sexta-feira, 14 de março de 2025

Pushkin - A dama de espadas: Cap. 06

A DAMA DE ESPADAS

 Alexander Pushkin

Capítulo 6


      Seguindo as instruções de Lizaveta, Hermann entrou no quarto. Uma pequena lamparina estava acesa. O oficial ficou impressionado com o ambiente luxuoso. Embora já tivessem uma boa idade, os móveis eram suntuosos. Havia grandes sofás e poltronas, divãs de veludo, estantes forradas de livros. As paredes exibiam enormes quadros. Hermann ficou olhando para uma jovem e elegantíssima mulher, retratada em uma das pinturas. Era a Condessa em sua juventude, nos anos que passou em Paris, na época em que havia aprendido o truque das três cartas. Truque que Hermann ansiava por aprender.
      Sem refletir, movido apenas por sua ambição, Hermann examinava o quarto da Condessa com extremo silêncio e cuidado. Seus olhos penetraram na atmosfera escura e dourada do ambiente fracamente iluminado. Quase sem respirar, para não fazer barulho, Hermann vasculhava tudo com os olhos. Seu coração pulava como uma manada correndo e ele tinha medo que o barulho acordasse o criado lá embaixo. Quando reconheceu as duas portas, o engenheiro se acalmou.  Uma dava no escritório da Condessa e a outra ia para a passagem até o quarto de Lizaveta. Mudando o trajeto planejado por Lizaveta, Hermann abriu a porta do escritório, onde entrou e ficou no escuro. Fechou a porta. A Condessa nunca entra aqui, pensou e sentiu-se seguro. Ficou parado no escuro pensando friamente no que fazer até que o relógio do quarto badalou doze vezes. Na primeira badalada pensou que seus ossos iam se desmanchar de medo e susto, mas depois voltou a se acalmar. À uma da manhã, o relógio não o assustou e às duas, o som forte tirou um sorriso do rosto do jovem, que continuava escondido no escuro do escritório da Condessa.
      Logo escutou o ruído da carruagem vindo pela rua fria. Escutou as patas dos cavalos, um relincho, as vozes dos criados. Sentiu que a iluminação da casa aumentava, escutou vozes das empregadas da casa. Sentiu cheiro de café. Ouviu a porta do quarto abrindo, escutou Lizaveta e a Condessa conversando. Depois identificou os passos decididos de Lizaveta, entendeu que a garota tinha aberto a porta que dava passagem ao seu quarto. Deveria estar ansiosa, pensou Hermann, e por um breve momento sentiu-se culpado por não ter ido até o quarto dela como estava combinado. Mas logo esse sentimento, que considerou uma fraqueza, foi substituído pela sua ansiedade e pela expectativa de realizar seu objetivo principal.
     No quarto, a Condessa dispensara as empregadas. Estava exausta do baile. Doía para ela admitir, mas estava ficando muito velha para manter o ritmo das festas na alta sociedade russa. Em frente ao espelho, a velha senhora despiu-se, pôs seu pijama, apagou as luzes principais do cômodo, que as empregadas haviam acendido e, sob a fraca luz de uma lamparina, acomodou-se na confortável poltrona perto da cama. Esticou as pernas e as apoiou sobre uma banqueta. Livrando-se dos sapatos sentiu um alívio nos dedos. Ficou alguns minutos apreciando o silêncio da noite, perdida em suas memórias cheias de cores, rostos, vesti dos e músicas até que seus olhos se fecharam devagar. Sabia que sua falta de sono habitual não a deixaria dormir, mas gostava de repousar com os olhos fechados.
      No escritório, o oficial imaginava Lizaveta entrando em seu pequeno quartinho. Imaginou a cara de decepção dela ao constatar que ele não estava lá. Chegou a sorrir ao pensar em qual seria a reação da moça se soubesse que seu pretendente estava escondido no escritório da Condessa, pronto para entrar em ação e mudar sua vida. Seus pensamentos mudaram de direção quando percebeu que a luz do quarto havia se apagado e que a casa voltava ao silêncio.
     Com cuidado, Hermann abriu a porta do escritório e entrou no quarto. Logo viu a Condessa na poltrona e se aproximou dela. Quando chegou em frente à velha senhora, Hermann tomou um susto: ela abriu os olhos. Os pelos do engenheiro se arrepiaram e ele teve vontade de gritar, mas controlou sua voz e rapidamente tapou a boca da Condessa com sua mão esquerda. Ela arregalou os olhos. Seus braços tremiam. Acordar com um estranho no quarto não é nada tranquilo.

