O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
4.continuando...
Enquanto isso Ippolit, a parte, aguardando para falar com o príncipe, prestava atenção em ambos, mostrando se febrilmente excitado quando os viu voltar para perto da mesa. Sua inquietação era quase convulsiva, e tinha a fronte perlada de suor. Em seus olhos brilhantes, errando de objeto para objeto e de rosto para rosto, além de uma impaciência incontida, se lia uma preocupação difusa. Apesar de ter tomado parte preponderante na ruidosa conversa generalizada, sua inquietude provinha mais da febre do que da aglomeração. Agora já prestava pouca atenção aos diálogos, apenas dando um ou outro aparte incoerente, com atitude irônica e efeito paradoxal, às vezes até os deixando incompletos apesar de intervir com ardor. O príncipe veio a descobrir, com mágoa e surpresa, que o tinham deixado beber duas taças de champanha, sem nenhum protesto, e que essa que permanecia já esvaziada de todo na sua frente, era a terceira. Mas ao verificar isso, já era tarde; antes, tal leviandade lhe passara despercebida.
As primeiras palavras de Ippolít foram estas:
- Calhou, calhou magnificamente
ser hoje seu aniversário! Estou radiante!
- Sim? Mas... por quê?
- Não tardará a saber. Antes, porém, sente-se. Em primeiro lugar, por se
acharem reunidos aqui todos os seus amigos. Aliás, ao vir para cá eu já calculava
que isto aqui devia estar sempre assim, concorrido; pela primeira vez na vida
uma suposição minha deu certo! Que pena não saber que era seu aniversário!
Ter-lhe-ia trazido um presente! Ah! Ah!... Mas quem sabe se não lhe trouxe eu
um presente? Ainda demora muito a clarear?
Ouvindo, e consultando o relógio,
Ptítsin, que estava perto, teve a bondade de informar:
- Daqui a umas duas horas nascerá o sol, - e uma outra pessoa qualquer comentou: - Para que essa pressa de sol? Já se pode ler aqui fora!
- Quero vê-lo raiar.
Podemos beber em saudação ao sol, príncipe? Que acha o senhor?
E Ippolít falava abruptamente, voltando-se para o grupo, com ar desenvolto e
quase imperioso, não por ostentação e sim por temperamento.
- Se assim deseja,
podemos fazer isso. Mas devia ficar mais quieto, Ippolít. Calma!
- Descansar! Dormir! É só o que o senhor me aconselha. Será acaso meu tutor,
ou aio, príncipe? Somente depois que o sol surgir e “ressoar na abóbada” (qual foi
o vate que escreveu que “o sol ressoa na abóbada”? É besteira mas é bonito!) é
que iremos dormir.
- Você aí, Liébediev, é exato que o sol é a fonte da vida? Que significa isto, “fonte
da vida”, no Apocalipse? Já o ouviu falar na “estrela que é chamada Absinto”,
príncipe?
- Ouvi dizer que aqui o nosso Liébediev identifica a “estrela que se chama
Absinto” como sendo a rede de estradas de ferro disseminadas por toda a
Europa.
Ante o coro de gargalhadas que se ergueu, Liébediev se levantou, gesticulando,
tentando querer deter tal onda:
- Desculpem-me, desculpem-me, mas já é
demais! Desculpem-me, cavalheiros, mas isso já é atrevimento. - voltou-se para Míchkin, como a excluí-lo da sua reprimenda: - Ao
senhor, príncipe, tão só ao senhor, digo e explico que, em certos pontos,
representa isso...
E bateu duas vezes sobre a mesa, sem a menor cerimônia, o que aumentou a
alegria geral.
Embora ele, Liébediev, se achasse no seu habitual estado de carraspana noturna”,
aquela discussão demorada e difícil o superexcitou; sempre, em tais
circunstâncias, tratava com ilimitado desprezo os que não concordassem com
ele. Prosseguiu:
- Assim não vale! Há meia hora, príncipe, fizemos uma combinação aqui:
ninguém poderia interromper nem rir enquanto o outro estivesse falando,
deixando-o expressar-se à vontade. E depois então, sim, seria permitido aos ateus
se manifestarem, caso quisessem. Escolhemos como presidente o general, para
desta forma cada qual, mediante a autoridade da mesa, poder berrar a sua ideia,
a sua profunda ideia.., sem ser interrompido.
- Pois então fale, fale! Quem o
mandou calar?! - gritaram diversas vozes. - Fale! Mas não diga asneira!
- E que vem a ser essa história de “estrela que tem por nome Absinto”? - indagou
uma voz isolada.
- Eu cá não tenho a menor ideia! - declarou taxativamente o general. enquanto
com ar insigne reassumia o seu primitivo posto de presidente.
