volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(a)
Quando, dois anos mais tarde, chegara a uma quase total indiferença por Gilberte, parti com minha avó para Balbec. Quando experimentava o encantamento de um rosto novo, quando era com o auxílio de outra moça que esperava conhecer as catedrais góticas, os palácios e jardins da Itália, dizia comigo tristemente que o nosso amor, na medida em que significa o amor de uma determinada criatura, talvez não seja algo muito real, pois se associações de fantasias agradáveis ou dolorosas podem uni-lo por algum tempo a uma mulher até nos fazer imaginar que foi inspirado por ela de um modo necessário, em compensação, se nos libertamos voluntariamente, ou contra a vontade, dessas associações, este amor, como se pelo contrário fosse espontâneo e surgisse apenas de nós, renascesse para se doar a outra mulher. No entanto, no momento daquela partida para Balbec e durante os primeiros tempos de minha estada, minha indiferença ainda era apenas intermitente. Muitas vezes (visto que nossa vida é muito pouco cronológica, tantos anacronismos interferindo na sequência dos dias), eu estava vivendo naqueles dias em que amava Gilberte, anteriores à véspera ou à antevéspera. Então, não vê-la mais era-me de súbito muito doloroso, como o fora naquele tempo. O eu que a havia amado, já quase inteiramente substituído por um outro, ressurgia, e era-me restituído com mais frequência por algo fútil do que por uma coisa importante. Por exemplo, para antecipar a minha estada na Normandia, ouvi em Balbec um desconhecido, com quem cruzara no molhe, dizer:
- A família do diretor do ministério dos Correios...
Ora (como não sabia então a influência que essa família iria ter na minha vida), essa frase
deveria me parecer ociosa, porém me causou um vivo sofrimento, o sofrimento que em mim
sentia um eu, abolido em grande parte há muito tempo, por estar separado de Gilberte. É que
jamais voltara a pensar numa conversa que Gilberte tivera com o pai na minha presença,
relativamente à família do "diretor do ministério dos Correios". Ora, as recordações de amor não
fazem exceção às leis gerais da memória, elas próprias regidas pelas leis mais gerais do hábito.
Como este enfraquece tudo, o que nos recorda melhor uma criatura é justamente o que tínhamos
esquecido, porque era insignificante e assim lhe havíamos deixado toda sua força. Porque a
melhor parte de nossa memória está fora de nós, numa brisa chuvosa, num cheiro de quarto
fechado, ou no odor de uma primeira labareda, em toda parte encontramos de nós mesmos o que
nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo a última reserva do passado, a melhor, aquela que,
quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe nos fazer chorar ainda. Fora de nós?
Erre para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou
menos prolongado. É somente graças a tal esquecimento que pode de vez em quando,
reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face àquela como o era essa criatura, sofrer de
novo, porque não somos mais nós mas ele, e é quem amava a pessoa que agora nos é
indiferente. Em plena luz da mente habitual, as imagens do passado empalidecem aos poucos,
vão se apagando, resta mais nada delas, não as encontraremos nunca mais. Ou melhor, não as
traremos mais se algumas palavras (como "diretor do ministério dos Correios) não tivessem sido
cuidadosamente trancadas no ouvido, assim como se na Biblioteca Nacional o exemplar de um
livro que, sem isso, se arriscaria não encontrá-lo.
