesmo tempo sobre Balbec (eu procurava naquela estrada por meio da imaginação, multiplicá-las, e estendê-las) preparado, sobre a tela já pronta, quadro que formava como aquelas do desenho que sabia de cor e que tanto desejaria ver - e um dia haveria de conseguir o momento em que a primavera cobre as telas de suas cores com a inspiração do gênio.
      Antes de subir para o carro, já compusera o quadro marinho, na esperança de vê-lo sob o "sol radiante", que em Balbec eu só visse fragmentado entre tantas coisas vulgares e que meu sonho não admitia, cabines, iates de recreio. Mas, quando o carro da Sra. de Villeparisis chegou de uma colina, eu avistava o mar entre as folhagens; desapareciam na distância os detalhes contemporâneos que, por assim dizer, tinham da natureza e da história; eu podia, olhando as ondas, esforçar-me por que eram as mesmas que Leconte de Lisle nos pinta na Orestíada, quando os guerreiros da heroica Hélade, "feito bandos de pássaros, com cem mil vibram ao mar sonoro". Mas em compensação, já estava agora; mais o mar não se apresentava com vida e, sim, entorpecido; eu já não sentia força em suas cores estendidas, como as de uma pintura, entre as folhas das árvores; a água parecia tão inconsistente como o céu, e apenas um tanto mais escura que ele.
      Vendo que eu gostava das igrejas, a Sra. de Villeparisis prometia-me que haveríamos de visitá-las aos poucos; principalmente a de Carqueville, "toda coberta de hera antiga", disse ela, fazendo com a mão um movimento que parecia envolver com prazer a fachada ausente em uma folhagem delicada e invisível. A Sra. de Villeparisis, com freqüência, tinha desses miúdos gestos descritivos, acompanhados de uma palavra precisa para definir o encanto e a particularidade de um monumento, evitando sempre os termos técnicos, mas sem poder dissimular que sabia muito bem das coisas de que falava. À maneira de desculpa, alegava que um dos castelos de seu pai, no qual se criara, ficava num distrito em que havia igrejas de estilo semelhante às dos arredores de Balbec, e teria sido vergonhoso que ela não tomasse gosto pela arquitetura, ainda mais que aquele castelo era o mais belo exemplar dos da Renascença. Mas, como também era um verdadeiro museu, e como, por outro lado, ali haviam tocado Chopin e Liszt, e Lamartine recitado seus versos, e todos os artistas conhecidos de um século inteiro ali haviam deixado pensamentos, escrito melodias, feito desenhos no álbum da família; a Sra. de Villeparisis, fosse por gracejo, boa educação, modéstia verdadeira, ou falta de espírito filosófico, atribuía a essa origem puramente material o seu conhecimento de todas as artes; acabava considerando pintura e música, literatura e filosofia; como o privilégio de uma jovem educada da maneira mais aristocrática em um monumento ilustre e catalogado. Parecia que, para ela, não havia outros quadros senão os que se herdam. Ficou satisfeita que minha avó gostasse de um colar que estava usando e que lhe chegava à cintura. Estava no retrato de sua bisavó pintado por Ticiano e que nunca saíra da família, de modo que se podia afirmar que era um Ticiano legítimo. Ela não queria ouvir falar em quadros comprados Deus sabe como, por algum Creso; estava de antemão convencida de que eram falsos e não manifestava desejo algum de vê-los. Sabíamos que ela própria pintava aquarelas de flores e minha avó, que ouvira elogiá-las, falou-lhe delas. A Sra. de Villeparisis mudou de assunto, por modéstia, mas sem mostrar maior espanto ou prazer do que uma artista bastante conhecida, a quem os cumprimentos não trazem nada de novo. Contentou-se em dizer que era um passatempo encantador porque, se as flores nascidas do pincel não eram famosas, pelo menos pintá-las obrigava-nos a viver na companhia de flores naturais, cuja beleza, principalmente quando é necessário olhá-las bem de perto para as copiar, não cansa nunca. Mas em Balbec, a Sra. de Villeparisis tirava férias para descansar os olhos. Minha avó e eu ficamos muito espantados ao perceber que a marquesa era mais "liberal" até que a maior parte da burguesia. Ela se admirava que causas como é o do escândalo da expulsão dos jesuítas, dizendo que isto sempre se fizera, mesmo sob a monarquia, mesmo na Espanha. Defendia a República, cujo anticlericalismo censurava apenas em termos medidos:

