quarta-feira, 12 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - a)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(a)

      Quando, dois anos mais tarde, chegara a uma quase total indiferença por Gilberte, parti com minha avó para Balbec. Quando experimentava o encantamento de um rosto novo, quando era com o auxílio de outra moça que esperava conhecer as catedrais góticas, os palácios e jardins da Itália, dizia comigo tristemente que o nosso amor, na medida em que significa o amor de uma determinada criatura, talvez não seja algo muito real, pois se associações de fantasias agradáveis ou dolorosas podem uni-lo por algum tempo a uma mulher até nos fazer imaginar que foi inspirado por ela de um modo necessário, em compensação, se nos libertamos voluntariamente, ou contra a vontade, dessas associações, este amor, como se pelo contrário fosse espontâneo e surgisse apenas de nós, renascesse para se doar a outra mulher. No entanto, no momento daquela partida para Balbec e durante os primeiros tempos de minha estada, minha indiferença ainda era apenas intermitente. Muitas vezes (visto que nossa vida é muito pouco cronológica, tantos anacronismos interferindo na sequência dos dias), eu estava vivendo naqueles dias em que amava Gilberte, anteriores à véspera ou à antevéspera. Então, não vê-la mais era-me de súbito muito doloroso, como o fora naquele tempo. O eu que a havia amado, já quase inteiramente substituído por um outro, ressurgia, e era-me restituído com mais frequência por algo fútil do que por uma coisa importante. Por exemplo, para antecipar a minha estada na Normandia, ouvi em Balbec um desconhecido, com quem cruzara no molhe, dizer:

- A família do diretor do ministério dos Correios...