Porém tal sofrimento e tal rebrotar do amor por Gilberte não foram longos que os que são
sonhados, e desta vez ao contrário porque, em Balbec; hábito antigo já não estava ali para fazê-los durar. E, se tais efeitos dó parecem contraditórios, é que ele obedece a leis múltiplas. Em
Paris, eu estava cada vez mais indiferente a Gilberte, graças ao hábito. A mudança de hábito, é, a
momentânea cessação do Hábito, rematou a obra do Hábito quando parti! Balbec. Ele se
enfraquece mas se estabiliza, traz a desagregação porém indefinidamente. Cada dia, desde
muitos anos, eu vinha decalcando, bem o meu estado de alma sobre o da véspera. Em Balbec,
uma cama nova com cabeceira me traziam todas as manhãs um desjejum bem diverso do de
Paris. Devia mais alimentar os pensamentos de que se havia nutrido o meu amor por Gilberte;
existem casos (é verdade que muito raros) em que o sedentarismo banaliza os dias, e o melhor
modo de ganhar tempo é mudar de local. Minha vida em Balbec foi como a primeira saída de um
convalescente que só espera por perceber que está curado. Sem dúvida, esta viagem a faríamos hoje de automóvel, achando que desse modo, se
tornaria mais agradável. Ver-se-á que, realizada assim, seria mais verdadeira em certo sentido,
visto que seguiríamos mais de perto, numa intimidade mais estreita, as diversas gradações pelas
quais se muda a superfície dá enfim o prazer específico da viagem não está em poder pôr-se a
caminho é quando nos sentimos cansados; é tornar a diferença entre a partida e a chegada tão
insensível mas tão profunda quanto possível, em senti-la na sua rota intacta, bem como era no
nosso pensamento quando nossa imaginação do lugar em que vivíamos até o âmago do lugar
desejado, num salto, parecia menos miraculoso por franquear uma distância do que por unir as
dualidades distintas da terra, levando-nos de um para outro nome, e que esquece (melhor que um
passeio, onde não existe mais chegada, pois a gente vai onde quiser) a misteriosa operação que
se cumpria nesses lugares as estações, que, por assim dizer, não fazem parte da cidade mas
contêm a essência de sua personalidade, do mesmo modo que lhe mostram o nome numa
tabuleta indicadora.
Mas o nosso tempo, em todas as coisas, tem a mania de só querer mostrar aquilo de que
se cerca na realidade, e, assim, suprimir o essencial, o ato do espírito que as isolou dessa
realidade. "Apresenta-se" um quadro no meio de móveis, de bibelôs, de tapeçarias da mesma
época, cenário insípido que a dona-de-casa mais ignorante se esmera em armar, até à véspera,
nos hotéis de hoje, passando agora seus dias nos arquivos e bibliotecas, cenário em meio ao qual
a obra-prima que se contempla durante o jantar não provoca a mesma alegria embriagadora que
só se lhe deve exigir numa sala de museu, a qual simboliza melhor, com sua nudez e seu
despojamento de todas as particularidades, os espaços interiores em que o artista se abstraiu
para criar.
Infelizmente, esses lugares maravilhosos de onde a gente parte para um destino
longínquo, são igualmente lugares trágicos, pois, se ali se cumpre o milagre em virtude do qual os
lugares que ainda não tinham existência senão em nosso pensamento passarão a ser aqueles em
que iremos viver, por essa mesma razão é necessário renunciar, ao deixar a sala de espera, a
reencontrar logo o quarto familiar onde estávamos há pouco. É preciso perder toda a esperança
de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro emprestado por onde se
tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como o de Saint-Lazare,
onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um
desses imensos céus crus e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos
céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se
podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz.
Enquanto me contentara em avistar, do fundo da minha cama em Paris, a igreja persa de Balbec
em meio aos flocos de neve da tempestade, meu corpo não fizera qualquer objeção a essa
viagem. As objeções começaram apenas quando compreendera que estava de partida e que, na
noite da chegada, me conduziriam ao "meu" quarto, que lhe seria desconhecido. Sua revolta foi
tão mais profunda quando, na própria véspera da partida, eu soubera que minha mãe não nos
acompanharia, pois meu pai, retido no ministério até o momento em que partiria para a Espanha
com o Sr. de Norpois, tinha preferido alugar uma casa nos arredores de Paris. Aliás, a
contemplação de Balbec não me parecia menos desejável por ter de comprá-la ao preço de um
mal-estar; o qual, pelo contrário, me parecia representar e garantir a realidade da impressão que
ia procurar, impressão que nenhum espetáculo equivalente teria substituído, nenhum "panorama"
que eu pudesse ir ver sem por isso ser impedido até de voltar para dormir em minha cama. Não
era a primeira vez que percebia que as pessoas que amam não são as mesmas que desfrutam
dos prazeres. Julgava desejar tão profundamente Balbec que o médico espantando-se com meu
ar infeliz na manhã da partida, disse:
- Garanto-lhe que se tivesse a oportunidade de ter apenas oito dias para ir tomar ar fresco
num mar, não me faria de rogado. Você há de ver as corridas, as regatas; será ótimo.
