segunda-feira, 10 de março de 2025

A escrava - Eram casados

Maria Firmina dos Reis


A Escrava

continuando...

      Eram casados e, desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este homem cruel infligia diariamente a minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus dias ajudando-a nas suas desmedidas tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho, conseguiu um fundo de reserva em meu benefício. 
      Um dia apresentou a meu senhor a quantia realizada, dizendo que era para o meu resgate. Meu senhor recebeu a moeda sorrindo-se – tinha eu cinco anos – e disse: — A primeira vez que for à cidade trago a carta dela. Vai descansado.
      Custou a ir à cidade: quando foi demorou-se algumas semanas e, quando chegou, entregou a meu pai uma folha de papel escrita, dizendo-lhe:

— Toma, e guarda, com cuidado, é a carta de liberdade de Joana.

     Meu pai não sabia ler, de agradecido beijou as mãos daquela fera. 
     Abraçou-me, chorou de alegria, e guardou a suposta carta de liberdade.
     Então furtivamente eu comecei a aprender a ler, com um escravo mulato, e a viver com alguma liberdade. 
     Isto durou dois anos. Meu pai morreu de repente e, no dia imediato, meu senhor disse a minha mãe:

— Joana que vá para o serviço, tem já sete anos, e eu não admito escrava vadia.

      Minha mãe, surpresa e confundida, cumpriu a ordem sem articular uma palavra. 
      Nunca a meu pai passou pela ideia que aquela suposta carta de liberdade era uma fraude; nunca deu a ler a ninguém; mas minha mãe, à vista do rigor de semelhante ordem, tem assinatura, sem data! Eu também a li, quando caiu das mãos do mulato. Minha pobre mãe deu um grito, e caiu estrebuchando.
     Sobreveio-lhe febre ardente, delírios, e três dias depois estava com Deus.
     Fiquei só no mundo, entregue ao rigor do cativeiro. 
     Aqui ela interrompeu-se; agitou-lhe os membros um tremor convulso. A morte fazia os seus progressos. De novo cheguei-lhe aos lábios a colher do calmante, que lhe aplicava, e pedi-lhe, não revocasse lembranças dolorosas que a podiam matar.

— Ah! Minha senhora, – começou de novo, mais reanimada; – apadrinhe Gabriel, meu filho, ou esconda-o no fundo da terra; olhe, se ele for preso, morrerá debaixo do açoite, como tantos outros, que meu senhor tem feito expirar debaixo do azorrague! Meu filho acabará assim.
 — Não, não há de acabar assim, – descansa. Teu filho está sob minha proteção, e qualquer que seja a atitude que possa assumir esse homem, que é teu senhor, Gabriel não voltará mais ao seu poder.

      Ela recolheu-se por algum tempo, depois tomando-me as mãos, beijou-as com reconhecimento.

 — Ah! Se pudesse, nesta hora extrema ver meus pobres filhos, Carlos e Urbano!... Nunca mais os verei!

      Tinham oito anos. 
      Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos – era um traficante de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! Homem a quem as lágrimas de uma mãe não podem comover, nem comovem os soluços do inocente.
      Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu. 
      Eu tinha o coração opresso, pressentia uma nova desgraça.
      À hora permitida ao descanso, concheguei a mim meus pobres filhos, extenuados de cansaço, que logo adormeceram. Ouvi ao longe rumor, como de homens que conversavam. Alonguei os ouvidos; as vozes se aproximavam. Em breve reconheci a voz do senhor. Senti palpitar desordenadamente meu coração; lembrei-me do traficante... corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti um zumbido nos ouvidos, fugiu-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos.
      Não sei quanto tempo durou este estado de torpor; acordei aos gritos de meus pobres filhos, que me arrastavam pela saia, chamando-me: mamãe! Mamãe!
     Ah! Minha senhora! Abri os olhos. Que espetáculo! Tinham metido adentro a porta da minha pobre casinha, e nela penetrado meu senhor, o feitor, e o infame traficante. 
     Ele e o feitor arrastavam, sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe.
      Gabriel entrava nesse momento. Basta, minha mãe, disse-lhe, vendo em seu rosto debuxados todos os sintomas de uma morte próxima.

— Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para sempre... deixa-me morrer amaldiçoando os meus carrascos. 
— Por Deus, por Deus, gritei eu tornando a mim, por Deus levem-me com meus filhos! 
— Cala-te! gritou meu feroz senhor. Cala-te, ou te farei calar. 
— Por Deus, tornei eu de joelhos, e tomando as mãos do cruel traficante: – meus filhos!... Meus filhos!...

      Mas ele, dando um mais forte empuxão e ameaçando-os com o chicote que empunhava, entregou-os a alguém que os devia levar... 
      Aqui a mísera calou-se; eu respeitei o seu silêncio que era doloroso, quando lhe ouvi um arranco profundo, e magoado. 
      Curvei-me sobre ela. Gabriel ajoelhou-se, e juntos exclamamos:

— Morta!

      Com efeito tinha cessado de sofrer. O embate tinha sido forte demais para as suas débeis forças.
     A lua percorria melancólica e solitária os paramos do céu, e cortava com uma fita de prata as vagas do oceano.
      No mesmo instante, um homem assomou à porta. Era o homem do azorrague que eles intitulavam do feitor; era aquele homem de fisionomia sinistra e terrível, que me interpelara algumas horas antes, acerca da infeliz foragida; e este homem aparecia agora mais hediondo ainda, seguido de dois negros que, como ele, pararam à porta.