     Ora (como não sabia então a influência que essa família iria ter na minha vida), essa frase deveria me parecer ociosa, porém me causou um vivo sofrimento, o sofrimento que em mim sentia um eu, abolido em grande parte há muito tempo, por estar separado de Gilberte. É que jamais voltara a pensar numa conversa que Gilberte tivera com o pai na minha presença, relativamente à família do "diretor do ministério dos Correios". Ora, as recordações de amor não fazem exceção às leis gerais da memória, elas próprias regidas pelas leis mais gerais do hábito. Como este enfraquece tudo, o que nos recorda melhor uma criatura é justamente o que tínhamos esquecido, porque era insignificante e assim lhe havíamos deixado toda sua força. Porque a melhor parte de nossa memória está fora de nós, numa brisa chuvosa, num cheiro de quarto fechado, ou no odor de uma primeira labareda, em toda parte encontramos de nós mesmos o que nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe nos fazer chorar ainda. Fora de nós? Erre para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. É somente graças a tal esquecimento que pode de vez em quando, reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face àquela como o era essa criatura, sofrer de novo, porque não somos mais nós mas ele, e é quem amava a pessoa que agora nos é indiferente. Em plena luz da mente habitual, as imagens do passado empalidecem aos poucos, vão se apagando, resta mais nada delas, não as encontraremos nunca mais. Ou melhor, não as traremos mais se algumas palavras (como "diretor do ministério dos Correios) não tivessem sido cuidadosamente trancadas no ouvido, assim como se na Biblioteca Nacional o exemplar de um livro que, sem isso, se arriscaria não encontrá-lo.
     Porém tal sofrimento e tal rebrotar do amor por Gilberte não foram longos que os que são sonhados, e desta vez ao contrário porque, em Balbec; hábito antigo já não estava ali para fazê-los durar. E, se tais efeitos dó parecem contraditórios, é que ele obedece a leis múltiplas. Em Paris, eu estava cada vez mais indiferente a Gilberte, graças ao hábito. A mudança de hábito, é, a momentânea cessação do Hábito, rematou a obra do Hábito quando parti! Balbec. Ele se enfraquece mas se estabiliza, traz a desagregação porém indefinidamente. Cada dia, desde muitos anos, eu vinha decalcando, bem o meu estado de alma sobre o da véspera. Em Balbec, uma cama nova com cabeceira me traziam todas as manhãs um desjejum bem diverso do de Paris. Devia mais alimentar os pensamentos de que se havia nutrido o meu amor por Gilberte; existem casos (é verdade que muito raros) em que o sedentarismo banaliza os dias, e o melhor modo de ganhar tempo é mudar de local. Minha vida em Balbec foi como a primeira saída de um convalescente que só espera por perceber que está curado.
      Sem dúvida, esta viagem a faríamos hoje de automóvel, achando que desse modo, se tornaria mais agradável. Ver-se-á que, realizada assim, seria mais verdadeira em certo sentido, visto que seguiríamos mais de perto, numa intimidade mais estreita, as diversas gradações pelas quais se muda a superfície dá enfim o prazer específico da viagem não está em poder pôr-se a caminho é quando nos sentimos cansados; é tornar a diferença entre a partida e a chegada tão insensível mas tão profunda quanto possível, em senti-la na sua rota intacta, bem como era no nosso pensamento quando nossa imaginação do lugar em que vivíamos até o âmago do lugar desejado, num salto, parecia menos miraculoso por franquear uma distância do que por unir as dualidades distintas da terra, levando-nos de um para outro nome, e que esquece (melhor que um passeio, onde não existe mais chegada, pois a gente vai onde quiser) a misteriosa operação que se cumpria nesses lugares as estações, que, por assim dizer, não fazem parte da cidade mas contêm a essência de sua personalidade, do mesmo modo que lhe mostram o nome numa tabuleta indicadora.
     Mas o nosso tempo, em todas as coisas, tem a mania de só querer mostrar aquilo de que se cerca na realidade, e, assim, suprimir o essencial, o ato do espírito que as isolou dessa realidade. "Apresenta-se" um quadro no meio de móveis, de bibelôs, de tapeçarias da mesma época, cenário insípido que a dona-de-casa mais ignorante se esmera em armar, até à véspera, nos hotéis de hoje, passando agora seus dias nos arquivos e bibliotecas, cenário em meio ao qual a obra-prima que se contempla durante o jantar não provoca a mesma alegria embriagadora que só se lhe deve exigir numa sala de museu, a qual simboliza melhor, com sua nudez e seu despojamento de todas as particularidades, os espaços interiores em que o artista se abstraiu para criar.
      Infelizmente, esses lugares maravilhosos de onde a gente parte para um destino longínquo, são igualmente lugares trágicos, pois, se ali se cumpre o milagre em virtude do qual os lugares que ainda não tinham existência senão em nosso pensamento passarão a ser aqueles em que iremos viver, por essa mesma razão é necessário renunciar, ao deixar a sala de espera, a reencontrar logo o quarto familiar onde estávamos há pouco. É preciso perder toda a esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro emprestado por onde se tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como o de Saint-Lazare, onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um desses imensos céus crus e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz. Enquanto me contentara em avistar, do fundo da minha cama em Paris, a igreja persa de Balbec em meio aos flocos de neve da tempestade, meu corpo não fizera qualquer objeção a essa viagem. As objeções começaram apenas quando compreendera que estava de partida e que, na noite da chegada, me conduziriam ao "meu" quarto, que lhe seria desconhecido. Sua revolta foi tão mais profunda quando, na própria véspera da partida, eu soubera que minha mãe não nos acompanharia, pois meu pai, retido no ministério até o momento em que partiria para a Espanha com o Sr. de Norpois, tinha preferido alugar uma casa nos arredores de Paris. Aliás, a contemplação de Balbec não me parecia menos desejável por ter de comprá-la ao preço de um mal-estar; o qual, pelo contrário, me parecia representar e garantir a realidade da impressão que ia procurar, impressão que nenhum espetáculo equivalente teria substituído, nenhum "panorama" que eu pudesse ir ver sem por isso ser impedido até de voltar para dormir em minha cama. Não era a primeira vez que percebia que as pessoas que amam não são as mesmas que desfrutam dos prazeres. Julgava desejar tão profundamente Balbec que o médico espantando-se com meu ar infeliz na manhã da partida, disse:

- Garanto-lhe que se tivesse a oportunidade de ter apenas oito dias para ir tomar ar fresco num mar, não me faria de rogado. Você há de ver as corridas, as regatas; será ótimo.