Eu já sabia, e bem antes de ter ouvido a Berma, que, fosse qual fosse o obtido de meu
amor, sempre a encontraria ao cabo de uma penosa busca, durante a qual preciso sacrificar o
meu prazer a esse bem supremo, em vez de nele achar o prazer.
Minha avó, naturalmente, concebia nossa partida de modo um tanto diverso. Sempre
desejosa, como antigamente, de emprestar aos presentes algo que me dava um caráter artístico,
quisera, a fim de me ofertar dessa viagem, a "sensação" um tanto antiga, que seguíssemos o
caminho metade por trem e outra de carro, o trajeto que a Sra. de Sévigné percorrera de Paris a
"Lorient", passava por Chaulnes e pelo "Pont-Audemer". Porém minha avó fora obrigada a
renunciar esse projeto, devido à proibição de meu pai, que sabia que, quando minha avó
organizava uma viagem, com o objetivo de tirar dela o maior proveito possível, era inacreditável o
que se podia prever de trens perdidos, malas e das dores de garganta e infrações de
regulamentos. Mas, ao menos, tinha prazer de pensar que nunca, quando estivéssemos na praia,
estaríamos expostos a ser surpreendidos por quaisquer das que a sua querida Sévigné
denominava "Ia de carruagem", já que não conheceríamos ninguém em Balbec, pois Legrandin
não dera um cartão de visitas para a sua irmã. (Abstenção que não fora apreciada da mesma
maneira por minhas tias Céline e Victoire, que tinham conhecido quando era moça, aquela a quem
só chamavam até então de Renée de Camb para marcar a sua intimidade de antes, e ainda
conservavam presentes seus, que ornamentam um quarto e uma conversa, mas aos quais a
realidade de hoje não corresponde; julgavam se vingar da afronta que nos fizeram evitando
pronunciar, na casa da Sra. Legrandin mãe, o nome da filha, e, à saída, se limita felicitar-se com
frases como: "Não fiz alusões ao que sabes" e "Creio que compreenderam.")
Portanto, partiríamos simplesmente de Paris naquele trem de uma e vinte e dois minutos,
que já me parecia conhecido, de tanto o haver procurado um indicador das estradas de ferro,
onde sempre me inspirava a emoção e bem-aventurada ilusão da partida. Como a determinação
dos aspectos feitos em nossa imaginação, consiste antes na identidade dos desejos do que na
precisão das informações que temos a seu respeito, julgava eu com todos os detalhes aquele
prazer de viagem e não duvidava que experimentaria no vagão um prazer especial quando
começasse a entardecer, e que contando tal efeito de luz ao se aproximar uma certa estação; de
modo que revelando sempre em mim as imagens das mesmas cidades que eu desenvolvi.
Daquelas horas da tarde que ele atravessa, parecia-me diferente de todos os outros trens; e eu
acabava por dar, como ocorre muitas vezes quanto a uma pessoa que nunca vimos mas cuja
amizade nos apraz imaginar que conquistamos, uma fisionomia particular e imutável a esse
viajante artista e louro que me levaria pelo seu caminho, por acaso teria dado adeus junto à
catedral de Saint-Cloud, antes que ele se afastasse na direção do ocaso.
