terça-feira, 11 de março de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (4a) - Ao chegar próximo da vila

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
4.

     Ao chegar próximo da vila, Míchkin notou com surpresa que a varanda estava profusamente iluminada e que um grupo numeroso e turbulento a enchia. Gente alegre que falava alto, dando a impressão, com suas vozes e risadas, de uma formidável pândega. Ao subir para a varanda pôde ver que estavam bebendo. Decerto era champanha, várias garrafas já tendo sido esvaziadas, pois o grupo se mostrava alegre demais. Reconheceu logo as fisionomias. Por que estariam reunidos ali? Quem os teria convidado? Ele, Míchkin, não, pois só ainda agora, por acaso, é que se lembrara do seu aniversário. Acompanhando-o escada acima, Rogójin murmurou:

- Se estes patuscos correram para cá, algum aviso tiveram de que o senhor ia abrir champanha. Basta um assobio: aparecem de todos os cantos. - disse isso irritado; é que possuía bastante experiência própria para fazer tal observação.

     Todos logo rodearam o príncipe, com exclamações e cumprimentos, aumentando assim a algazarra. E os que só nesse momento ficaram sabendo que era o aniversário dele, se apressaram em lhe dar parabéns. O príncipe ficou admirado com a presença de certas pessoas, como, por exemplo, a de Burdóvskii. Mas o que mais o surpreendeu foi deparar com Evguénii Pávlovitch no meio daquele bando: isso era inacreditável e pasmoso.
     Muito vermelho e alvoroçado, Liébediev tratou de explicar o caso, armando uma lengalenga de bêbado. Ainda assim, o príncipe percebeu de todo aquele arrazoado que o ajuntamento se fizera ao acaso e pouco a pouco. Que, à noitinha, primeiro chegou Ippolít que, se sentindo bastante melhor, expressou o desejo de ficar ali na varanda aguardando a volta do príncipe. De fato, havia horas e horas que ali estava estirado no sofá. Depois viera juntar-se a ele o próprio Liébediev, com todos os de casa, isto é, a filharada e o General Ivolguin. Burdóvskii ali se achava porque fora quem trouxera Ippolít. Mais tarde, após o escândalo no parque, Gánia e Ptítsín, passando, acabaram entrando também. E finalmente Keller, ao chegar, contou que era o aniversário de Liév Nikoláievitch, atiçando a idéia de abrirem champanha. Evguénii Pávlovitch aparecera à procura de Míchkin, haveria no máximo meia hora. 
      A lembrança de abrir champanha fora incentivada principalmente por Kólia, a pretexto de ser festejada essa data. Que ele, Liébediev, à vista disso, anuíra.

- Então mandei abrir champanha! Mas da minha! À minha custa, para comemorar o seu aniversário e me congratular com o senhor. E haverá ceia e refrescos! Minha filha está preparando. Pois é. E conversávamos todos. Adivinhe, príncipe, em que é que estávamos falando? Lembra-se do “Ser ou não ser...” do Hamlet? Pois era o assunto. Aliás, tema bem hodierno. Perguntas e respostas... E o Sr. Tieriéntiev interessou-se mais do que todos. Não quis ir deitar se. Apenas deixei que ele bebesse um pequeno gole. Um gole só não faz mal... Venha cá para o meio, príncipe. Dirija, assuma o comando! Estávamos todos à sua espera... Ansiávamos por sua inteligência fulgurante... 