      Eu já sabia, e bem antes de ter ouvido a Berma, que, fosse qual fosse o obtido de meu amor, sempre a encontraria ao cabo de uma penosa busca, durante a qual preciso sacrificar o meu prazer a esse bem supremo, em vez de nele achar o prazer.
     Minha avó, naturalmente, concebia nossa partida de modo um tanto diverso. Sempre desejosa, como antigamente, de emprestar aos presentes algo que me dava um caráter artístico, quisera, a fim de me ofertar dessa viagem, a "sensação" um tanto antiga, que seguíssemos o caminho metade por trem e outra de carro, o trajeto que a Sra. de Sévigné percorrera de Paris a "Lorient", passava por Chaulnes e pelo "Pont-Audemer". Porém minha avó fora obrigada a renunciar esse projeto, devido à proibição de meu pai, que sabia que, quando minha avó organizava uma viagem, com o objetivo de tirar dela o maior proveito possível, era inacreditável o que se podia prever de trens perdidos, malas e das dores de garganta e infrações de regulamentos. Mas, ao menos, tinha prazer de pensar que nunca, quando estivéssemos na praia, estaríamos expostos a ser surpreendidos por quaisquer das que a sua querida Sévigné denominava "Ia de carruagem", já que não conheceríamos ninguém em Balbec, pois Legrandin não dera um cartão de visitas para a sua irmã. (Abstenção que não fora apreciada da mesma maneira por minhas tias Céline e Victoire, que tinham conhecido quando era moça, aquela a quem só chamavam até então de Renée de Camb para marcar a sua intimidade de antes, e ainda conservavam presentes seus, que ornamentam um quarto e uma conversa, mas aos quais a realidade de hoje não corresponde; julgavam se vingar da afronta que nos fizeram evitando pronunciar, na casa da Sra. Legrandin mãe, o nome da filha, e, à saída, se limita felicitar-se com frases como: "Não fiz alusões ao que sabes" e "Creio que compreenderam.")
      Portanto, partiríamos simplesmente de Paris naquele trem de uma e vinte e dois minutos, que já me parecia conhecido, de tanto o haver procurado um indicador das estradas de ferro, onde sempre me inspirava a emoção e bem-aventurada ilusão da partida. Como a determinação dos aspectos feitos em nossa imaginação, consiste antes na identidade dos desejos do que na precisão das informações que temos a seu respeito, julgava eu com todos os detalhes aquele prazer de viagem e não duvidava que experimentaria no vagão um prazer especial quando começasse a entardecer, e que contando tal efeito de luz ao se aproximar uma certa estação; de modo que revelando sempre em mim as imagens das mesmas cidades que eu desenvolvi. Daquelas horas da tarde que ele atravessa, parecia-me diferente de todos os outros trens; e eu acabava por dar, como ocorre muitas vezes quanto a uma pessoa que nunca vimos mas cuja amizade nos apraz imaginar que conquistamos, uma fisionomia particular e imutável a esse viajante artista e louro que me levaria pelo seu caminho, por acaso teria dado adeus junto à catedral de Saint-Cloud, antes que ele se afastasse na direção do ocaso.
      Como a minha avó não podia se resolvera ir assim "idiotamente" a Balbec, pararíamos por 24 horas na casa de uma de suas amigas, de onde eu voltaria a seguir viagem na mesma noite para não incomodar e também de modo a ver no dia seguinte a igreja de Balbec, pois tínhamos sabido que ficava muito longe de Balbec-Plage, e talvez não fosse possível ir até lá depois de ter principiado o meu tratamento de banhos. Talvez me fosse menos penoso sentir que o objetivo admirável de minha viagem estava situado antes da cruel primeira noite em que entraria numa nova morada e teria de me resignar a ficar ali. Mas primeiro era necessário deixar a antiga; minha mãe resolvera instalar-se naquele mesmo dia em Saint-Cloud, e tinha tomado, ou fingira que tomara, todas as disposições necessárias para ir diretamente a Saint-Cloud depois de nos haver deixado na estação, sem ter de passar de novo em casa, pois temia que eu, em vez de partir para Balbec, quisesse voltar com ela. E, pretextando ter muito que fazer na casa que acabara de alugar e de ter pouco tempo, mas na verdade para me poupar a crueldade dessa despedida, decidira não estar conosco-até a partida do trem, quando, dissimulada até então nos vaivéns e nos preparativos que a nada levam em definitivo, aparece bruscamente uma separação impossível de suportar, ainda que já não seja possível de evitar, inteiramente concentrada num imenso instante de lucidez impotente e suprema.
     Pela primeira vez sentia ser possível que minha mãe vivesse sem mim, dedicada a outra coisa, com outra vida diferente. Ia ficar com meu pai, cuja vida talvez achasse que eu complicava e entristecia com minha saúde precária e meu nervosismo. E essa separação ainda mais me desesperava porque pensava que provavelmente fosse para minha mãe o fim das sucessivas decepções que lhe causara, que ela soubera calar, e que lhe fizeram compreender a dificuldade de férias comuns; e talvez também a primeira tentativa de uma existência à qual começara a se resignar para o futuro, à medida que os anos passavam para meu pai e para ela, existência em que a veria muito menos, na qual, o que nem nos meus pesadelos me ocorria, ela seria uma pessoa um pouco estranha para mim, como uma senhora que a gente vê entrar sozinha numa casa onde eu não estaria, perguntando ao porteiro se não havia cartas minhas.
      Mal pude responder ao empregado que quis segurar minha mala. Minha mãe tentava me consolar com os meios que lhe pareciam mais eficazes. Achava que fingir não ver minha mágoa, dela troçava com carinho:

- Ora, vamos; que diria a igreja de Balbec se soubesse que é com aspecto de infeliz que te preparas para ir vê-la? É este o viajante extasiado de Ruskin? Aliás, hei de saber se estiveste à altura das circunstâncias; eu mesma ainda estarei com o meu filhinho. Amanhã mesmo receberás uma carta da minha filha - disse minha avó -, vejo-te como a Sra. de Sévigné: carta diante dos olhos que não nos deixando um só instante.

     Mamãe procurava distrair-me; perguntava o que iria encomendar para jantar, admirava Françoise e cumprimentava-a pelo chapéu e pela capa a qual reconhecia, embora antigamente lhe tivessem causado horror quando os vira igualzinhos, usados por minha tia-avó, o chapéu encimado por um pássaro, capa ornamentada de azeviche e desenhos horrendos. Mas como a capa bem gasta, Françoise mandara virá-la pelo avesso, ela exibia agora um tecido de bela cor. Quanto ao pássaro, havia muito tempo que se quebrara e fora posto de lado. E, do mesmo modo que às vezes é desconcertante encontrar refinamento que os artistas mais conscientes se esforçam por obter, em alguma canção pop ou na fachada de uma casa de campo, que faz desabrochar acima da porta uma flor branca ou cor de enxofre, justamente no ponto em que devia estar assim Françoise com gosto infalível e ingênuo, soubera colocar naquele chapéu, agora delicada, laçada de veludo e o laçarote de fitas que teriam encantado num quadro de Cheu ou de Whistler.
      Para remontar a um tempo mais antigo, a modéstia e a honestidade; muitas vezes conferiam nobreza ao rosto da nossa velha criada, haviam alcançado os vestidos que, como mulher reservada; mas sem baixeza, que "manter seu nível e conhecer seu lugar", ela voltara a pôr para a viagem, a fim de se manter digna de ser vista conosco sem dar a impressão de querer se colocar evidência.
     Assim, com o pano cor de cereja, mas fanado, de sua capa e os botões sem rudeza do seu casaco de pele, fazia pensar num desses retratos de Artita Bretanha pintados nos Livros de Horas por um velho mestre, e nos quais tudo põe tão bem no seu posto, o sentimento do conjunto é tão igualmente difundido em todas as partes, que a singularidade rica e desusada do vestuário expõe a mesma gravidade piedosa dos olhos, dos lábios e das mãos. Não se poderia falar de pensamento a propósito de Françoise. Ela não conhecia nada, naquele sentido total em que não saber nada equivale a nada compreender, a não ser as raras verdades que o coração é capaz de entender diretamente. O mundo imenso das ideias não existia para ela. Mas, diante da claridade do olhar, das linhas delicadas do nariz, dos lábios, diante de todos esses testemunhos ausentes em muitas dessas pessoas cultas, nas quais teriam significado a direção suprema, o nobre desinteresse de uma alma de elite, a gente se sentia desconcertado como diante do olhar inteligente e bondoso de um cão, ao qual, no entanto, sabemos serem estranhos todos os conceitos dos homens, e poder-se-ia perguntar se não há entre esses outros irmãos humildes, os camponeses, criaturas que sejam como os homens superiores da sociedade dos simples de espírito, ou melhor, os que, condenados, por um destino injusto, a viver entre esses simples de espírito, privados de luz; no entanto mais natural e essencialmente aparentados às naturezas de elite do que a maioria das pessoas instruídas, são como que membros dispersos, extraviados, privados de razão, da família sagrada, parentes, que não saíram da infância, das mais altas inteligências, e a quem faltou, para terem talento, unicamente o saber-como se percebe, sem erro, na claridade de seu olhar que, todavia, não se aplica a nada.
     Minha mãe, vendo que eu mal continha as lágrimas, dizia:

"Régulo tinha o costume, nas grandes ocasiões... E depois, não é bonito fazer assim para a mamãe." Citemos a Sra. de Sévigné, como a tua avó: "Vou ser obrigada a empregar toda a coragem que tu não tens."