Como a minha avó não podia se resolvera ir assim "idiotamente" a Balbec, pararíamos por
24 horas na casa de uma de suas amigas, de onde eu voltaria a seguir viagem na mesma noite
para não incomodar e também de modo a ver no dia seguinte a igreja de Balbec, pois tínhamos
sabido que ficava muito longe de Balbec-Plage, e talvez não fosse possível ir até lá depois de ter
principiado o meu tratamento de banhos. Talvez me fosse menos penoso sentir que o objetivo
admirável de minha viagem estava situado antes da cruel primeira noite em que entraria numa
nova morada e teria de me resignar a ficar ali. Mas primeiro era necessário deixar a antiga; minha
mãe resolvera instalar-se naquele mesmo dia em Saint-Cloud, e tinha tomado, ou fingira que
tomara, todas as disposições necessárias para ir diretamente a Saint-Cloud depois de nos haver
deixado na estação, sem ter de passar de novo em casa, pois temia que eu, em vez de partir para
Balbec, quisesse voltar com ela. E, pretextando ter muito que fazer na casa que acabara de
alugar e de ter pouco tempo, mas na verdade para me poupar a crueldade dessa despedida,
decidira não estar conosco-até a partida do trem, quando, dissimulada até então nos vaivéns e
nos preparativos que a nada levam em definitivo, aparece bruscamente uma separação
impossível de suportar, ainda que já não seja possível de evitar, inteiramente concentrada num
imenso instante de lucidez impotente e suprema.
Pela primeira vez sentia ser possível que minha mãe vivesse sem mim, dedicada a outra
coisa, com outra vida diferente. Ia ficar com meu pai, cuja vida talvez achasse que eu complicava
e entristecia com minha saúde precária e meu nervosismo. E essa separação ainda mais me
desesperava porque pensava que provavelmente fosse para minha mãe o fim das sucessivas
decepções que lhe causara, que ela soubera calar, e que lhe fizeram compreender a dificuldade
de férias comuns; e talvez também a primeira tentativa de uma existência à qual começara a se
resignar para o futuro, à medida que os anos passavam para meu pai e para ela, existência em
que a veria muito menos, na qual, o que nem nos meus pesadelos me ocorria, ela seria uma
pessoa um pouco estranha para mim, como uma senhora que a gente vê entrar sozinha numa
casa onde eu não estaria, perguntando ao porteiro se não havia cartas minhas.
Mal pude responder ao empregado que quis segurar minha mala. Minha mãe tentava me
consolar com os meios que lhe pareciam mais eficazes. Achava que fingir não ver minha mágoa,
dela troçava com carinho:
- Ora, vamos; que diria a igreja de Balbec se soubesse que é com aspecto de infeliz que te
preparas para ir vê-la? É este o viajante extasiado de Ruskin? Aliás, hei de saber se estiveste à
altura das circunstâncias; eu mesma ainda estarei com o meu filhinho. Amanhã mesmo receberás
uma carta da minha filha - disse minha avó -, vejo-te como a Sra. de Sévigné: carta diante dos
olhos que não nos deixando um só instante.
Mamãe procurava distrair-me; perguntava o que iria encomendar para jantar, admirava
Françoise e cumprimentava-a pelo chapéu e pela capa a qual reconhecia, embora antigamente
lhe tivessem causado horror quando os vira igualzinhos, usados por minha tia-avó, o chapéu
encimado por um pássaro, capa ornamentada de azeviche e desenhos horrendos. Mas como a
capa bem gasta, Françoise mandara virá-la pelo avesso, ela exibia agora um tecido de bela cor.
Quanto ao pássaro, havia muito tempo que se quebrara e fora posto de lado. E, do mesmo modo
que às vezes é desconcertante encontrar refinamento que os artistas mais conscientes se
esforçam por obter, em alguma canção pop ou na fachada de uma casa de campo, que faz
desabrochar acima da porta uma flor branca ou cor de enxofre, justamente no ponto em que devia
estar assim Françoise com gosto infalível e ingênuo, soubera colocar naquele chapéu, agora
delicada, laçada de veludo e o laçarote de fitas que teriam encantado num quadro de Cheu ou de
Whistler.
Para remontar a um tempo mais antigo, a modéstia e a honestidade; muitas vezes
conferiam nobreza ao rosto da nossa velha criada, haviam alcançado os vestidos que, como
mulher reservada; mas sem baixeza, que "manter seu nível e conhecer seu lugar", ela voltara a
pôr para a viagem, a fim de se manter digna de ser vista conosco sem dar a impressão de querer
se colocar evidência.
