volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(b)
Quando à tardinha, depois de ter levado minha avó e ficar durante algumas horas na casa de sua amiga, voltei sozinho para o trem, pelo menos não achei penosa a noite que caía; é que não tinha de passá-la na prisão de um quarto cuja própria sonolência me manteria acordado; estava rodeado pela atividade calmante de todos os movimentos do trem, que me faziam companhia, se ofereciam para conversar comigo se não tivesse sono, me acalentavam com seus rumores que eu harmonizava como o som dos sinos de Combray, ora a um ritmo, ora (ouvindo, conforme a minha fantasia, primeiro quatro duplas concheias; logo uma dupla concheia furiosamente precipitada contra uma semimínima); suavizavam a força centrífuga da minha insônia, sobre ela exercendo pressões com as quais me mantinham em equilíbrio e a minha imobilidade. Depois, do meu sono se sentiram sustentados com a mesma impressão de que me teria proporcionado o repouso, devido à vigilância de forças poderosas no seio da Natureza e da vida, se por um momento eu pudesse me encarnar num peixe que dorme no mar, ou pudesse passear em seu entorpecimento pelas correntes vagas, ou nalguma águia unicamente apoiada na tempestade.
As auroras são um acompanhamento das longas viagens de trem, os ovos cozidos, os
jornais ilustrados, os jogos de cartas e os rios onde se esforçam sem avançar. Num momento em
que eu enumerava os pensamentos, que me haviam enchido o espírito nos minutos precedentes,
para verificar se inspirava ou não (e quando a própria incerteza que me inspirava a pergunta me
foi uma resposta afirmativa), no quadrado da janela, acima de um bosquezinho nuvens recortadas
cuja suave penugem era de um róseo parado, morto, que - mais haveria de mudar, como aquele
que tinge as penas da asa que o assimilam o pastel sobre o qual o depositou a fantasia do pintor.
Mas eu sentia ao contrário, essa cor não era inércia nem capricho, e sim necessidade e vida. Em
breve amontoaram, por detrás dela, reservas de luz. Ela se avivou, o céu tornou-se um encarnado
que eu, colando os olhos no vidro, procurava perceber melhor, sentia-o relacionado com a
profunda existência da Natureza; mas a linha férrea mudou de direção, o trem fez uma volta, o
cenário matinal foi substituído no vidro da janela por uma aldeia noturna de telhados azuis de luar,
com um, manchado pelo nácar opalino da noite, sob um céu ainda semeado de todas as suas
estrelas, e eu me desolava por haver perdido a faixa de céu róseo que percebi de novo, porém
rubra dessa vez, na janela do outro lado, que acabava a um segundo cotovelo da linha férrea; de
modo que eu passava o tempo de uma janela a outra, para aproximar, enquadrar os fragmentos
intermitentes de minha bela manhã escarlate e inconstante dela ter uma visão total, quadro
contínuo. A paisagem se tornou acidentada, abrupta; o trem parou numa fresta entre duas
montanhas. Ao fundo da garganta, à beira da corrente, só se via casa de guarda mergulhada na
água que corria por baixo das janelas. E, se é possível que determinada terra produza uma
criatura em que se possa desfrutar o particular encanto, mais ainda que a camponesa que eu
tanto desejara que aparecesse quando vagueava sozinho para os lados de Méséglise, nos
bosques Roussainville, essa devia ser aquela moça alta que vi sair da casa e dirigir-se à estação,
pelo caminho estreito que o sol nascente iluminava, oblíquo, levando um jarro de leite. No vale,
que as alturas das vizinhas escondiam ao resto do mundo, a moça não devia ver outras pessoas
senão as que vinham nos trens, que paravam por um instante. Andou ao longo dos vagões,
oferecendo café com leite a alguns viajantes acordados. Colorido pelos reflexos da manhã, seu
rosto era mais róseo que o céu. Diante dela, senti esse desejo de viver que renasce em nós cada
vez que tomamos consciência, de novo, da beleza e da felicidade. Sempre esquecemos que elas
são individuais e, substituindo-as em nosso espírito por um tipo convencional formado de uma
espécie de média dos diversos rostos que nos agradaram, entre os prazeres que conhecemos,
temos apenas imagens abstratas, vaporosas e insossas, pois lhes falta precisamente esse caráter
de novidade, diverso do que já conhecemos, esse caráter que é próprio da beleza e da felicidade.