     Lembrando-se que o afeto por outrem desvia as dores egoístas, tentava me animar dizendo que sua viagem a Saint-Cloud seria tranquila, que estava contente com o fiacre que reservara, que o cocheiro era muito bem educado e o carro confortável. Eu me esforçava por sorrir a tais pormenores e inclinava a cabeça em sinal de aquiescência e satisfação. Mas isto só servia para me representar com mais veracidade a partida de mamãe, e foi com o coração apertado que a encarei como se ela já estivesse separada de mim, sob aquele chapéu de palha redondo que comprara para usar na roça, com o vestido leve que pusera devido ao longo percurso em dia muito quente, e que a transformavam em outra, já pertencente àquela Vila de Montretout, onde não a veria. 
      Para evitar as crises de sufocação que a viagem me daria, o médico recomendara que tomasse um pouco de cerveja ou de conhaque no momento de partir, a fim de me pôr nesse estado que denominava "euforia", em que o sistema nervoso fica momentaneamente menos vulnerável. Ainda não estava certo se o faria ou não, mas queria pelo menos que minha avó reconhecesse, no caso de me decidir a fazê-lo, que eu procedia com sensatez e por motivo justo. Assim, falei nisso a minha avó como se minha hesitação se limitasse ao local em que haveria de beber álcool no refeitório da estação ou no vagão-restaurante. Porém logo, diante do ar de censura da fisionomia de minha avó, do seu desejo de nem querer ouvir falar naquilo:

- Como! - exclamei, decidindo-me de súbito a beber, coisa agora necessária para provar minha liberdade, visto que seu simples anúncio verbal não pudera passar sem protesto. - Como! Sabe muito bem que estou doente, sabe o que o médico me disse e é este o conselho que me dá! Quando expliquei meu mal-estar à minha avó, ela assumiu um ar tão contristado, tão bondoso, ao responder:
- Mas então vai tomar logo essa cerveja, ou o conhaque, se é que isto vai te fazer bem.- Lancei-me nos seus braços e a cobri de beijos. E, se por fim fui beber no bar do trem, era por sentir que sem aquilo teria um acesso muito forte de sufocação, o que magoaria muito mais a minha avó.

     Quando, na primeira estação, subi para o nosso compartimento, disse-lhe que estava muito feliz por ir a Balbec, que sentia que tudo correria bem, que me habituaria depressa a estar longe de mamãe, que aquele trem era agradável; que o gerente do bar e os demais empregados eram muito simpáticos, de tal modo desejaria viajar mais seguidamente para poder revê-los. Entretanto, essas notícias pareciam inspirar a minha avó o mesmo regozijo que a mim. Evitando me disse:

- Talvez fosse melhor que cuidasses de dormir um pouco - e desviou para a janela; tínhamos baixado a cortina que no entanto, não cobria todo o vidro de forma que o sol se insinuava pela madeira envernizada da portinhola batendo sobre o estofado dos assentos a mesma luz morna e dormente que cochilava clareiras lá fora, claridade que era como um anúncio da vida em plena. Naturalmente muito mais convincente que as paisagens dos cartazes colocadas nos altos compartimentos e cujos nomes, por esse motivo, eu não conseguia ler.

      Mas, quando minha avó pensava que eu mantinha os olhos fechados a via por momentos, por baixo de seu véu de grandes pintas pretas, lançar olhar; depois afastá-lo, e depois voltar a olhar-me, como alguém que propõe esforçar por habituar-se a um exercício que lhe é penoso. Então eu lhe falava, mas isso parecia não lhe agradar muito. No entanto, minha própria voz me dava muito prazer, assim como os movimentos mais invisíveis e internos do meu corpo. Portanto, tentava fazê-los durar, deixava cada uma de minhas inflexões prolongar-se por muito tempo nas palavras, sentia que - um de meus olhares se encontrava muito bem onde quer que pousasse e aí permanecesse mais tempo que de costume.