Assim, com o pano cor de cereja, mas fanado, de sua capa e os botões sem rudeza do
seu casaco de pele, fazia pensar num desses retratos de Artita Bretanha pintados nos Livros de
Horas por um velho mestre, e nos quais tudo põe tão bem no seu posto, o sentimento do conjunto
é tão igualmente difundido em todas as partes, que a singularidade rica e desusada do vestuário
expõe a mesma gravidade piedosa dos olhos, dos lábios e das mãos. Não se poderia falar de
pensamento a propósito de Françoise. Ela não conhecia nada, naquele sentido total em que não
saber nada equivale a nada compreender, a não ser as raras verdades que o coração é capaz de
entender diretamente. O mundo imenso das ideias não existia para ela. Mas, diante da claridade
do olhar, das linhas delicadas do nariz, dos lábios, diante de todos esses testemunhos ausentes
em muitas dessas pessoas cultas, nas quais teriam significado a direção suprema, o nobre
desinteresse de uma alma de elite, a gente se sentia desconcertado como diante do olhar
inteligente e bondoso de um cão, ao qual, no entanto, sabemos serem estranhos todos os
conceitos dos homens, e poder-se-ia perguntar se não há entre esses outros irmãos humildes, os
camponeses, criaturas que sejam como os homens superiores da sociedade dos simples de
espírito, ou melhor, os que, condenados, por um destino injusto, a viver entre esses simples de
espírito, privados de luz; no entanto mais natural e essencialmente aparentados às naturezas de
elite do que a maioria das pessoas instruídas, são como que membros dispersos, extraviados,
privados de razão, da família sagrada, parentes, que não saíram da infância, das mais altas
inteligências, e a quem faltou, para terem talento, unicamente o saber-como se percebe, sem erro,
na claridade de seu olhar que, todavia, não se aplica a nada.
Minha mãe, vendo que eu mal continha as lágrimas, dizia:
"Régulo tinha o costume, nas grandes ocasiões... E depois, não é bonito fazer assim para
a mamãe." Citemos a Sra. de Sévigné, como a tua avó: "Vou ser obrigada a empregar toda a
coragem que tu não tens."
Lembrando-se que o afeto por outrem desvia as dores egoístas, tentava me animar
dizendo que sua viagem a Saint-Cloud seria tranquila, que estava contente com o fiacre que
reservara, que o cocheiro era muito bem educado e o carro confortável. Eu me esforçava por
sorrir a tais pormenores e inclinava a cabeça em sinal de aquiescência e satisfação. Mas isto só
servia para me representar com mais veracidade a partida de mamãe, e foi com o coração
apertado que a encarei como se ela já estivesse separada de mim, sob aquele chapéu de palha
redondo que comprara para usar na roça, com o vestido leve que pusera devido ao longo
percurso em dia muito quente, e que a transformavam em outra, já pertencente àquela Vila de
Montretout, onde não a veria.
Para evitar as crises de sufocação que a viagem me daria, o médico recomendara que
tomasse um pouco de cerveja ou de conhaque no momento de partir, a fim de me pôr nesse
estado que denominava "euforia", em que o sistema nervoso fica momentaneamente menos
vulnerável. Ainda não estava certo se o faria ou não, mas queria pelo menos que minha avó
reconhecesse, no caso de me decidir a fazê-lo, que eu procedia com sensatez e por motivo justo.
Assim, falei nisso a minha avó como se minha hesitação se limitasse ao local em que haveria de
beber álcool no refeitório da estação ou no vagão-restaurante. Porém logo, diante do ar de
censura da fisionomia de minha avó, do seu desejo de nem querer ouvir falar naquilo:
- Como! - exclamei, decidindo-me de súbito a beber, coisa agora necessária para provar
minha liberdade, visto que seu simples anúncio verbal não pudera passar sem protesto. - Como!
Sabe muito bem que estou doente, sabe o que o médico me disse e é este o conselho que me dá!