 — Não se assuste. Pelo amor de Deus, não fique com medo! — disse Hermann com uma voz baixa, porém firme.

      A Condessa olhou para ele com pavor nos olhos, mas nada disse. Pensando que a velha senhora não o havia escutado, Hermann repetiu sua frase no ouvido dela. A Condessa assentiu com a cabeça e o oficial retirou sua mão da boca da senhora.

 — Escute, estou aqui porque a senhora pode mudar a minha vida. A senhora pode assegurar a minha felicidade. E o melhor é que isso não vai lhe custar nada!

      A Condessa tinha uma expressão intrigada e assustada no rosto e Hermann continuava:

 — Eu sei que a senhora conhece um truque. Sei que a senhora sabe como usar uma sequência de três cartas invencíveis...

      Hermann parou de falar quando percebeu que a expressão no rosto da Condessa havia mudado. Agora ela sabia do que ele estava falando:

 — Isso foi uma piada, rapaz. Uma brincadeira muitos anos atrás — disse a Condessa com a voz tensa.

 — Não é possível. Não acredito. A senhora ajudou até o velho Tchaplitzky e agora não quer me ajudar!

 — Eu posso lhe assegurar, meu jovem, aquilo foi tudo uma grande brincadeira — disse a Condessa tossindo.

 — Por que você não me diz quais são as três cartas e quando usá-las, hein? Por quê?

      A Condessa se mantinha quieta, temia a reação do rapaz e estava preocupada com a forte emoção que sentia.

 — Por que ou para quem você está guardando esse segredo? Para seus netos não pode ser, pois já são todos ricos e não sabem o valor do dinheiro. Nunca tiveram de lutar para ter as coisas. São diferentes de mim, que sempre trabalhei duro e por isso sei como é difícil conseguir as coisas. Por isso você tem de me contar o segredo das cartas!

      A Condessa continuava quieta, mas seus olhos se arregalaram ainda mais quando Hermann se pôs de joelhos a seus pés, falando:

— Por tudo que há de mais sagrado, Condessa. Por toda alegria que seu coração de mãe, de avó e de mulher já sentiu nessa vida, eu lhe rogo, por favor, revele o segredo das cartas para mim. 

     Mas a Condessa permanecia imóvel, com os olhos vivos e cheios de temor.

 — Por favor, mulher! Diga-me, qual a importância que esse segredo tem para você? Você nem joga mais cartas! Revele esse segredo para mim e eu serei o que você quiser. Mesmo que traga com ele uma maldição, uma série de pecados, não importa. Eu estou pronto até para assumir seus pecados como meus, se você me disser qual é o truque.

     Mas a Condessa, cada vez mais aterrorizada, nada respondia. Hermann continuava implorando, de joelhos:

 — Condessa, a minha felicidade, a felicidade de minha futura esposa, de meus futuros filhos e netos está em suas mãos. Revele o segredo e você terá a minha devoção como se fosse uma santa. Revele o segredo para mim! — disse Hermann no volume máximo permitido pelo silêncio da noite.

      Mas a Condessa não pronunciou nenhuma palavra e Hermann resolveu se levantar:

 — Pois muito bem, sua velha decrépita. Se não fala por bem, vai falar por mal!

     Com essas palavras ele sacou uma pistola do bolso do casaco. Ao ver a arma, a Condessa recebeu a segunda onda de choque nervoso da noite. Virou a cabeça e tentou se encolher na poltrona, como se assim se protegesse de um possível tiro.

— Ora, vamos, acabe com essa criancice e me diga o segredo!

     Mas a Condessa não se movia.

— Vou perguntar pela última vez: quais são as três cartas?

      A velha dama não respondeu, mas Hermann não precisou atirar. Tinha percebido que a Condessa estava morta!

Pushkin - A dama de espadas: Cap. 06

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