Lançamos sobre a vida um julgamento pessimista que consideramos justo, pois acreditamos ter
levado em conta a beleza e a felicidade, quando as omitimos, substituindo-as por sínteses onde
não há sequer um átomo delas. É assim que boceja antecipadamente um literato a quem falam de
um novo "belo livro", pois imagina uma espécie de composto de todos os belos livros que já leu,
ao passo que um belo livro é algo particular, imprevisível, e não se compõe da soma de todas as
obras-primas precedentes e, sim, de alguma coisa que não se obtém com a perfeita assimilação
de tal soma, porque está justamente fora dela. Assim que toma conhecimento dessa nova obra, o
literato, até então enfastiado, sente interesse pela realidade que ela descreve. Desse modo,
estranha aos modelos de beleza, que meu pensamento delineava, quando eu estava a sós, a bela
moça logo me deu o gosto de uma certa felicidade (única forma, sempre particular, sob a qual
podemos conhecer o gosto da felicidade), de uma felicidade que se realizaria caso vivesse junto
dela. Porém ainda aqui, em grande parte agia a cessação momentânea do Hábito. Eu beneficiava
a vendedora de leite com o que era o meu ser completo, à sua frente, capaz de gozar dos mais
vivos prazeres. Em geral, é com o nosso ser reduzido ao mínimo que vivemos; a maioria das
nossas faculdades permanecem adormecidas, pois repousam no hábito, que sabe o que tem a
fazer e não precisa delas.
Mas, naquela manhã de viagem, a interrupção da rotina da minha vida, a mudança de hora
e lugar, tornaram indispensável a sua presença. Meu hábito, que era sedentário e não
madrugador, fazia falta, e todas as minhas faculdades tinham acorrido para ocupar seu posto,
rivalizando entre si de zelo erguendo-se todas, como as ondas, a um mesmo nível
desacostumado-, da mais vil à mais nobre, da respiração, do apetite e da circulação sanguínea à
sensibilidade e à imaginação; não sei se, fazendo-me crer que aquela moça não era igual às
outras mulheres, o encanto selvagem daqueles lugares se acrescentava ao seu, mas a verdade é
que ela o devolvia ao ambiente. A vida teria me parecido deliciosa se eu pudesse apenas, horas
seguidas, passá-las em sua companhia, acompanhá-la até a torrente, até a vaca, até o trem, estar
sempre a seu lado sentir-me conhecido dela, tendo meu lugar em seu pensamento. Ela teria me
iniciado nos encantos da vida rústica e das primeiras horas do dia. Fiz-lhe sim, que me servisse
café com leite. Precisava ser notado por ela. Não me viu, acima de seu corpo muito grande, a pele
do rosto era tão dourada e rósea dava a impressão de ser vista através de um vitral iluminado. Ela
voltou não podia desviar os olhos do seu rosto cada vez maior, semelhante a um sol fosse
possível encarar e que se aproximaria até chegar bem junto; deixando-se observar bem de perto,
ofuscando-nos de ouro e de vermelho; em mim o olhar agudo, mas, como os empregados
fechavam as portinholas o trem se pôs em marcha; vi-a deixar a estação e retomar o atalho, o dia
já estava claro agora: eu me afastava da aurora. Que minha exaltação tenha sido provocada por
aquela moça, ou, ao contrário, se foi a principal razão do prazer que senti me achar perto dela,
não sei. Em todo caso, estava tão mesclada a ela que o desejo de revê-la era antes de tudo o
desejo moral de não deixar que esse estado de excitação morresse de todo, e de não me separar
para sempre da criatura que dela tomara parte, mesmo sem o saber. E não era apenas porque tal
fosse agradável. Era sobretudo porque (como a máxima tensão de uma corda a mais rápida
vibração de um nervo produz uma sonoridade ou uma cor que dava uma outra tonalidade ao que
eu via, introduzia-me, como ator, em um único desconhecido e infinitamente mais interessante;
essa bela moça que ainda conseguia avistar, enquanto o trem acelerava a sua marcha, era como
uma parte da vida diferente da que eu conhecia, dela separada por uma orla e onde as sensações
despertadas pelos objetos já não eram as mesmas; de onde sair agora seria o morrer para mim
mesmo. Para ter a doçura de me sentir ao menos ligado à vida, bastaria que morasse bem
próximo à pequena estação para poder vir todos os dias pedir café com leite àquela camponesa.