Quando expliquei meu mal-estar à minha avó, ela assumiu um ar tão contristado, tão bondoso, ao
responder:
- Mas então vai tomar logo essa cerveja, ou o conhaque, se é que isto vai te fazer bem.- Lancei-me nos seus braços e a cobri de beijos. E, se por fim fui beber no bar do trem, era por sentir que sem aquilo teria um acesso muito forte de sufocação, o que magoaria muito mais a minha avó.
- Mas então vai tomar logo essa cerveja, ou o conhaque, se é que isto vai te fazer bem.- Lancei-me nos seus braços e a cobri de beijos. E, se por fim fui beber no bar do trem, era por sentir que sem aquilo teria um acesso muito forte de sufocação, o que magoaria muito mais a minha avó.
Quando, na primeira estação, subi para o nosso compartimento, disse-lhe que estava
muito feliz por ir a Balbec, que sentia que tudo correria bem, que me habituaria depressa a estar
longe de mamãe, que aquele trem era agradável; que o gerente do bar e os demais empregados
eram muito simpáticos, de tal modo desejaria viajar mais seguidamente para poder revê-los.
Entretanto, essas notícias pareciam inspirar a minha avó o mesmo regozijo que a mim. Evitando
me disse:
- Talvez fosse melhor que cuidasses de dormir um pouco - e desviou para a janela;
tínhamos baixado a cortina que no entanto, não cobria todo o vidro de forma que o sol se
insinuava pela madeira envernizada da portinhola batendo sobre o estofado dos assentos a
mesma luz morna e dormente que cochilava clareiras lá fora, claridade que era como um anúncio
da vida em plena. Naturalmente muito mais convincente que as paisagens dos cartazes colocadas
nos altos compartimentos e cujos nomes, por esse motivo, eu não conseguia ler.
Mas, quando minha avó pensava que eu mantinha os olhos fechados a via por momentos,
por baixo de seu véu de grandes pintas pretas, lançar olhar; depois afastá-lo, e depois voltar a
olhar-me, como alguém que propõe esforçar por habituar-se a um exercício que lhe é penoso.
Então eu lhe falava, mas isso parecia não lhe agradar muito. No entanto, minha própria voz me
dava muito prazer, assim como os movimentos mais invisíveis e internos do meu corpo. Portanto,
tentava fazê-los durar, deixava cada uma de minhas inflexões prolongar-se por muito tempo nas
palavras, sentia que - um de meus olhares se encontrava muito bem onde quer que pousasse e aí
permanecesse mais tempo que de costume.
-Vamos, descansa - disse a minha avó. não podes dormir, lê alguma coisa. - E me passou
um volume da Sra. de Sévigné que abri, enquanto ela se absorvia nas Memórias da Sra. de
Beausergent. Ela não viajava sem um tomo de uma ou de outra. Eram suas duas escritoras escritoras
prediletas.