     No meio daquela barafunda, o príncipe deu com os olhos meigos e suaves de Vera Liébediev que procurava se aproximar através daquela gente toda. Sem se importar com os demais, o príncipe foi estender-lhe a mão. Ela enrubesceu de contentamento e lhe desejou uma vida muito feliz “de hoje por diante”, feito o que, voltou depressa para a cozinha para preparar a ceia e os refrescos. E que, minutos antes da chegada de Liév Nikoláievitch, a filha mais velha de Liébediev, atraída pela interminável discussão dos convivas alegres, viera escutá-los, ali tendo ficado, muito embora aqueles assuntos da mais abstrata natureza lhe parecessem sobremodo misteriosos. A irmã menorzinha acabara dormindo em cima da arca, na sala contígua, e lá estava de boca aberta, resfolegando. Quanto ao filho de Liébediev, o garoto que já frequentava a escola, esse permanecia entre Kólia e Ippolít, sua cara muito viva demonstrando que não iria embora tão cedo; escutava, atento esperto, decidido a ficar horas a fio.
     Quando Míchkin foi apertar a mão de Ippolít, imediatamente depois da de Vera, este lhe disse:

- Fiquei aqui de propósito, à sua espera. Folgo em ver que chegou com ótima disposição.
- Como sabe que estou de ótima disposição?
- Basta olhá-lo. Quando acabar de receber os cumprimentos dos outros, venha sentar-se aqui. - e repetiu, como querendo que o fato ficasse bem explícito: - Fiquei aqui de propósito à sua espera. 

     Ainda assim o príncipe o censurou delicadamente por não se ter ido deitar, fazendo ver quanto era tarde da noite. E ele, em resposta a essa advertência, confessou que não podia compreender como era que, tendo três dias antes estado quase à morte, se sentia agora melhor do que nunca em toda a sua vida.
     Burdóvskii levantou-se só para vir explicar que fora ele quem trouxera Ippolít; e que estava radiante; que, de fato, escrevera muita asneira naquela carta, mas que estava, agora, simplesmente radiante... E sem acabar de dizer porque estava radiante, calorosamente apertou a mão do príncipe e voltou a sentar-se...
     O último que Míchkin cumprimentou foi Evguénii Pávlovitch que imediatamente o segurou pelo braço.

- Tenho duas palavras a dar-lhe - ciciou - é sobre um caso importante. Venha comigo aqui para um lado, um momento.
- Duas palavras - ciciou uma outra voz na outra orelha do príncipe; e uma outra pessoa o segurou pelo outro braço. Assustado, deu Míchkin com uma cara descabelada que ria e que pestanejava. Instantaneamente reconheceu Ferdichtchenko surgido só Deus sabia de onde. E ele próprio interrogou Míchkin. - Porventura se recordará de Ferdichtchénko?
- De onde está vindo você?
- Ele está arrependido - veio explicar Keller, a correr. - Estava escondido. Não queria vir conosco. Estava escondido lá na esquina. Não queria, príncipe, estava arrependido...
- Mas de quê? De quê?
- Mas eu dei com ele. Dei com ele e o trouxe. É entre todos os meus amigos o homem mais raro que conheço. Mas está arrependido...
- Obrigado por tudo, cavalheiros; sentem-se com os demais. Volto já - disse o príncipe, conseguindo finalmente se retirar com Evguénii Pávlovitch. 
- Estou gostando disto aqui. -  observou este último. - Eu os estive apreciando-por uma meia hora, enquanto o esperava. Escute uma coisa, Liév Nikoláievitch, já arrumei tudo com Kurmíchov e vim justamente para tranquilizar o seu espírito. Não precisa ficar preocupado. A meu ver ele está tomando a coisa por um lado muito sensível.
- Mas, qual Kurmíchov? 
- Ora, o indivíduo que o príncipe segurou pelos braços esta tarde. Ficou tão furioso que queria vir pedir-lhe amanhã mesmo uma satisfação.
- Que é que me está dizendo? Que tolice desse moço!  
- Lógico que é uma asneira e só podia acabar em outra, pior. Essa gente...
- Mas não veio por causa de mais alguma coisa, Evguénii Pávlovitch? - o outro respondeu prontamente, a rir: 
- Sim, realmente vim por outro motivo mais. Devo partir esta madrugada para Petersburgo, meu caro príncipe, por causa desse caso infeliz.., o caso de meu tio. E, quer saber, tudo era verdade, e todo o mundo sabia, exceto eu. Sinto-me tão acabrunhado que nem tive coragem de permanecer com a família Epantchín. E nem poderei me despedir deles amanhã, pois partirei muito cedo para Petersburgo. Está compreendendo? Tenho de ausentar-me por uns três dias, no mínimo. Resumindo: as coisas, para mim, vão mal. E já que o caso é da mais alta importância, cuidei conveniente lhe falar francamente umas tantas coisas inadiáveis, não devendo deixá-las para o meu regresso. Talvez seja melhor eu ficar sentado à espera de que esta reunião acabe; mesmo porque não tenho onde ficar. Estou em tal estado que não me apetece ir dormir. E desde já o informo que vim solicitar os préstimos da sua amizade, meu caro príncipe. Considero-o uma pessoa rara, incapaz, absolutamente, de falsidades ou mentiras. Ora, se há pessoa que, dadas umas quantas circunstâncias, necessita de um amigo e de um conselheiro da sua categoria, sou eu. Mesmo porque atravesso um péssimo momento... - tornou a sorrir.