Mas infelizmente ela estaria ausente da outra vida para a qual eu ia cada vez mais depressa, e
que só me restava aceitar, combinando os planos que me permitiriam um dia retomar esse
momento no trem e de parar naquela mesma estação, projeto que também tinha de fornecer
alimento à disposição interessada, ativa, prática, maquinal, prega centrífuga, que é a do nosso
espírito, pois facilmente ele se desvia do necessário para aprofundar em si mesmo, de um modo
geral e desinteressante uma impressão agradável que tenhamos tido. Como, por outro lado, quer
continuar a pensar nessa impressão, o espírito prefere imaginá-lo no futuro, para habilmente as
circunstâncias que poderão fazê-la renascer, o que não nos conta coisa alguma sobre sua
essência, porém nos evita o cansaço de recriá-la, permitindo-nos esperar recebê-la novamente de
fora.
Certos nomes de cidades, Vézelay ou Chartres, Bourges ou Beau vem para designar, por
abreviatura, sua igreja principal. Essa designação que o tomamos com frequência acaba se se
tratar de lugares que ainda não conhecemos-por esculpir o nome completo, que desde então,
quando incluir-lhe a ideia da cidade; a cidade que nunca vimos-há de lhe impor, como um molde-a
mesma cinzelagem, o mesmo estilo, transformando-a numa espécie de grande catedral.
Entretanto, foi numa estação de trem, acima de um bufete, em letras brancas sobre um cartaz
azul, que li o nome, quase de estilo persa, de Balbec. Atravessei com rapidez a estação e o
bulevar que ali terminava, e perguntei pela praia, para só ver a igreja e o mar; não pareceram
compreender o que dissera. Balbec-le-Vieux, Balbec-en-Terre, onde me encontrava, não era praia
nem porto. Certamente, fora mesmo no mar que os pescadores, de acordo com a lenda
, haviam
encontrado o Cristo milagroso, de que um vitral daquela igreja, que se achava a alguns metros de
mim, contava a descoberta; era mesmo das falésias batidas pelas ondas que fora tirada a pedra
da nave e das torres. Mas esse mar, que por isso mesmo eu pensava viesse morrer ao pé do
vitral, estava a mais de cinco léguas de distância, em Balbec-Plage; ao lado de sua cúpula, aquele
campanário que, por haver lido que ele próprio fora uma rude falésia normanda onde se
ajuntavam os grãos e revoluteavam os pássaros, sempre imaginara como recebendo em sua
base a última espuma das vagas revoltas erguia-se numa praça onde ocorria o cruzamento de
duas linhas de bondes, diante de um café que ostentava, em letras de ouro, a palavra "Bilhar";
destacava-se sobre um fundo de casas a cujos telhados não se misturava nenhum mastro. E a
igreja entrando na minha atenção junto com o café, com o transeunte a quem tivera de perguntar
o caminho, com a estação para onde eu iria voltar-formava um todo com o resto, parecia um
acidente, um produto daquele fim de tarde, na qual a cúpula suave e altiva contra o céu era como
um fruto cuja pele rósea, dourada e tenra fosse amadurecida pela mesma luz que banhava as
chaminés das casas. Mas não quis mais pensar em nada senão no significado eterno das
esculturas quando reconheci os Apóstolos cujas estátuas moldadas vira no museu do Trocadéro e
que, dos dois lados da Virgem, diante da abertura profunda do pórtico, esperavam-me como para
me prestar honras. O rosto benevolente e suave, o nariz achatado, o dorso curvo, pareciam
avançar com um aspecto de boas-vindas, cantando a Alleluia de um belo dia. Mas a gente
