segunda-feira, 31 de março de 2025

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Tranquilidade (XL)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XL

A TRANQUILIDADE

 É porque então eu era louco que hoje sou sábio. Ó filósofo que nada vê 
 senão o instantâneo, como tuas ideias são curtas! Teu olhar não foi feito 
 para seguir o trabalho subterrâneo das paixões.

W. GOETHE



     ESSA CONVERSA FOI INTERROMPIDA POR UM INTERROGATÓRIO, seguido de uma reunião com o advogado encarregado da defesa. Esses momentos eram os únicos absolutamente desagradáveis de uma vida cheia de incúria e de devaneios ternos.

– Há homicídio, e homicídio com premeditação, disse Julien tanto ao juiz como ao advogado. Sinto muito, senhores, acrescentou sorrindo; mas isso reduz vossa tarefa a muito pouca coisa.

      Afinal, pensava Julien, depois de livrar-se desses dois homens, devo ser bravo, e aparentemente mais bravo que eles, que consideram como o pior dos males, como o rei dos pavores, esse duelo sem final feliz, do qual só me ocuparei a sério no próprio dia.
      É que conheci uma infelicidade maior, continuou Julien, filosofando consigo mesmo. Eu sofria de uma forma bem diferente durante minha primeira viagem a Estrasburgo, quando me julgava abandonado por Mathilde... E pensar que desejei com tanta paixão essa intimidade perfeita que hoje me deixa tão frio!... Na verdade, sou mais feliz sozinho do que quando essa moça tão bela compartilha minha solidão...
     O advogado, homem de regra e de formalidades, julgava-o louco e pensava, com o público, que o ciúme pusera-lhe a pistola na mão. Um dia, ele arriscou dar a entender a Julien que essa alegação, verdadeira ou falsa, seria um excelente argumento de defesa. Mas o acusado reagiu prontamente, voltando a ser uma criatura apaixonada e incisiva.

– Por sua vida, senhor, exclamou Julien fora de si, nunca mais pronuncie essa abominável mentira! O prudente advogado temeu, por um momento, ser assassinado.

     Ele preparava seu discurso de defesa porque o instante decisivo aproximava-se rapidamente. Besançon e toda a região não falavam senão dessa causa célebre. Julien ignorava esse detalhe, ele pedira que jamais lhe comunicassem esse tipo de coisas.
     Naquele dia, tendo Fouqué e Mathilde querido lhe informar certos rumores públicos capazes, segundo eles, de dar esperanças, Julien os deteve às primeiras palavras.

– Deixem-me com minha vida ideal. Essas pequenas intrigas, esses detalhes da vida real, mais ou menos dolorosos para mim, tirar-me-iam do céu. Morre-se como se pode; quanto a mim, só quero pensar na morte à minha maneira. Que me importam os outros? Minhas relações com os outros vão ser cortadas bruscamente. Por favor, não me falem mais dessa gente: já é o bastante ver o juiz e o advogado.

     Em realidade, ele dizia a si mesmo, parece que meu destino é morrer sonhando. Um ser obscuro como eu, certo de ser esquecido antes de quinze dias, seria muito tolo, convenhamos, em representar a comédia. É singular, no entanto, que eu só tenha conhecido a arte de gozar a vida quando vejo seu fim tão próximo.
     Ele passava esses últimos dias a caminhar pelo estreito terraço do torreão, fumando excelentes charutos que Mathilde mandara buscar na Holanda por um mensageiro, e sem suspeitar que sua aparição era esperada a cada dia por todos os telescópios da cidade. Seu pensamento estava em Vergy. Ele nunca falava da sra. de Rênal a Fouqué, mas duas ou três vezes o amigo lhe dissera que ela se recuperava rapidamente, e essa frase ressoou em seu coração.
      Enquanto a alma de Julien estava quase sempre inteiramente no país das ideias, Mathilde, ocupada com as coisas reais, como convém a um coração aristocrata, fizera avançar a tal ponto a intimidade da correspondência direta entre a sra. de Fervaques e o sr. de Frilair que a importante palavra bispado já fora pronunciada.
     O venerável prelado, encarregado da lista dos benefícios, acrescentou à margem de uma carta da sobrinha: Esse pobre Sorel é somente um desatinado, espero que no-lo restituam.
     Ao ler essas linhas, o sr. de Frilair não se conteve, na certeza de poder salvar Julien.

