Alexander Pushkin
Capítulo 9
Como dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, duas ideias também não podem coexistir no mundo moral. Assim, a sequência de cartas “3, 7 e ás” tiraram a morte da Condessa da cabeça de Hermann. Agora ele só pensava nas cartas. Se, por exemplo, visse uma garota deslumbrante na rua, ele pensaria: “Que linda ela é, parece um três de copas”. Se visse algum sujeito corpulento, pensava que era um ás.
As cartas o perseguiam em quase tudo. Elas assumiam formas diferentes e
pareciam possuir as pessoas. Hermann viu flores que eram a carta três, viu portais góticos de igrejas e prédios antigos que eram iguais à carta número sete e viu
aranhas que se transformavam em vários ases. Em meio às alucinações, só um
raciocínio monopolizava sua mente e sua alma: lucrar e muito com o segredo
obtido de forma tão cruel.
Pensou em ir até Paris e tentar a fortuna em uma das famosas casas de jogo
da capital francesa. Mas tinha de jogar em até 24 horas, pelo que entendera da
aparição da Condessa. Por isso optou por conversar com Narumov, que estava
acostumado a organizar partidas, como a descrita no começo deste livro.
Narumov lhe contou que algum tempo atrás havia existido em Moscou uma
sociedade de jogadores ricos, presidida pelo famoso Tchékalinsky, que passara
toda a sua vida jogando cartas e havia acumulado milhões de rublos.
Tchékalinsky era experiente e tinha fama de muito honesto, o que lhe ajudou a
abrir o clube de jogadores ricos em Moscou. Seu jeito agradável e suas boas
maneiras o fizeram famoso. Quando já havia ganho muito dinheiro, resolveu mudar para São Petersburgo, onde ainda recebia jovens jogadores da capital para
partidas envolvendo boas somas.
— São jogos de cartas muito disputados — disse Narumov. — Os jogado
res aqui preferem o carteado aos bailes e as emoções do tapete verde ao flerte
com as garotas da sociedade. Você tem certeza de que quer jogar?
Hermann estava decidido. A dificuldade lhe dava ânimo. Esperava limpar
seus adversários e sair da mesa de jogo rico. Entraram em um ambiente luxuoso,
uma espécie de cassino, repleto de empregados e apostadores bem vestidos.
Havia generais, membros do governo e da nobreza jogando.
Narumov apresentou Hermann para um homem de cerca de sessenta anos
de idade, elegantíssimo, com os cabelos cor de prata caprichosamente penteados para trás. O homem parecia ter um sorriso perpétuo no rosto. Hermann apertou a mão de Tchékalinsky e seu destino começou a mudar mais uma vez.
Era uma partida difícil, Hermann enfrentava Tchékalinsky, um banqueiro e um
coronel do exército. Vinha se saindo bem, super atento e motivado. Após anos
apenas olhando, era a primeira vez que jogava e isso lhe dava um grande prazer. No
começo da rodada final, Tchékalinsky apostou a quantia de cem rublos. O banqueiro e o coronel desistiram, mas Hermann comprou mais uma carta e disse:
— Eu acompanho sua aposta de cem rublos e aposto mais.
— E de quanto a mais seria sua aposta, senhor? — quis saber Tchékalinsky.
— Quarenta e sete mil rublos, senhor — disse Hermann com confiança.
Hermann está completamente maluco!, pensou Narumov.
— Deixe-me informá-lo, cavalheiro — começou Tchékalinsky com seu eterno sorriso —, que esta é uma aposta muito alta. Ninguém aqui nunca apostou
mais que trezentos rublos de uma vez só.
— Certo, mas o senhor vai aceitar minha aposta ou não?
Com classe, Tchékalinsky assentiu com a cabeça e acrescentou:
— Só gostaria de lembrá-lo de que as apostas nesta casa de jogo são pagas
em dinheiro vivo. Confio em sua palavra, mas, para proteger os demais
frequentadores da casa, peço que me mostre uma garantia de que pode pagar o
valor apostado.
Hermann retirou de seu bolso um documento bancário que comprovava
que ele dispunha do valor. O jogo prosseguiu e Hermann venceu lançando um
três. Tchékalinsky franziu a testa, mas manteve o sorriso no rosto e perguntou:
— Você quer receber agora?