"Acharia tão ruim que me impedissem de ir à missa como se me forçassem a ir sem ter vontade", chegando mesmo a citar certas frases, como: 

"Oh, a nobreza de hoje não vale quase nada!", ou: ''Pra mim, um homem que não trabalha não tem qualquer valor", talvez como a sentir que assumiam em sua boca um sentido picante, saboroso e memoráveis suas palavras. De tanto ouvir expressar com franqueza opiniões avançadas; mas nunca chegar ao socialismo, que era o pesadelo da Sra. de Villeparisis - exatamente por uma dessas pessoas que, por inspirarem consideração devido a seu talento, levam nossa tímida e escrupulosa imparcialidade a recusar-se a condenar dos conservadores. Minha avó e eu não estávamos longe de acreditar que, a amável companheira, se encontravam a medida e o modelo da verdade entre outras coisas. Acreditávamos nela, sob palavra, quando discorria acerca de seus Ticianos; da galeria do seu castelo, do espírito de conversação de Luís Filipe. Porém, esses eruditos que nos assombram ao falar da pintura egípcia e das inscrições etruscas, e que se expressam de modo tão banal sobre as obras modernas; a de nos fazerem desconfiar senão exageramos o interesse das ciências em que são versados, pois, ao tratarem delas, não demonstram essa mediocridade que era de se esperar e que transparece nos seus ensaios estúpidos sobre Baudelaire. A Villeparisis, interrogada por mim acerca de Chateaubriand, Balzac e Victor Hugo; todos antigamente recebidos por seus pais e conhecidos dela mesma, achou graça na minha admiração, contava deles coisas picantes como acabavam; sobre grão senhores ou políticos, e julgava-os com severidade exatamente porque não tinham essa modéstia, esse apagamento do próprio valor, essa arte só se contenta com um só traço preciso e não insiste, e evita acima de tudo a grandiloquência, essa oportunidade e essas qualidades de moderação e simplicidade, próprias do verdadeiro talento, conforme lhe haviam ensinado e que ela não vacilava em lhes preferir certos homens que, de fato, talvez tivesse por isso, vantagem sobre um Balzac, um Victor Hugo ou um Vigny, numa academia ou num conselho de ministros, como Molé, Fontanes, Vil Bersot, Pasquier, Lebrun, Salvandy ou Daru.

- É como esses romances de Stendhal, por quem você parece ter admiração. Você o deixaria muito espantado se lhe falasse desse modo, que se encontrava com ele em casa do Sr. Mérimée este sim, um homem de talento-, me disse várias vezes que Beyle (era este o seu nome) era de uma vulgaridade, mas muito espirituoso num jantar e não alimentava ilusões de seus livros. Aliás, você bem sabe como respondeu, com um ar de elogios excessivos do Sr. de Balzac. Nisto, pelo menos, era homem de bom tom. 

     Ela possuía autógrafos de todos esses escritores e parecia achar às relações particulares que sua família tivera com tais artistas, seu julgamento a respeito deles era muito mais justo que o de rapazinhos como eu, que não os tinham conhecido.

- Creio que posso falar neles porque frequentavam a casa de meu pai e, como dizia o Sr. Sainte-Beuve, que era muito espirituoso, sobre tais escritores, convém acreditar nos que os viram de perto e puderam julgar mais precisamente o quanto valiam.

