O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
2.Mas era um olhar estranho. Parecia olhar não para ela e sim para um objeto a quilômetros de distância, ou para um retrato.
- Por que é que está me olhando
assim, príncipe? - perguntou ela, de repente, interrompendo a palestra e a risada
com o grupo que a rodeava - Estou com medo; chego a sentir que quereria me
tocar o rosto com os dedos, para senti-lo bem. O modo dele olhar não lembra
isso, Evguénii Pávlovitch? - o príncipe pareceu surpreendido de que lhe estivessem
a falar; fez assim um ar de ponderação; decerto não compreendeu
absolutamente nada, e por isso não respondeu.
Notando, porém, que ela e os demais se puseram a rir, entreabriu a boca e riu
também. A risada aumentou. O oficial, que devia estar de ânimo jovial, esse
então não parava de rir. E imediatamente Agláia balbuciou, colericamente, lá
consigo mesma: “Imbecil.”
- Ó Céus! Seguramente ela não deve... Um homem assim!... Pois não estará ela
completamente louca? - pronunciou a mãe, raciocinando.
- É brincadeira dela. O
mesmo que aquela história de “pobre cavaleiro”! Não passa de brincadeira - ciciou, no ouvido materno, Aleksándra, com decisão. - Está fazendo o príncipe de
bobo, outra vez, aliás como sempre. Mas agora está se excedendo. Devemos pôr
um ponto nisso, mamãe. Ela teima, como uma atriz, e nos está espantando por
pura maldade...
A mãe respondeu, baixinho:
- Ainda bem que se atira a um idiota como ele. - a advertência da filha a aliviou
um pouco.
Não obstante, o príncipe ouviu que o chamavam de idiota. Sobressaltou- se; não,
porém, por estar sendo chamado de idiota, qualificativo que imediatamente
esqueceu. E que, entre a multidão, não longe do lugar onde estava sentado (não
saberia apontar para o ponto exato), surpreendeu, em um relance, um rosto, um
rosto lívido, com cabelos negros e crespos, com um sorriso e uma expressão já
bem conhecidos, muito conhecidos. Foi apenas um relance, pois aquele rosto logo
sumiu. Muito provavelmente se tratava de mera imaginação sua. Tudo quanto lhe
ficou foi o vislumbre de um sorriso disforme, de uns olhos, em uma gravata
verde, espalhafatosa.
Mas se o vulto desaparecera por entre o povo, ou se se esgueirara para
dentro do edifício, não poderia garantir. Um minuto depois, recomeçou o príncipe
a olhar vivamente em redor, muito preocupado. Essa primeira aparição devia ser
precursora de uma segunda. E certamente que era. Poderia ele ter esquecido a
possibilidade de um encontro, ao entrar no jardim? Verdade é que o fizera
automaticamente, sem a menor noção do que estava praticando, tal o seu estado
de espírito. Se a sua capacidade de observação fosse maior, teria reparado que já
há um bom quarto de hora Agláia também estava olhando em torno, um tanto
inquieta, como à procura de alguém. E, à medida que a preocupação de Míchkin
se tornava mais evidente, a de Agláia aumentava. Tanto que, mal movia os olhos
para qualquer ponto, ela o imitava. A explicação disso se seguiu quase
imediatamente.
Um grupo de pessoas, umas dez, inesperadamente apareceu do lado da entrada
perto da qual o príncipe e as Epantchín se haviam sentado. Vinham à frente do
grupo três mulheres, duas das quais de uma aparência notoriamente esplêndida;
não era, portanto, de admirar, que estivessem seguidas de tantos admiradores.
Mas havia algo de especial tanto nas mulheres como nos homens que vinham
com elas, algo bem diverso das pessoas que estavam reunidas ali para ouvir
música. E imediatamente chamaram a atenção de todos os presentes, que
olharam, por lhes ter parecido não ser gente até então vista por ali; somente
alguns dos rapazes sorriram, trocando palavras baixas, no ouvido uns dos outros.