 — Que pretende o senhor? – perguntei-lhe. – Pode entrar.

      O pobre Gabriel refugiou-se, trêmulo, ao canto mais escuro da casa.

 — Anda, Gabriel, disse-lhe com voz segura, continua a tua obra, e voltando-me para o feitor, acrescentei:
— Eu e este desolado filho ocupamo-nos em cerrar os olhos à infeliz, a quem o cativeiro e o martírio despenharam tão depressa na sepultura.

     Comovidos em presença da morte, os dois escravos deixaram pender a fronte no peito; o próprio feitor, ao primeiro ímpeto, teve um impulso de homem; mas, recompondo de pronto na rude e feroz fisionomia, disse-me:

— É hoje a segunda vez que a encontro, minha senhora, entretanto, não sei ainda a quem falo. Peço-lhe que me diga o seu nome, para que eu conheça o patrão, o senhor Tavares. É escandalosa, minha senhora, a proteção que dá a estes escravos fugidos.

      Estas palavras inconvenientes mereceram o meu desdém; não lhe retorqui. 
      O meu silêncio lhe deu maior coragem, e, fazendo-se insolente, continuou:

— A senhora coadjuvou a mãe em sua fuga; acabou aqui, mais tarde saberemos de quê. Pretenderá também coadjuvar o filho?

      É o que havemos de ver!... 
      João, Felix! E com um aceno indicou-lhes o que deviam fazer. 
      Gabriel, que ao meu chamado voltara para junto do cadáver de sua mãe, sentindo que o vinham prender, levantou-se espavorido, sem saber o que fazer.

— Detém-te! – lhe gritei eu. – Estás sob a minha imediata proteção; – e voltando-me para o homem do azorrague, disse-lhe: 
— Insolente! Nem mais uma palavra. Vai-te, diz a teu amo, – miserável instrumento de um escravocrata; diz a ele que uma senhora recebeu em sua casa uma mísera escrava, louca porque lhe arrancaram dos braços dois filhos menores, e os venderam para o Sul; uma escrava moribunda; mas ainda assim perseguida por seus implacáveis algozes.

      Vai-te e entrega-lhe este cartão; aí achará o meu nome. 
      Vai, e que nunca mais nos tornemos a ver. 
      Ele mordeu os beiços para tragar o insulto, e desapareceu.
      No dia seguinte, era já de tarde, estava quase a desfilar o saimento da infeliz Joana, quando à porta de minha casinha, vi apear-se um homem. Era o senhor Tavares. 
      Cumprimentou-me com maneiras da alta sociedade, e disse-me:

— Desculpe-me, querida senhora, se me apresentou em sua casa, tão brusca e desazadamente; entretanto... 
— Sem cerimônia, senhor, disse-lhe, procurando abreviar aqueles cumprimentos que me incomodavam.

     Sei o motivo que aqui o trouxe, e podemos, se quiser, encetar já o assunto. 
     Custava-me, confesso, estar por longo tempo em comunicação com aquele homem, que encarava sua vítima, sem consciência, sem horror.

— Peço-lhe mil desculpas, se a vim incomodar. 
— Pelo contrário, retorqui-lhe. O senhor poupou-me o trabalho de o ir procurar. 
— Sei que esta negra está morta, – exclamou ele, – e o filho acha-se aqui; tudo isto teve a bondade de comunicar-me ontem. Esta negra, continuou, olhando fixamente para o cadáver – esta negra era alguma coisa monomaníaca, de tudo tinha medo, andava sempre foragida, nisto consumiu a existência. Morreu, não lamento esta perda; já para nada prestava. O Antônio, o meu feitor, que é um excelente e zeloso servidor, é que se cansava em procurá-la. Porém, minha senhora, este negro! – designava o pobre Gabriel, – com este negro a coisa muda de figura; minha querida senhora, este negro está fugido; espero, que o entregará, pois sou o seu legítimo senhor, e quero corrigi-lo.

— Pelo amor de Deus, minha mãe, – gritou Gabriel, completamente desorientado, – minha mãe, leva-me contigo. 
— Tranquiliza-te, – lhe tornei com calma; – não te hei já dito que te achas sob a minha proteção? Não tem confiança em mim?

      Aqui o senhor Tavares encarou-me estupefato e depois perguntou-me:

— Que significam essas palavras, minha querida senhora? Não a compreendo. 
— Vai compreender-me, – retorqui, apresentando-lhe um volume de papéis subscritados e competentemente selados.

      Rasgou o subscrito, e leu-os. Nunca em sua vida tinha sofrido tão extraordinária contrariedade.

— Sim, minha cara senhora, – redarguiu, terminando a leitura; – o direito de propriedade, conferido outrora por lei a nossos avós, hoje nada mais é que uma burla... A lei retrogradou. Hoje protege-se escandalosamente o escravo contra seu senhor; hoje qualquer indivíduo diz a um juiz de órfãos: Em troca desta quantia exijo a liberdade do escravo fulano – haja ou não a aprovação do seu senhor. Não acham isto interessante?

— Desculpe-me, senhor Tavares, – disse-lhe.

     Em conclusão, apresento-lhe um cadáver, e um homem livre. 
     Gabriel ergue a fronte, Gabriel és livre! 
     O senhor Tavares cumprimentou e retrocedeu no seu fogoso alazão, sem dúvida alguma mais furioso que um tigre.

continua na página 178...
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A escrava - Eram casados
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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