segunda-feira, 24 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - g)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(g)

continuando...

      No dia em que a Sra. de Villeparisis nos levou a Carqueville, àquela igreja coberta de hera de que nos havia falado e que, edificada um outeiro, que domina a aldeia, o rio que a atravessa e que manteve sua ponte da Idade Média. Minha avó, pensando que eu gostaria de permanecer sozinho parado olhando o monumento, propôs à amiga irem ambas lanchar na confeitaria; na praça via perfeitamente dali e que, com sua pátina dourada, era como uma outra um objeto bem antigo. Combinou-se que eu iria encontrá-las aí. Para uma igreja no bloco de verdura que tinha à minha frente, foi preciso um esforço que me pôs mais em contato com a noção de igreja; com efeito, do modo que esses estudantes que apreendem mais completamente se fazem uma frase quando são obrigados, por meio de um exercício de versão; ou a despojá-la das formas a que estão habituados, essa noção de igreja, de que precisava ao me ver diante de torres que se davam a conhecer por si mesmas; agora era obrigado a chamar constantemente em meu auxílio para não me esquecer que o arco desse punhado de erva era o de uma vidraça ogival; ali, que a saliência das folhas era devida ao relevo de um capitel. Mas então soprou um ventinho, fazendo estremecer o pórtico móvel que formava redemoinhos dos trêmulos como ondas de luz; as folhas se agitavam umas contra às outras; a fachada vegetal, toda trêmula, arrastava consigo, acariciando os pilares ondulantes e fugitivos.
      Ao deixar a igreja, vi, diante da velha ponte, moças da aldeia que sem dúvida por ser domingo, estavam muito enfeitadas, interpelando os rapazes que por ali passavam. Menos bem vestida que as outras, mas parecendo ter uma certa ascendência; pois mal respondia ao que elas lhe falavam, com ar mais grave e voluntarioso; uma outra, alta, meio sentada no retiro da ponte, de pernas penduradas, tinha à sua frente um cesto cheio de peixes, provavelmente acabara de pescar. Era de pele amorenada, olhos suaves com olhar desdenhoso para tudo o que a rodeava; nariz pequeno e muito fino. Meus olhos pousaram em sua pele e, a rigor, meus lábios podiam crer que haviam seguido seus olhos. Mas não era apenas o seu corpo o que eu atingia, era igualmente a pessoa que nele vivia e com a qual estabelece uma espécie de contato quando chamamos sua atenção, e na qual como que penetramos ao lhe sugerir uma idéia. O ser interior da bela pescadora parecia ainda estar cerrado para um duvidoso que ali tivesse penetrado, mesmo depois de ter percebido minha imagem refletir-se furtivamente no espelho de seus olhos, conforme um indício de refração que me era tão desconhecido como se me houvesse colocado um visual de uma corça. Mas, da mesma forma que não me bastaria que sorvessem prazer nos seus lábios, mas que igualmente lhe dessem esse prazer; assim também desejaria que a ideia de minha imaginação entrasse naquele ser, que a ele se prendesse, não só atraísse sua atenção sobre mim, como a sua admiração, seu desejo, fazendo com que mantivesse minha lembrança até o dia em que pudesse reencontrá-la. Enquanto isso, via a alguns passos dali o lugar em que devia me esperar o carro da Sra. de Villeparisis. Só dispunha de um momento; e já sentia que as moças começavam a rir por me verem parado daquele jeito. Tinha cinco francos no bolso. Tirei-os e, antes de explicar à linda jovem o serviço de que ia encarregá-la, para ter mais chances de que reparasse em mim, ergui por um instante a moeda à altura de seus olhos.

- Visto que parece ser daqui. - disse à pescadora - poderia ter a bondade de me fazer um favor? Chegar a uma confeitaria que dizem que há numa praça mas não sei onde, e ali deve haver um carro à minha espera. Preste atenção: para evitar confusões, pergunte se é o carro da Sra. marquesa de Villeparisis. Aliás, vai ver logo qual é; tem dois cavalos.