De mais a mais era impossível não reparar nessa gente, pois se apresentava de
modo sensacional, falando alto e rindo. Podia-se até pensar que alguns dentre o
grupo estivessem embriagados, muito embora se tratasse de gente muito bem
vestida e distinta, O que não quer dizer que entre eles não houvesse pessoas
extravagantes, quer pelas roupas, quer pelas caras demasiado vermelhas.
Havia até alguns oficiais e não muito Jovens. Estavam eles muito bem trajados
com roupas muito bem cortadas e confortáveis, com anéis, abotoaduras,
esplêndidas cabeleiras pretas, belos bigodes, com uma dignidade toda jactanciosa
em suas faces, gente que decerto era evitada na sociedade como praga. Entre os
nossos lugares suburbanos de reunião há vários, naturalmente, que são tidos, e
fundamentalmente, como de excepcional respeitabilidade, gozando, por isso, de
uma boa reputação. Mas mesmo a pessoa mais precavida pode ser apanhada por
uma telha que tomba do telhado do vizinho. Uma telha
dessas estava para se despenhar sobre o público escolhido que ali se reunira
para escutar a banda.
No caminho que vai do edifício ao coreto havia três degraus. E o grupo estava
parado justamente no alto desses três degraus; hesitavam em descer, mas uma das
mulheres deu um passo à frente; e só duas pessoas do seu acompanhamento a
imitaram. Uma era um homem de meia-idade e de aparência um pouco
modesta. Tinha o ar de um cavalheiro a todos os respeitos, apesar do seu feitio decaído de indivíduo que ninguém conhece e que não conhece ninguém. A outra
era um sujeito de ar duvidoso, de cotovelos coçados. Mais ninguém seguiu a
dama excêntrica. Ao descer os degraus, não olhou para trás, dando a entender
que pouco se importava em ser ou não seguida. Ria e falava alto, como antes.
Estava ricamente vestida, com excelente gosto, mas um tanto esplendidamente
demais. Virou-se para o outro lado do coreto, onde uma carruagem particular
esperava alguém.
Havia três meses que o príncipe não a via. Desde que chegara a Petersburgo
estava tencionando ir vê-la; mas, talvez, um secreto pressentimento o tolhesse.
Não podia, ainda assim, avaliar que impressão lhe causaria o seu encontro, muito
embora, muitas vezes, tivesse tentado imaginar, com pavor. Mas uma coisa era
mais que clara: que tal encontro lhe seria penoso. Diversas vezes, durante os
últimos seis meses, se tinha recordado da primeira impressão que aquele rosto
lhe causara quando o vira apenas em fotografia. Mas. mesmo a impressão
causada pela fotografia era, lembrava-se muito bem, angustiante. Aquele mês na
província, em que a via quase quotidianamente, havia exercido um pavoroso
efeito sobre ele, tamanho que, muitas vezes, tentara afastar de si toda essa
reminiscência. Havia no rosto daquela mulher qualquer coisa que sempre o
torturava. Em conversa com Rogójin, tinha considerado essa sensação como
infinita piedade para com ela, e isso era a verdade. Aquele rosto, mesmo em
retrato, só fizera nascer no seu íntimo um verdadeiro martírio de piedade: o
sentimento de compaixão e até mesmo de sofrimento para com aquela mulher
nunca abandonara o seu coração, nem abandonaria. Oh! Não, esse sentimento
era maior do que nunca! Mas o que falara a Rogójin não o satisfizera; e somente
agora, ante o súbito aparecimento dela, compreendeu o príncipe, através decerto
de sua imediata intuição, o que tinha faltado em suas palavras. E as palavras que
faltavam só expressariam horror - sim, horror! Agora, bem neste momento,
tinha sentido isso, plenamente. Estava certo, estava plenamente convencido; e ele
sabia as razões por que aquela mulher era louca. Se, amando uma mulher mais
do que a tudo no mundo, ou antevendo a
possibilidade de vir a amá-la assim, alguém, inesperadamente, desse com tal
mulher acorrentada, atrás de grades e debaixo do açoite do vigia da prisão. esse
alguém sentiria o que o príncipe sentiu naquele momento.