Nesse ínterim
Keller, remexendo-se na sua cadeira com impaciência e sofreguidão, ciciou
quase ao ouvido do príncipe: - Gosto que me pelo de todos esses argumentos e
discussões... Naturalmente quando é coisa elevada, é claro! - voltou-se
inesperadamente para Evguénii Pávlovitch, que estava sentado ao seu lado,
acrescentando: - Assuntos culturais e políticos. O senhor não sabe quanto eu dou a
vida, por exemplo, para ler nos jornais os debates no Parlamento inglês! Não me
refiro ao que eles discutem (não sou político, é claro!), mas aprecio o modo com
que falam uns com os outros e se comportam como políticos, se bem me
exprimo. “O nobre visconde coloca-se em campo oposto”, “o nobre duque está
corroborando o meu ponto de vista”, “o meu honrado aparteante acaba fazendo a
Europa inteira pasmar com uma tal proposta”, todas estas expressões, todo este
parlamentarismo de um povo livre, eis o que me fascina! Lambo-me todo,
príncipe! Sempre fui um artista, cá no âmago, palavra de honra, Evguénii
Pávlovitch!...
Na outra extremidade, Gánia, todo acalorado, aparteava Liébediev:
- Ora! Então se deve depreender do que você diz, Liébediev. que as
estradas de ferro são uma praga, a ruína da espécie humana, uma calamidade
que caiu sobre a terra para poluir as “fontes da vida”!?
Essa noite Gavríl
Ardaliónovitch estava em estado otimista e ânimo triunfante, segundo já Míchkin
reparara. Dera em brincar com Liébedíev, prazenteiramente, atiçando-o; mas a
verdade é que acabou se inflamando também.
- Somente as estradas de ferro,
não! - retorquiu Líébediev. perdendo cada vez mais a compostura e gostando, ao
mesmo tempo, tremendamente da discussão - Fique sabendo que não são
somente as estradas de ferro que poluem as “fontes da vida”, e sim tudo, tudo
que é amaldiçoado. A conceituação científica e materialista dos últimos séculos
em geral, a meu ver, é deveras amaldiçoada!
- A seu ver, ou realmente? É importante esclarecer isso, vamos e venhamos
aparteou também Evguénii Pávlovitch.
- Amaldiçoada! Amaldiçoada! Com toda a segurança amaldiçoada no consenso
divino! Amaldiçoada, sim senhor! - sustentou Liébedíev, com veemência.
- Calma! Calma, Liébediev. Pela manhã cumpre ser mais moderado - fez Ptítsin,
com um sorriso.
- Perfeitamente! A noite, porém, há de ser sincero! Há de ser mais ardente e
franco! - volveu Liébediev, inflamado. - Mais leal, mais categórico, mais honesto
e honrado! E mesmo que perante todos eu esteja expondo o meu lado fraco, não
importa. Seus ateus, lanço-lhes meu desafio. A um por um, sem exceção! Com
que é que pretendem salvar o mundo? Onde foi que descobriram que tem de ser
mediante uma norma de progresso retilíneo? Respondam, provêm, vocês e mais
os seus homens de ciência, de indústria, de cooperação, de trabalho remunerado
e tudo o mais! E me atiram com o crédito? Que vem a ser crédito? Aonde os
levará o crédito?
- Arre! O senhor deu para altas elucubrações...
- Quer saber de
uma coisa, prezado senhor? A minha opinião é que quem não se interessa em tais
questões é um requintado patife, um folgazão.
- Mas essas coisas que você citou
pelo menos levam à solidariedade geral e a um equilíbrio de interesses
observou Ptítsin.
- Ora, aí está! Ora, aí está! Não reconhecem nenhuma base
moral! Apenas a satisfação do egoísmo individual e da necessidade material! Paz
universal,
felicidade universal, sim, mas por necessidade. Tê-lo-ei compreendido direito,
meu caro senhor, consente que pergunte?
- Mas a necessidade de comer, de
beber, de viver, assim como uma convicção completa e realmente científica de
que essa contingência só pode ser satisfeita mediante associação e solidariedade
de interesses, eis o que, acho eu, constitui já uma ideia suficientemente poderosa
para servir como fundamento e “fonte de vida” às futuras idades da humanidade- observou Gánia, exaltando- se de verdade.
- A necessidade de comer e beber é simplesmente o instinto de auto conservação!
- Mas não acha que esse instinto de autopreservação por si só é importante? Ora,
o instinto de auto conservação é a lei normal da humanidade!...
- Quem lhe disse isso? - perguntou Evguénii Pávlovitch. - Que é uma lei, não há
dúvida. Mas não é mais normal do que a lei de destruição, ou mesmo a de
autodestruição. Acha que a auto conservação seja a única lei da espécie humana?