verificava que sua expressão era imutável como a de um morto e só se modificava se
andássemos a seu redor. Dizia comigo:
"É aqui, é esta a igreja de Balbec. Esta praça que parece conhecer a sua glória é o único
lugar do mundo que possui a igreja de Balbec. O que vi até agora eram fotos dessa igreja, e
destes Apóstolos, desta Virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora é a própria
igreja, a própria estátua, são elas; elas, as únicas, e isto é muito mais."
E talvez também fosse menos. Como um rapaz, num dia de exame ou de duelo, acha o
fato sobre o qual o interrogaram, a bala que ele disparou, bem pouca coisa quando pensa nas
reservas de ciência e de coragem que possui e das quais gostaria de dar provas, assim também o
meu espírito, que elevara a Virgem do pórtico fora das reproduções que tivera diante dos olhos,
inacessível às vicissitudes que poderiam ameaçar aquelas, intacta se as destruíssem, ideal, de
um universal, espantava-se ao ver a estátua que mil vezes esculpira, reduzida sua própria
aparência de pedra, ocupando em relação ao alcance do meu braço, posto onde tinha por rivais
um cartaz eleitoral e a ponta da minha bengala, à Praça, inseparável da saída da rua principal,
não podendo fugir aos olhares e do escritório de ônibus, recebendo no rosto a metade do raio do
sol poente breve, dentro de algumas horas, da claridade do lampião de que o escritor do Banco
de Descontos recebia a outra metade, alcançada, ao mesmo tempo que a sucursal de um
estabelecimento de crédito, pelo mofo das cozinhas da palavra submetida à tirania do particular a
tal ponto que, se eu quisesse traçar, assinatura naquela pedra, seria ela, a Virgem ilustre que até
então havia adotado uma existência geral e de uma beleza intangível, a Virgem de Balbec, a única
(infelizmente, queria dizer ela só), que, sobre seu corpo manchado da mesma imagem que a das
casas vizinhas, mostraria a todos os admiradores ali chegado contemplá-la, sem poder desfazê-las, as letras do meu nome e as marcas do pedaço de giz; e era ela, enfim, a obra de arte imortal
e desejada por tanto tempo, que eu encontrava transformada, bem como a própria igreja, em uma
pequena igreja de pedra de que eu podia medir a altura e contar as rugas. As horas passaram era
preciso voltar para a estação, onde devia esperar minha avó e Françoise para irmos juntos à praia
de Balbec. Recordava o que havia lido sobre Balbec, e as falas de Swann:
"É delicioso, tão lindo como Siena."
E só acusando de minha descrição as contingências, a má disposição em que me
encontrava, o cansaço, a incerteza de saber olhar as coisas, tentava consolar-me à ideia de que
restavam outras cidades, ainda intactas para mim, e que eu talvez pudesse em breve como no
meio de uma chuva de pérolas, no viçoso gorjeio das gotas W Quimperlé, atravessar o reflexo
esverdeado e róseo que banhava Pont-à-Coulevre no caso de Balbec, logo que ali entrara, fora
como se houvesse entreaberto o nome que era necessário manter hermeticamente fechado e
onde, aproveitavam a entrada que eu lhes havia aberto com imprudência, e expulsando todas as
coisas que ali viviam até então; um bonde, um café, as pessoas que passavam pela sucursal do
Banco de Descontos, irresistivelmente impelidos por uma externa e uma força pneumática, tinham
se engolfado no interior das síla voltando a se fechar sobre eles, deixavam-nos agora enquadrar o
pórtico persa e nunca mais os deixariam de conter.