Sem mexer muito a cabeça naquele instante e experimentando grande prazer em manter
uma dada posição, fiquei segurando o livro da Sra. de Sévigné sem abaixar o olhar para vê-lo,
pois os olhos só tinham à sua frente o azul da janela. Mas parecia-me admirável contemplar esse
cortinado, e nem me incomodaria em responder a quem quisesse me tirar daquela contemplação
da cor azul do cortinado, talvez não por sua beleza e sim pela vivacidade que parecia eliminar a
tal ponto todas as cores que tivera diante de meus olhos; do dia em que nascera até o momento
em que acabara de engolir a bebida a qual começava a fazer efeito, que, em comparação com
aquele azul, todos os coloridos eram para mim tão baços, tão inúteis como o pode ser,
retrospectivamente, a escuridão para os cegos de nascença que são operados tardiamente afinal
as cores. Um velho empregado da estrada de ferro veio pedir nossas passagens. Os reflexos
prateados dos botões de metal de sua túnica não deixaram encantar. Desejei lhe pedir que
sentasse ao nosso lado, mas ele passou para outro vagão, e fiquei pensando com nostalgia na
vida dos ferroviários que, passando o tempo todo nas estradas de ferro, sem dúvida não
deixariam de ver um só dia aquele velho fiscal. O prazer que eu sentia em ver o cortinado azul e
em perceber que minha boca estava entreaberta começou por fim a diminuir. Quis mover-me e me
agitei um pouco; abri o livro que minha avó me estendera e pude fixar a atenção nas páginas
escolhidas ao acaso. Enquanto lia, senti crescer minha admiração pela Sra. de Sévigné. Cumpre
não nos deixarmos enganar pelas particularidades puramente formais, referentes a uma época e
à vida social de então, e que levam muitas pessoas a julgar que já fizeram o seu pouco de
Sévigné quando dizem:
"Dê-me suas ordens, querida" ou "Esse conde me pareceu possuir um pouco de espírito"
ou "A coisa mais bonita do mundo é pôr o feno para secar." Já a Sra. de Simiane pensava que se
parecia com a avó, Sra. de Sévigné, por ter escrito: "O Sr. de Ia Boulie vai às maravilhas, senhor,
e pode perfeitamente ouvir a notícia da própria morte", ou: "Oh! meu caro marquês, como me
agradou a sua carta! Como farei para respondê-la", ou ainda: "Senhor, parece que me deve uma
resposta e eu, caixas de tangerinas. Envio oito, outras irão depois... A terra nunca deu tanta
tangerina. Aparentemente, é para lhe agradar."
No mesmo estilo escreve cartas sobre a sangria, os limões, etc., imaginando que são cartas da Sra. de Sévigné. Porém minha avó, que chegara até estar por dentro, pelo amor aos seus, à natureza, ensinara-me a estimar suas verdadeiras belezas, que são bem diversas das outras. Deviam impressionar-me bastante, tanto mais que a Sra. de Sévigné é uma grande artista, da mesma família de um pintor que eu iria conhecer em Balbec e que teve uma influência tão profunda sobre minha visão das coisas, Elstir. Em Balbec, percebi que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma maneira que o pintor, ou seja, de acordo com nossas percepções, em vez de as explicar primeiro por sua causa. Mas já naquela tarde, no vagão, relendo a carta em que aparece o luar: "Não pude resistir à tentação, botei todas as minhas toucas e casacões que não eram necessários, fui para aquele passeio público onde o ar é bom como o do meu quarto; encontrei mil quimeras, monges brancos e negros; várias religiosas cinzentas e brancas; roupa branca atirada aqui e ali; homens amortalhados de pé contra árvores etc.", fiquei deslumbrado com o que teria chamado, um pouco mais tarde (pois ela não pinta as paisagens da mesma maneira que ele os caracteres?), o lado Dostoievski das Cartas da Sra. de Sévigné.
Volume 3
No mesmo estilo escreve cartas sobre a sangria, os limões, etc., imaginando que são cartas da Sra. de Sévigné. Porém minha avó, que chegara até estar por dentro, pelo amor aos seus, à natureza, ensinara-me a estimar suas verdadeiras belezas, que são bem diversas das outras. Deviam impressionar-me bastante, tanto mais que a Sra. de Sévigné é uma grande artista, da mesma família de um pintor que eu iria conhecer em Balbec e que teve uma influência tão profunda sobre minha visão das coisas, Elstir. Em Balbec, percebi que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma maneira que o pintor, ou seja, de acordo com nossas percepções, em vez de as explicar primeiro por sua causa. Mas já naquela tarde, no vagão, relendo a carta em que aparece o luar: "Não pude resistir à tentação, botei todas as minhas toucas e casacões que não eram necessários, fui para aquele passeio público onde o ar é bom como o do meu quarto; encontrei mil quimeras, monges brancos e negros; várias religiosas cinzentas e brancas; roupa branca atirada aqui e ali; homens amortalhados de pé contra árvores etc.", fiquei deslumbrado com o que teria chamado, um pouco mais tarde (pois ela não pinta as paisagens da mesma maneira que ele os caracteres?), o lado Dostoievski das Cartas da Sra. de Sévigné.
continua na página 100...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - a)
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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