- Boa! Há, há! - exclamou Ippolít, virando-se prontamente para Evguénii
Pávlovitch e o examinando com uma curiosidade insolente. Vendo porém que
este começou a rir, deu em rir também; em seguida cutucou Kólia que se achava
em pé ao seu lado e lhe tornou a perguntar que horas eram. Vendo Kólía tirar o
relógio de prata, se apossou dele, consultando as horas com muita atenção. A
seguir, como se tudo se lhe tornasse indiferente, se escarrapachou no sofá, pôs os
punhos por baixo da nuca e ficou fitando o teto. Minutos depois se sentou outra
vez, com o peito bem rente da mesa, coçando-se e prestando atenção no aranzel
de Liébediev, cuja excitação chegara ao auge, segurando vorazmente o paradoxo
de Evguénii Pávlovitch e redarguindo logo:
- Ora aí está uma ideia insidiosa,
porque é hábil e irônica. Parece areia fina querendo entravar o funcionamento
de molas! Não passa, aparentemente, de uma interferência de neutros se
imiscuindo entre batalhadores a fim de estarrecê-los. No fundo, porém, é uma
ideia exata! Nem o senhor, um ás notório da ironia e um oficial de cavalaria
(dotado aliás de cérebro), nem mesmo o senhor se dá conta de quão profunda e
exata é a sua ideia. Realmente, cavalheiro, a lei de autodestruição e a lei de
autopreservação são igualmente fortes na humanidade! Foi concedido ao diabo
domínio igual sobre a humanidade até um tempo que não nos é dado saber. O
senhor está rindo? Não acredita no diabo? Fazer pouco do diabo é uma ideia
francesa, aliás bem frívola.
Sabe o senhor quem é o diabo? Sabe o nome dele? Nem sequer lhe sabe o nome,
o senhor, e, se ri, é porque segue o exemplo de Voltaire, isto é, acha graça nos
cascos, nos chifres, no rabo, enfim na forma alegórica inventada pelos senhores
mesmos. Todavia lhe asseguro que o diabo é um espírito, e que esse espírito
diabólico é sobremaneira ameaçador e nocivo, mesmo sem ter os cascos e os
chifres que os senhores lhe inventaram. Mas... não é dele que se trata agora.
- Tem certeza mesmo que não é dele que se trata agora? - perguntou Ippolít
apondo às próprias palavras uma risada estentórica.
- Mais outro aparte perspicaz
e incisivo! - aceitou Liébediev - Mas, repito, não é dele que se trata agora. A
nossa questão é se as “fontes da vida” não se enfraqueceram com o alimento
das...
- Estradas de ferro! - goelou Kólia.
- Comunicações ferroviárias não, jovem e impetuoso mancebo, mas sim por
causa dessa tendência genérica da qual as estradas de ferro são, por assim dizer,
a expressão mais vivaz e dinâmica. Há quem diga que elas correm por aí fora
com todo o seu estrépito, fumaça e velocidade em prol do bem-estar da espécie
humana.
Eis que acode um pensador dado a elucubrações, como diria o meu nobre amigo
e pondera: “Esta humanidade quanto mais barulhenta e comercial fica, menos
paz de espírito desfruta!” “Perfeitamente, mas bendito seja o ruído dos vagões
levando pão para a humanidade! Três e quatro vezes bendito, pois tal estrépito
resolve a fome, ao passo que a paz espiritual não resolve o problema do
estômago!”, retruca violentamente um segundo pensador dialético, desses que se
bamboleiam pelas assembleias; brada e se retira triunfante... A mim, porém, vil
que sou, pequenino conforme me reconheço, a mim não me engambelam os
vagões que levam pão para a humanidade! Sim, porque os vagões que levam pão
para a humanidade, se não estiverem cautelosamente consignados sob uma base
moral, podem estar friamente excluindo da felicidade desse pão uma outra parte
considerável da humanidade, aquela donde esse pão foi tirado, ora esta é muito
boa! E isso há de suceder com frequência!
Mas houve quem não compreendesse, pois se ouviu este raciocínio:
- Os vagões
podem friamente excluir...?
- E isso há de suceder com frequência - repetiu
Liébediev, não se dignando explicar a dúvida - Já tivemos Malthus, amigo da humanidade. Mas isso de amigo da humanidade,
em lhe faltando princípios morais explícitos, acaba em
antropófago! E olhem que deixo de lado a vaidade dele. Sim, porque se ferirmos
a vaidade de um desses muitíssimos amigos da humanidade, ele imediatamente
porá fogo no mundo, por simples vingança, reflexa, como alias todos nós, de fato,
cumpre ser claro! Como eu, o ínfimo de todos, pois cá o degas seria o primeiro a
trazer a lenha e safar-se. Mas ainda isto não é o ponto a que queríamos chegar.
- Qual é ele então?
- Deixe-se de lérias!...
continua página 338...
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