-Vamos, descansa - disse a minha avó. não podes dormir, lê alguma coisa. - E me passou um volume da Sra. de Sévigné que abri, enquanto ela se absorvia nas Memórias da Sra. de Beausergent. Ela não viajava sem um tomo de uma ou de outra. Eram suas duas escritoras escritoras prediletas.

      Sem mexer muito a cabeça naquele instante e experimentando grande prazer em manter uma dada posição, fiquei segurando o livro da Sra. de Sévigné sem abaixar o olhar para vê-lo, pois os olhos só tinham à sua frente o azul da janela. Mas parecia-me admirável contemplar esse cortinado, e nem me incomodaria em responder a quem quisesse me tirar daquela contemplação da cor azul do cortinado, talvez não por sua beleza e sim pela vivacidade que parecia eliminar a tal ponto todas as cores que tivera diante de meus olhos; do dia em que nascera até o momento em que acabara de engolir a bebida a qual começava a fazer efeito, que, em comparação com aquele azul, todos os coloridos eram para mim tão baços, tão inúteis como o pode ser, retrospectivamente, a escuridão para os cegos de nascença que são operados tardiamente afinal as cores. Um velho empregado da estrada de ferro veio pedir nossas passagens. Os reflexos prateados dos botões de metal de sua túnica não deixaram encantar. Desejei lhe pedir que sentasse ao nosso lado, mas ele passou para outro vagão, e fiquei pensando com nostalgia na vida dos ferroviários que, passando o tempo todo nas estradas de ferro, sem dúvida não deixariam de ver um só dia aquele velho fiscal. O prazer que eu sentia em ver o cortinado azul e em perceber que minha boca estava entreaberta começou por fim a diminuir. Quis mover-me e me agitei um pouco; abri o livro que minha avó me estendera e pude fixar a atenção nas páginas escolhidas ao acaso. Enquanto lia, senti crescer minha admiração pela Sra. de Sévigné. Cumpre não nos deixarmos enganar pelas particularidades puramente formais, referentes a uma época e à vida social de então, e que levam muitas pessoas a julgar que já fizeram o seu pouco de Sévigné quando dizem:

"Dê-me suas ordens, querida" ou "Esse conde me pareceu possuir um pouco de espírito" ou "A coisa mais bonita do mundo é pôr o feno para secar." Já a Sra. de Simiane pensava que se parecia com a avó, Sra. de Sévigné, por ter escrito: "O Sr. de Ia Boulie vai às maravilhas, senhor, e pode perfeitamente ouvir a notícia da própria morte", ou: "Oh! meu caro marquês, como me agradou a sua carta! Como farei para respondê-la", ou ainda: "Senhor, parece que me deve uma resposta e eu, caixas de tangerinas. Envio oito, outras irão depois... A terra nunca deu tanta tangerina. Aparentemente, é para lhe agradar."

     No mesmo estilo escreve cartas sobre a sangria, os limões, etc., imaginando que são cartas da Sra. de Sévigné. Porém minha avó, que chegara até estar por dentro, pelo amor aos seus, à natureza, ensinara-me a estimar suas verdadeiras belezas, que são bem diversas das outras. Deviam impressionar-me bastante, tanto mais que a Sra. de Sévigné é uma grande artista, da mesma família de um pintor que eu iria conhecer em Balbec e que teve uma influência tão profunda sobre minha visão das coisas, Elstir. Em Balbec, percebi que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma maneira que o pintor, ou seja, de acordo com nossas percepções, em vez de as explicar primeiro por sua causa. Mas já naquela tarde, no vagão, relendo a carta em que aparece o luar: "Não pude resistir à tentação, botei todas as minhas toucas e casacões que não eram necessários, fui para aquele passeio público onde o ar é bom como o do meu quarto; encontrei mil quimeras, monges brancos e negros; várias religiosas cinzentas e brancas; roupa branca atirada aqui e ali; homens amortalhados de pé contra árvores etc.", fiquei deslumbrado com o que teria chamado, um pouco mais tarde (pois ela não pinta as paisagens da mesma maneira que ele os caracteres?), o lado Dostoievski das Cartas da Sra. de Sévigné.

continua na página 100...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - a)

Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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