– Não fosse a lei jacobina que prescreveu a formação de uma lista enorme de jurados, e que não tem outra finalidade real senão evitar toda influência às pessoas bem-nascidas, ele dizia a Mathilde na véspera do sorteio dos trinta e seis jurados da sessão, eu garantiria pelo veredito. Consegui absolver o pároco N...

     Foi com prazer que, no dia seguinte, entre os nomes saídos da urna, o sr. de Frilair encontrou cinco membros da Congregação de Besançon e, entre os que não eram da cidade, os nomes dos srs. Valenod, de Moirod, de Cholin. – Respondo desde já por esses oito jurados, disse ele a Mathilde. Os cinco primeiros são autômatos. Valenod é meu agente, Moirod me deve tudo, de Cholin é um imbecil que tem medo de tudo.
     O jornal divulgou na região os nomes dos jurados, e a sra. de Rênal, para o inexprimível terror do marido, quis ir a Besançon. Tudo o que o sr. de Rênal pôde obter é que ela não deixaria seu leito, a fim de não ter o dissabor de ser chamada em testemunho.
     
– Você não compreende minha posição, dizia o ex-prefeito de Verrières, sou agora liberal da dissidência, como eles dizem; ninguém duvida que esse descarado Valenod e o sr. de Frilair obterão do procurador geral e dos juízes tudo o que puder ser-me desagradável.

     A sra. de Rênal cedeu sem dificuldade às ordens do marido. Se eu comparecesse ao tribunal, ela pensava, daria a impressão de pedir vingança.
     Apesar das promessas de prudência feitas ao diretor espiritual e ao marido, assim que chegou a Besançon ela mesma escreveu a cada um dos trinta e seis jurados:

 “Não comparecerei no dia do julgamento, senhor, porque minha presença poderia prejudicar a causa do sr. Sorel. Não desejo senão uma coisa no mundo e com paixão, é que ele seja salvo. Não duvideis disso: a ideia terrível de que, por minha causa, um inocente foi conduzido à morte envenenaria o resto de minha vida e certamente a abreviaria. Como poderíeis condená-lo à morte, enquanto eu mesma vivo? Não, a sociedade não tem nenhum direito de arrancar a vida, sobretudo de uma criatura como Julien Sorel. Todos, em Verrières, sabem que ele teve momentos de extravio. Esse pobre moço tem inimigos poderosos; porém, mesmo entre seus inimigos (e quantos ele não tem!), qual deles põe em dúvida seus admiráveis talentos e seu conhecimento profundo? Não é uma pessoa ordinária que ireis julgar, senhor. Durante cerca de dezoito meses, todos o conhecemos piedoso, sensato, aplicado; mas duas ou três vezes ao ano ele era acometido de acessos de melancolia que chegavam ao extravio. Toda a cidade de Verrières, nossos vizinhos de Vergy onde passamos o verão, minha família inteira, o próprio sr. subprefeito, reconhecerão sua devoção exemplar; ele sabe de cor a Bíblia inteira. Um ímpio teria se dedicado durante anos a decorar o livro sagrado? Meus filhos terão a honra de vos apresentar esta carta: são crianças. Dignai-vos interrogá-los, senhor, e eles darão sobre esse pobre moço todos os detalhes ainda necessários para vos convencer da barbárie que seria condená-lo. Longe de vingar-me, causaríeis minha morte.
 “O que seus inimigos poderão opor a esse fato? O ferimento que resultou de um desses momentos de loucura que meus próprios filhos notavam em seu preceptor foi tão pouco perigoso que, menos de dois meses depois, permitiu-me vir de Verrières a Besançon. Se eu souber, senhor, que hesitais o mínimo que seja em subtrair à barbárie das leis uma criatura tão pouco culpada, sairei de meu leito, onde me retêm unicamente as ordens de meu marido, e virei lançar-me a vossos pés.
 “Declarai, senhor, que não houve premeditação constante, e não tereis de vos reprovar o sangue de um inocente” etc. etc.
 

continua página 332...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: A Tranquilidade (XL)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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