     Depois de pensar um pouco, o príncipe propôs:

- A dificuldade está no seguinte: o senhor acha preferível esperar que esta gente se retire. Mas só Deus sabe a que horas se retirarão. Não seria melhor, por conseguinte, darmos agora mesmo uma volta pelo parque? Ao voltar eu inventaria uma desculpa qualquer por me haver ausentado.
- Não, não! Tenho minhas razões para não querer que se suspeite que estivemos ambos a conversar sobre qualquer assunto a parte. Aqui há gente curiosa quanto às nossas relações. Não percebeu isso ainda, príncipe? Convém muito mais que pensem que vim cumprimentá-lo como camarada do que percebam que tivemos um entendimento particular. Concorda com a minha proposta? Que éque eles podem demorar aqui? Quanto? Umas duas horas?... Espero. Depois então eu muito me honraria com um colóquio de uns vinte minutos ou meia hora...
- De qualquer maneira, seja muito bem-vindo. Fico muito satisfeito de o ver aqui, mesmo que seja principalmente com a finalidade de um colóquio. Agradeço também as bondosas palavras sobre as nossas cordiais relações. Aproveito para lhe pedir desculpas por não lhe ter prestado hoje a atenção que me merece. E lhe explico: é que, de certo modo, ultimamente ando meio aéreo às coisas... Mesmo hoje, mesmo agora... 
- Estou compreendendo, estou compreendendo - murmurou Evguénii Pávlovitch, com um sorriso dissimulado. Esta noite ele se sentia capaz de achar tudo inefável.
- Está compreendendo o quê? - perguntou o príncipe com uma desconfiança jovial. 
- Pois ainda não suspeitou, meu caro Príncipe - disse Radómskii, sorrindo mais e sem responder diretamente à pergunta -, ainda não suspeitou que vim simplesmente para o pegar e, com ar de quem não quer, lhe extrair uma solicitação?   
- Que veio para obter de mim uma vantagem qualquer, nem tenho dúvida concordou Míchkin rindo também. - Está, talvez, tentando ludibriar-me um pouco.  Mas, que importa? Nada receio. Além disso, meu ânimo se afaz a tudo, acredita? Estou convencido que é um esplêndido camarada e que decerto nos tornaremos cada vez mais amigos. Eu o aprecio muito, Evguénii Pávlovitch. Considero-o , um excelente cavalheiro.
 - Mais uma confirmação de que constitui um autêntico prazer, ter-se alguma coisa seja lá qual for a tratar com a sua pessoa - concluiu Radómskii - Vamos beber uma taça a sua saúde. Estou contentíssimo de ter vindo a sua casa - parou um segundo no máximo perguntando logo outra coisa - Esse jovem Ippolit tenciona instalar-se aqui?
- Convidei-o provisoriamente.
- Ele não vai morrer assim... abrupto, não é? 
- Por que esse receio?
- À toa. É que passei meia hora com ele...

O Idiota: Terceira Parte (4a) - Ao chegar próximo da vila
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