— Sim, por favor.
De uma maleta, Tchékalinsky retirou cheques administrativos que Hermann
poderia trocar por dinheiro no banco. Narumov estava extasiado. Hermann tomou uma limonada no bar e foi para casa, tinha acabado de dobrar seu patrimônio.
No outro dia, Hermann voltou à casa de jogos. Tchékalinsky o recebeu com
alegria e em pouco tempo estavam jogando com mais um oponente. Com um
sete, Hermann venceu seus adversários e embolsou mais de cem mil rublos. Depois de embolsar o dinheiro de forma muito fria, foi para casa.
Na noite seguinte, quando apareceu na casa de jogos, todos os apostadores
pararam seus jogos e suas conversas. Hermann era o centro das atenções e todos
queriam acompanhar sua partida contra Tchékalinsky. Desta vez, apenas os dois
dividiam a mesa de jogo. Apesar de pálido, o famoso jogador ainda sorria. As
cartas foram embaralhadas e distribuídas. No auge da partida, os dois adversários
mostraram suas cartas. Sobre a mesa um ás e uma dama.— Meu ás de espadas venceu! — gritou Hermann mostrando sua carta.
— Não, Hermann — disse Tchékalinsky de modo muito educado —, sua
dama de espadas perdeu.
Hermann olhou e, realmente, a carta que ele havia jogado era uma dama de
espadas, não um ás. Ele não acreditava no que via. Tinha perdido tudo. Estava tão
certo de que possuía um ás, mas na verdade tinha uma dama. Olhando para a
dama de espadas, por um momento, lhe pareceu que ela lhe sorria ironicamente,
chegando até mesmo a piscar para ele, em uma lembrança marcante...
— A velha Condessa! — exclamou com a voz engolida de terror.
Tchékalinsky recolheu seu dinheiro e Hermann ficou sentado e curvado na
cadeira por um bom tempo, paralisado. Quando saiu dali, todos na casa de jogos
tinham pena dele.
— Foi uma partida brilhante — disse um general para Tchékalinsky e, aos
poucos, a rotina das mesas voltou ao normal.
***
Atualmente Hermann está fora de si, confinado ao quarto 17 do Manicômio
Oboukhoff. Não responde a nenhuma pergunta que lhe é feita, mas constantemente repete com rapidez incomum as palavras “três, sete, ás! Três, sete, dama!”
Lizaveta Ivanovna casou-se com um jovem amável, filho de um ex-administrador da Condessa. Ele trabalha para o governo em um cargo bem remunerado,
dando a Lizaveta a possibilidade de ajudar seus parentes mais pobres.
Paul Tomsky foi promovido a capitão e se casou com a princesa Pauline.
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Pushkin - A dama de espadas: Cap. 08
Pushkin - A dama de espadas: Cap. 09
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Alexander Sergeyevich Pushkin foi um dos maiores poetas da Rússia e o
primeiro a conseguir fama internacional, mesmo escrevendo em sua língua materna. Antes dele, muitos autores russos escreviam em francês e alemão para conquistar leitores fora do país. Considerado um escritor versátil, Pushkin é tido por
muitos críticos como o fundador da literatura russa moderna.
Pushkin nasceu em 1799, em Moscou, em uma família de nobres, mas seus
poemas incomodavam a censura imperial dos czares e Pushkin foi preso várias
vezes em função do que escrevia. Para burlar o censor do czar Nicolau I, Pushkin
fingia que alguns de seus textos eram traduções de antigos textos em Latim.
Embora sua prosa não seja muito extensa se comparada à poesia, os contos
de Pushkin têm lugar de destaque na literatura russa. Sua peça teatral Boris Godunov
foi transformada em ópera pelo compositor Modest Mussorgsky (1835-1881) e é
até hoje uma das óperas mais admiradas da Rússia.
O texto Dama de Espadas foi escrito entre 1833 e 1834 e retrata a vida da
sociedade russa no século XIX, uma época pré-industrial, em que a diversão burguesa incluía os jogos de cartas e os bailes. Os irmãos Peter e Modest Tchaikovsky
fizeram uma adaptação da história e a transformaram em ópera no ano de 1890.
Pushkin morreu em 1837, dois dias após duelar contra Georges d’Anthès,
acusado de ser amante de sua mulher.
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