No trenzinho local, que devia nos levar a Balbec-Plage, encontrei minha avó, mas ela
estava sozinha, pois havia pensado em mandar Françoise antes para que tudo estivesse
preparado quando chegássemos (deu-lhe indicações falsas, e Françoise partira em direção
errada, e àquela hora correndo a toda a velocidade para Nantes e talvez acordasse em Bordéis).
Sentei no compartimento, repleto da fugidia luz do crepúsculo e do calor da tarde (a primeira
revelou-me, no rosto de minha avó, o quanto o segundo a fatigara), ela me perguntou:
- E então, é Balbec? - com um sorriso tão ardentemente iluminado pela esperança do
grande prazer que, na sua opinião, eu deveria ter sentido, que não me atrevi a lhe confessar de
imediato a minha decepção. Além disso, a impressão que meu espírito havia procurado
preocupava-me cada vez menos à medida que ia se aproximando o local a que o meu corpo teria
de se acostumar. No fim do trajeto, que ainda levaria mais de uma hora, tentava imaginar o
gerente do hotel de Balbec, para quem eu ainda não existia neste momento, e gostaria de me
apresentar à ele numa companhia de mais prestígio do que a da minha avó, que certamente lhe
pediria um abatimento. Imaginava-o cheio de arrogância, porém muito vago de contornos.
A todo instante, o trenzinho parava numa das estações que precediam Balbec-Plage e
cujos próprios nomes (Incarville, Marcouville, Doville, Pont-à-Coulevre, Arambouville, Saint-Mars
le-Vieux, Hermonville, Maineville) me pareciam estranhos, ao passo que lidos em um livro
apresentariam alguma relação com os nomes de certas localidades de Combray. Mas ao ouvido
de um músico dois motivos, materialmente compostos de várias notas comuns, podem não ter
semelhança alguma se diferirem pelo colorido da harmonia e da orquestração. Da mesma forma,
esses nomes tristes feitos de sal e areia, de espaços arejados e vazios, nomes de onde se
escapava a terminação ville como o vole no jogo do pigeon-vole, não me lembravam em nada os
nomes de Roussainville ou Martinville, os quais, porque os ouvira pronunciados com frequência
por minha tia-avó, quando estávamos sentados à mesa na "sala", tinham adquirido um certo
encanto sombrio, onde talvez se misturassem essências do gosto de doces, do cheiro do fogo de
lenha e do papel de um livro de Bergotte, da cor de argila da casa em frente, e que, ainda hoje,
quando sobem como uma bolha de gás do fundo da minha memória, conservam sua virtude
específica através das camadas superpostas de meios diferentes que precisam vencer até chegar
à superfície.