      Era isto o que eu queria que ela soubesse para fazer uma alta ideia de mim. Mas, quando pronunciei as palavras "marquesa" e "dois cavalos", experimentei um súbito sossego. Vi que a pescadora se lembraria de mim e que se dissipava, junto com meu medo de nunca mais vê-la, uma parte do meu desejo de reencontrá-la. Parecia-me que acabava de tocar sua pessoa com lábios invisíveis e que lhe agradara. Essa violenta conquista do seu espírito, essa posse imaterial, fizeram-na perder tanto mistério como o teria feito a posse física.
      Descemos até Hudimesnil; de súbito invadiu-me aquela profunda felicidade que quase não sentia desde o tempo de Combray, felicidade análoga à que me haviam dado, entre outros, os campanários de Martinville. Mas desta vez permaneceu incompleta. Acabava de ver, num dos lados da estrada, na encosta por onde íamos, três árvores que deviam servir de pórtico a uma alameda encoberta, formando um desenho que já não era a primeira vez que via; não podia reconhecer o local de onde pareciam ter se destacado, mas sentia que me fora familiar antigamente. De modo que, tendo meu espírito vacilado entre um ano bem remoto e o momento presente, também vacilaram os arredores de Balbec, e perguntei-me se todo aquele passeio não seria uma ficção. Balbec um lugar onde nunca estivera a não ser na imaginação, a Sra. de Villeparisis um personagem de romance e as três velhas árvores a realidade que descobrimos ao erguer os olhos do livro que estamos lendo e que descreve um meio ao qual nos pareceu que tínhamos sido de fato transportados.
      Contemplava as três árvores; via-as muito bem, mas meu espírito sentia que ocultavam algo que não conseguia apreender, como ocorre com os objetos colocados muito longe de nossos dedos, e que, mesmo que estendamos o braço, não fazemos mais que acariciar, sem poder agarrá-los. Então a gente descansa por um momento, para depois estender o braço ainda com mais força e tentar chegar mais adiante. Mas, para que meu espírito pudesse fazer o mesmo, tomar impulso era necessário que eu estivesse sozinho. Como gostaria de poder me isolar da mesma forma que o fazia em meus passeios para os lados de Guermantes, quando me separava de meus pais! Parecia-me até que deveria fazê-lo. Reconhecia o gênero de prazer que requer, na verdade, um certo esforço da mente sobressaindo de si mesma; mas muito grato em comparação com as medíocres alegrias do abandono e da renúncia. Tal prazer, cujo objeto era apenas pressentido e que eu mesmo tinha que criar, experimentava-o raras vezes apenas, mas, de cada vez, parecia-me que quaisquer coisas ocorridas no intervalo não tinham importância quase, e que era limitante em sua realidade, poderia enfim começar uma vida verdadeira. Por um momento a mão diante dos olhos para poder fechá-los sem que a Sra. de Villeparisis notasse. Permaneci sem pensar em nada e em breve, com o pensamento concentrado, impulsionado com mais força, saltei na direção daquelas três árvores, ou nessa direção interior em cuja extremidade eu as via em mim mesmo; senti por detrás delas a presença de um objeto conhecido, porém vago, o qual pude atrair até mim. Todavia, todas as três, à medida que o carro avançava, iam aproximando. Onde as teria visto já? Não havia, nos arredores de Combray nenhum lugar onde uma alameda se abrisse daquele jeito. O local que elas me davam também não se situava naquele campo alemão aonde fora certa vez numa estação de águas com minha avó. Por acaso, seria preciso crer que em prol de uns anos já bem remotos da minha vida, a tal ponto que a paisagem, rodeava já se apagara inteiramente da memória e que, como essas páginas a gente encontra, de súbito, emocionado, num livro que pensava nunca ter lido, as únicas coisas que sobrenadavam do livro esquecido de minha primeira infância? Ou, ao contrário, não pertenceriam apenas à essas paisagens de sonho, se mesmas, ao menos para mim, a quem o seu aspecto estranho não parecia objetivação, em meu sono, do esforço que eu fazia durante a