     Às vezes, como o carro subisse por uma estrada entre campos cultivados, alguns camponeses hesitantes, parecidos com os de Combray, seguiam nosso carro, tornando mais reais os campos, ajuntando-lhes um sinal de autenticidade, como a preciosa florzinha com que certos mestres antigos assinavam os quadros. O andamento dos nossos cavalos em breve nos separava deles, porém pouco adiante já víamos outro que nos esperava, espetando na erva à nossa frente a sua estrela azul; vários deles se atreviam a chegar à beira da estrada, e formava-se uma nebulosa com minhas lembranças antigas e aquelas florzinhas domésticas.
    Descíamos a encosta; então cruzávamos, subindo a pé, de bicicleta, numa carroça ou num carro, com uma dessas criaturas-flores do dia claro, mas que não são como as flores dos campos, pois cada uma encerra algo que não existe nas outras, o que impede que possamos satisfazer com suas iguais o desejo que nos inspira-, uma moça de granja que guiava sua vaca, ou meio deitada numa charrete, filha de lojista a passeio, uma senhorita elegante sentada na banqueta de um landô, diante dos pais.
     Certamente Bloch me abrira uma nova era e mudara-me o valor da vida, no dia em que me ensinara que meus sonhos nos passeios solitários para os lados de Méséglise, quando desejava que passasse uma moça do campo para tomá-la nos braços, não eram uma quimera que não correspondesse a coisa alguma fora de mim, mas que toda moça que encontrasse, camponesa ou citadina, estaria em condições de satisfazer tais desejos. Conquanto agora, por estar doente e nunca sair sozinho, não pudesse fazer amor com elas, sentia-me no entanto alegre como uma criança nascida numa prisão ou num hospital e que, tendo acreditado durante muito tempo que o organismo humano só pode digerir pão seco e remédios, soube de repente que os pêssegos, abricós e uvas não são um simples ornato dos campos, mas alimentos deliciosos e assimiláveis. Mesmo que o carcereiro ou o enfermeiro não o deixe apanhar esses belos frutos, o mundo todavia lhe parece melhor e a existência mais clemente. Pois um desejo se embeleza à nossos olhos, e apoiamo-nos a ele com maior confiança quando sabemos que a realidade exterior a ele corresponde, ainda que não seja realizável ao nosso caso. Pensamos com mais alegria numa vida em que possamos imaginar saciá-lo, desde que afastemos um instante do nosso espírito o pequeno obstáculo acidental e particular que nos impede realizá-lo pessoalmente. Quanto às belas moças que passavam, desde o dia em que soubera que suas faces podiam ser beijadas, tornara-me curioso acerca de suas almas. E o universo me parecera crescer de interesse.
      O carro da Sra. de Villeparisis andava rápido. Mal me dava tempo de ver a menina que vinha em nossa direção; entretanto como a beleza das criaturas não é igual à das coisas e sentimos muito bem que pertence a uma criatura útil ciente e de vontade própria, enquanto sua individualidade, alma vaga, desconhecida de mim, se pintava numa pequena imagem prodigiosamente, mas completa, no fundo de seu olhar distraído, logo, misteriosa como os pólens bem preparados para os pistilos, sentia jorrar em mim o embrião tão minúsculo, do desejo de não deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tomasse consciência de minha pessoa, sem impedir que seus olhos se dirigissem a outro homem, sem que me fixasse em suas fantasias e contagiar seu coração. Todavia, o nosso carro se afastava, a linda menina já estava rindo, como lhe faltassem a meu respeito sobre quaisquer noções das que constituem uma pessoa, seus olhos, que mal me haviam avistado, já me esqueciam. Julgara assim tão linda só por tê-la visto de forma tão fugaz? Talvez, a impossibilidade de ter parado junto de uma mulher, o risco de não encontrá-la em outra ocasião, davam-lhe subitamente o mesmo encanto que uma certa doença ou a pobreza que nos impedem de visitá-lo, ou, aos dias tão aborrecidos que nos restam por viver, a idéia do combate em que certamente morreria; de forma que, se não fosse o hábito, a vida deveria parecer deliciosa às pessoas que estivessem ameaçadas de morrer a todo instante ou seja, a toda humanidade. Além disso, se a imaginação é levada pelo desejo daquilo que não pode possuir, seu impulso não é limitado por uma realidade inteiramente percebida de encontros, onde o encanto da passante está em geral diretamente relacionado a rapidez da passagem. Por pouco que a noite tombava e que o carro deparava-se no campo ou na cidade, não há torso feminino, mutilado como um mármore antigo; pela velocidade que nos arrasta e pelo crepúsculo que o afoga, que não há coração, a cada volta da estrada, do fundo de cada loja, as flechas da Beleza que seria lícito perguntar se, neste mundo, ela é outra coisa além de complemento que nossa imaginação, sobre excitada pela angústia, ajusta à mulher que passa fragmentária e fugitiva. Se eu pudesse ter descido do carro e falar à moça por quem talvez ficasse decepcionado com algum defeito de sua pele, que não pudera distinguir. (Então, de súbito, todo esforço para penetrar em sua vida pareceria impossível. Pois a beleza é uma sequência de hipóteses, e fidelidade barrando o caminho que já víamos abrir-se para o desconhecido.) Tal palavra que ela tivesse dito, um sorriso, que me houvesse fornecido; uma cifra inesperadas para ler a expressão de seu rosto e de seu porte, tornariam banais. É possível, pois jamais encontrei na vida mulheres - como naqueles dias em que estava com uma pessoa muito grave, não podia me separar não obstante os mil pretextos que inventava; em anos depois de minha primeira viagem a Balbec, dando um passeio dê um amigo de meu pai, e vendo uma mulher que caminhava depressa; pensei que não era razoável, por uma questão de conveniência, perder minha porção de felicidade na única vida que sem dúvida existe. E, saltando do carro sem pedir desculpas, parti em busca da desconhecida; perdi-a no cruzamento de duas ruas, voltei a encontrá-la numa terceira e me achei, todo resfolegante, debaixo de um lampião, diante da velha Sra. Verdurin, a quem evitava por toda a parte e que, surpresa e feliz, exclamou:

- Oh, como foi amável em correr para me cumprimentar!

     Naquele ano em Balbec, quando tinha desses encontros, afirmava à minha avó e à Sra. de Villeparisis que, devido a uma grande dor de cabeça, era preferível que voltasse a pé para casa. Elas recusavam deixar-me descer do carro. E eu acrescentava a linda moça (bem mais difícil de reencontrar do que um monumento, pois era anônima e móvel) à coleção daquelas todas que tinha prometido a mim mesmo ver de perto. Entretanto, uma ocorreu passar de novo a meus olhos, em condições tais que julguei poder conhecê-la quando quisesse. Era uma leiteira que vinha de um sítio trazendo um suplemento de creme para o hotel. Pensei que me reconhecera e, de fato, olhava-me com uma atenção que talvez fosse causada pelo espanto que lhe dava a minha atenção. Ora, no dia seguinte, em que ficara repousando a manhã inteira, quando Françoise veio descerrar as cortinas, por volta do meio-dia, entregou-me uma carta que fora deixada para mim no hotel. Não conhecia ninguém em Balbec. Não tinha dúvidas de que a carta fosse da leiteira. Infelizmente, era apenas de Bergotte que, de passagem, tentara me ver mas, tendo sabido que eu dormia, deixara-me algumas linhas amáveis, para as quais o ascensorista fizera um envelope que eu havia julgado escrito pela leiteira. Fiquei tremendamente desapontado, e a ideia de que era bem mais difícil e lisonjeiro receber uma carta de Bergotte, não me consolou em nada o fato de não ter sido escrita pela leiteira. O caso é que não voltei mais a ver aquela moça, como acontecia com as outras que só avistava do carro da Sra. de Villeparisis. Vê-las e perdê-las todas; aumentava o estado de agitação em que vivia e reconhecia uma certa sapiência nos filósofos que nos recomendam limitar nossos desejos (se é que pretendem estar falando do desejo que nos inspiram as outras pessoas, pois é o único que pode provocar ansiedade, ao se aplicar ao desconhecido consciente. Supor que a filosofia queria falar do desejo das riquezas é absurdo demais). Entretanto, estava disposto a julgar incompleta semelhante sabedoria, pois dizia comigo que esses encontros me faziam achar ainda mais belo um mundo que assim deixava crescer em todos os caminhos do campo umas flores tão corriqueiras e raras a um tempo; tesouros fugitivos do dia, dádivas do passeio, que dão novo gosto à vida e que somente devido à circunstâncias contingentes, que talvez não se reproduzissem no futuro, me haviam impedido de desfrutar agora. Mas talvez, esperando que um dia, mais livre, eu pudesse encontrar moças idênticas em outras estradas, já começasse a falsear o elemento exclusivamente individual do desejo de viver com uma mulher que nos, pareceu bonita; pelo simples fato de admitir a possibilidade de fazê-lo nascer artificialmente, de modo implícito a sua natureza ilusória.

continua na página 125...

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