Dominando o mar longínquo do alto de suas dunas, ou já se acomodando para a noite ao
pé das colinas de um verde cru e de formas abruptas, como o canapé de um quarto de hotel
aonde a gente acaba de chegar, eram cidadezinhas compostas de algumas residências, que as
quadras de tênis prolongavam, e às vezes de algum cassino, cuja bandeira se agitava ao impulso
do vento fresco, ansioso e vazio, de estaçõezinhas que me mostravam pela primeira vez os seus
hóspedes de costume, mas só em seu aspecto exterior; jogadores de tênis de bonés brancos; o
chefe da estação que vivia ali com suas rosas e tamarindos; uma dama de chapéu de palha, que,
seguindo o traçado diário de uma vida que eu jamais conheceria, chamava o seu cão lebréu que
se atrasava, e voltava para seu chalé onde já estava aceso o lampião -e essas imagens, tão
estranhamente comuns e desdenhosamente familiares ao meu olhar, feriam-me cruelmente a
vista surpreendida e o coração saudoso. Todavia, ainda mais se agravou meu sofrimento quando
descemos no hotel Grande Hotel de Balbec, diante da escadaria monumental que imitava o mar e,
enquanto isso, minha avó, sem se preocupar com o aumento da hostilidade e o desprezo dos
estranhos, em cujo ambiente íamos viver, discutia as condições com o gerente. Sujeito
rechonchudo, com o rosto e a voz cheios de cicatriz de rosto, pelas sucessivas extirpações de
numerosas verrugas, a voz devido aos mais diferentes por causa das origens longínquas e de
uma infância cosmopolita; trajando smoking de mundano, com um olhar de psicólogo que em
geral tomava, à chegada do ônibus, os grão-senhores por miseráveis e os do hotel por grão
senhores! Esquecendo, sem dúvida, que ele mesmo ganhava quinhentos francos por mês,
desprezava profundamente às pessoas das quais recebia quinhentos francos, ou antes, como
dizia, "vinte e cinco luíses", eram uma grande soma, e as considerava como fazendo parte de uma
raça de párias a quem era destinado o Grande Hotel. É verdade que, naquele mesmo Palácio,
havia os que não pagavam muito caro, sem deixar de ser estimados pelo gerente, desde que este
estivesse certo de que, se cortavam os gastos, não fazia por falta desses e, sim, por avareza. De
fato, a avareza não diminuía em nada o prestígio da pessoa, pois trata-se de um vício e, portanto,
pode encontrar-se em todas as classes sociais. A posição social era a única coisa a que o gerente
dava atenção; a posição social, ou antes, os sinais que lhe pareciam implicar que fosse eleitos
como o não tirar o chapéu à entrada do hall, usar knickerbockers, paletó sobretudo e de tirar um
charuto enfaixado em púrpura e ouro de um estojo de marrom (vantagens que, ai de mim, me
faltavam todas!). Pontuava as frases com expressões escolhidas, mas sem qualquer sentido.
Enquanto ouvia minha avó, sem se constranger que ele a escuta com chapéu na cabeça e
assobiando, perguntar-lhe com uma entonação artificial ''quais são os seus preços?'', ''muito altos
para o meu pequeno orçamento'' esperando numa banqueta, refugiava-me no mais íntimo de mim
esforçava-me por emigrar para pensamentos eternos, não deixar nada de nada vivo, na superfície
de meu corpo -, insensibilizado como o são antes que por inibição se fingem de mortos ao serem
feridos – a fim de não sofrer naquele ambiente onde minha falta absoluta de hábito me tornava
ainda sensível diante da vista do hábito local, que naquele momento parecia de dama elegante a
quem o gerente testemunhava seu respeito tornando-se íntimo com o cãozinho que o
acompanhava, e o jovem que de pluma já entrava perguntando "se havia cartas", todas essas
pessoas para as quais os degraus de mármore falso era o mesmo que voltar para o seu honre. E
admirando por tempo o olhar de Minos, Eaco e Radamanto, olhar no qual mergulhei despovoado,
como em um lugar desconhecido onde nada mais além de um pacote foi lançado severamente
por senhores que, pouco versados talvez na arte de receber; ostentavam o título de "chefes de
recepção"; mais distante, por trás de uma vidraça fechada, havia pessoas sentadas num salão de
leitura, para cuja descrição teria de escolher, alternadamente, em Dante, as cores que ele atribui
ao Paraíso e ao Inferno, conforme pensava na ventura dos eleitos que tinham ali o direito de ler
em sossego, ou no terror que teria me causado minha avó se, na sua despreocupação com esse
tipo de impressões, me tivesse mandado entrar naquele recinto.
continua na página 105...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - b)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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