- Que é que o príncipe
tem? - disse-lhe baixo Agláia, prontamente, olhando-o e ingenuamente lhe
segurando o braço.
Ele virou a cabeça, olhou para ela, mirou bem dentro
daqueles olhos negros que brilhavam nesse instante com uma luz que para ele era
mistério: tentou sorrir mas, imediatamente, como a esquecendo logo, volveu os
olhos para a direita e recomeçou a procurar a espantosa aparição. Nesse
momento, Nastássia Filíppovna passava perto das cadeiras das jovens. Evguénii
Pávlovitch continuava a falar qualquer coisa com Aleksándra, e devia ser coisa
interessante e divertida. Falava apressadamente, com ímpeto. O príncipe
lembrou-se (depois) que Agláia sussurrara estas palavras: “Mas que...”, início de
uma frase vaga e incompleta, logo se tendo contido e ficado calada; mas isso
bastou. Nastássia Filíppovna, que ia passando, sem reparar em ninguém,
subitamente se virou para eles e pareceu observar apenas a presença de Evguénii
Pávlovitch.
- Olá! Então, estás aqui? - exclamou, inopinadamente, parando. - Se mandassem
um mensageiro procurar-te, como haveria o homem de te achar, se estás aqui
onde ninguém poderia supor?!... Pensei que estivesses em casa de teu tio.
Evguénii Pávlovitch, rubro, encarou, furioso, Nastássia Filíppovna, logo, porém,
se virando para o outro lado.
- Como? Então não sabes? Calculem só, ele ainda não sabe! Pois o homem se
matou! Com um tiro! O teu tio se suicidou esta madrugada. Contaram-me isso às
duas da madrugada! E metade da cidade já sabe. Lá se foram trezentos e
cinquenta mil rublos do Estado; é o que dizem. Mas há quem garanta que fossem
quinhentos mil. E eu que sempre contava que ele te deixasse uma fortuna. Jogou
tudo fora! Que velho dissipado! Bem, adeus, bonne chance! Então, deveras, não
vais até lá? Soubeste introduzir os teus papéis mesmo na hora, hein? Que
camarada manhoso! Bobagem. Tu sabias, se sabias! Provavelmente ontem já
sabias!
Posto que em sua insolente atitude persistisse uma proclamação pública de um
conhecimento e de uma intimidade que não existiam, ainda assim devia haver,
para isso, um motivo, sem dúvida nenhuma. Evguénii Pávlovitch pensou logo em
escapar sem dar na vista dessa que o assaltava. Mas as palavras de Nastássia
Filíppovna caíram sobre ele como um raio. Ao ouvir falar na morte
do tio ficou branco como uma folha de papel e se virou para sua informante.
Nisto Lizavéta Prokófievna precipitadamente se ergueu da sua cadeira, fazendo
todos os outros se levantarem e logo se foram embora. Apenas o príncipe
permaneceu por um momento em indecisão, e Evguénii Pávlovitch continuava
em pé, sem poder dar conta de si. Não estavam os Epantchín nem a vinte passos
de distância, quando se seguiu um incidente escandaloso e ultrajante. O oficial,
que era um grande amigo de Evguénii Pávlovitch e que estivera conversando
com Agláia, ficou indignadíssimo.
- Para se tratar com uma mulher desta ordem
só mesmo um chicote! - exclamou ele quase gritando.
(Evidentemente, deveria ter sido antigo confidente de Evguénii Pávlovitch.)
Instantaneamente Nastássia Filíppovna se voltou para ele. Os seus olhos
fulguraram. Correu para o moço que lhe era completamente estranho e que
estava a uns dois passos dela, arrebatou-lhe da mão um fino chicote de montaria,
desses trançados, e desandou a golpear na cara o seu insultador. Tudo isso
aconteceu em um momento!... O oficial, fora de si, avançou para ela. O bando
de acompanhantes de Nastássia Filíppovna já não estava mais junto dela. Aquele
cavalheiro idoso, cheio de decoro, tratou de desaparecer totalmente. E o outro, o
folgazão, ficou de lado, rindo a bom rir. Mais um minuto e a polícia apareceria e
Nastássia Filíppovna seria posta fora dali, à força, caso uma inesperada ajuda
não estivesse à mão. O príncipe, que também estava parado a uns dois passos,
conseguiu segurar o oficial pelos dois braços, por detrás. Desvencilhando os
braços, o oficial lhe deu um violento empurrão no peito. Míchkin foi atirado a três
passos, para trás, indo cair em uma cadeira. E nisto mais dois campeões
avançaram para defender Nastássia Filíppovna. Defrontando o oficial atacante
surgiu o boxeador, aquele autor do artigo já conhecido do leitor, e primitivamente
membro da comitiva de Rogójin, o qual logo se foi apresentando, enfaticamente: - O ex-tenente Keller! Já que o capitão quer brigar, aqui estou. Às suas ordens, como
substituto do sexo fraco.
Tirei o meu curso de boxing inglês. Não empurre, capitão, veja lá! Lastimo-o,
pelo mortal insulto que o capitão teve de receber, mas não posso permitir, de
modo algum, que use os punhos contra uma mulher. E, de mais a mais, em
público. Se, como homem de honra e como cavalheiro, o capitão prefere outro
sistema, já sabe o que eu quero dizer, capitão!
Mas o capitão tinha caído em si e
nem o escutou. Foi quando Rogój in apareceu no meio do povo e
segurando Nastássia Filíppovna pelo braço a carregou dali. Também Rogójin
parecia terrivelmente abalado; estava branco e tremia. E ao retirar Nastássia
Filíppovna, ainda teve tempo para rir bem na cara do oficial, com desprezo,
dizendo-lhe, em seu vulgar triunfo:
“Fiau! Apanhou! Está com as fuças escorrendo sangue! Fiau!”
Como que
voltando a si e já sabendo a quem se dirigir, para tratar do caso, o oficial
(embora cobrindo o rosto com um lenço) se virou para o príncipe que estava se
levantando da cadeira onde tombara. - O Príncipe Míchkin, cujo conhecimento
tive a honra de travar ainda agora mesmo?
- Ela é louca! É uma insana! Dou-lhe minha palavra! - respondeu o príncipe,
com voz abalada, gesticulando com as mãos trêmulas.
- Eu, naturalmente não
me posso jactar de muitos conhecimentos a tal respeito. O que me compete é
saber o nome do senhor. - curvou-se e foi embora.
A polícia compareceu
apressadamente cinco minutos depois que a última pessoa interessada tinha
desaparecido. Mas a cena não durara mais do que dois minutos. Muitos da
assistência se tinham levantado e ido embora; outros apenas mudaram de lugar,
escolhendo outro. Enquanto a alguns a cena distraíra, estavam outros ainda
fazendo perguntas e conversando a respeito. O incidente acabou, de fato, da
maneira de sempre. A banda recomeçou a tocar.
O príncipe seguiu os Epantchín.
Se lhe tivesse vindo o pensamento de olhar para o lado esquerdo, quando estava
sentado na cadeira sobre a qual fora atirado, teria visto, então, a uns vinte passos,
Agláia, que tinha ficado parada a presenciar a cena escandalosa, indiferente aos
apelos da mãe e das irmãs. O Príncipe Chtch.. precipitara-se até ela,
persuadindo-a, finalmente, a ir embora. A mãe recordou, depois, que ela chegara
onde eles estavam tão excitada que mal pudera com certeza tê-las ouvido quando
a chamavam. Mas, dois minutos depois, quando regressavam por dentro do
parque, Agláia explicou, com aquele seu tom descuidado e caprichoso: - Eu só
queria ver como ia acabar a farsa!
continua página 317...
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O Idiota: Terceira Parte (2b) - um olhar estranho
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