vigília, alcançar o mistério num lugar atrás de cuja aparência eu o pressentia, acontecera tantas vezes nos passeios para os lados de Guermantes, seja para reintroduzir esse mistério em um lugar que desejara conhecer e que me parecia superficial desde que o conhecera, como Balbec? Não seriam mais que uma imagem totalmente nova, destacada de um sonho da noite precedente mais apagada que me parecia vir de muito mais longe? Ou então talvez nunca tivesse visto, e ocultavam sob si mesmos, como aquelas árvores, como a verdura que eu vira no caminho de Guermantes, um sentido tão obscuro, de decifrar como um passado longínquo, de modo que, solicitado pode aprofundar um pensamento, pensava que reconhecia uma lembrança? Por acaso não continham pensamento algum e era um cansaço da minha vista que me fazia vê-los duplos no tempo como às vezes vemos duplicadamente? Não sabia. Entretanto, vinham em minha direção, talvez aparição mística ronda de bruxas, ou de normas que me propunham seus oráculos. Eu acreditei que eram fantasmas do passado, bons companheiros de minha infância; amigos desaparecidos que invocavam as nossas comuns lembranças. O mesmo que sombras, pareciam como que me pediam que as levasse comigo, que os devolvesse a vida. Em seus singelos gestos singelos e fogosos percebia eu a impotente pena de um ser amado que perdeu o uso da palavra e se dá conta de que não poderá dizer o que quer e que nós não podemos adivinhar. E numa encruzilhada o cocheiro os deixou pra trás. O cocheiro que me arrastava em direção oposta do único que eu considerava como certo; do único que me fizera feliz de verdade e parecia ser essa a minha vida.
      Vi como se distanciavam as árvores, agitando desesperadamente seus braços, como se me dissessem: ''O que você não aprender hoje de nós, nunca o poderá saber. Se nos deixar cair outra vez nesse caminho, que desde o fundo queríamos elevar à sua altura, toda uma parte de si mesmo que nós levávamos voltará para sempre a um nada.''
      Com efeito, mesmo que mais adiante encontrasse outra vez, esse nível de prazer e de inquietação que acabava de sentir, numa noite em que me entregasse à ele – não seria tarde, porém para sempre – pois, nunca soube o que queriam me trazer essas árvores, nem onde as tinha visto. E quando o cocheiro mudou de direção, dei-lhes as costas e deixei de vê-las; enquanto que a senhora de Villeparisis perguntava-me porque eu estava tão preocupado; sentia me tão triste como se acabasse de morrer um grande amigo, de morrer eu mesmo, de renegar a um morto ou à Deus.
      Era hora de pensar na volta. A senhora Villeparisis que sentia a Natureza mais friamente do que minha avó; porém com sentido de somente apreciar museus e palácios aristocráticos, a beleza majestosa; sensível à certas coisas antigas; dizia ao cocheiro que voltasse pelo mesmo caminho que veio de Balbec; que era muito pouco frequentado, mas que tinha árvores dos dois lados e nos pareciam admiráveis.
     Quando já conhecíamos bem essa estrada antiga voltávamos, para variar, se é que à ida já não passávamos por ali, por outro caminho que cruzava os bosques do Chantereine e Canteloup. A invisibilidade dos inumeráveis pássaros que se respondiam de árvore a árvore por todos lados dava a mesma impressão de descanso que quando se têm os olhos fechados. Encadeado à minha banqueta do carro como Prometeo à sua rocha, ia eu escutando àquelas Oceánidas. E quando via por acaso a algum dos pássaros passar por detrás de umas folhas, havia tão pouca relação aparente entre ele e seus gorjeios, que eu não resistia a ver nesse pequeno corpo saltitante, assustado e cego, ser a causa dos cantos.
      Aquele caminho era igual a tantos outros que só encontramos na França. Subia uma encosta bastante inclinada e logo descia, pouco a pouco, por um trecho mais largo. Aquele momento não me parecia muito atraente; estava contente apenas por voltar. Mas, depois, tornou se motivo de alegrias; porque me ficou na lembrança como recordação, aonde iam dar essas estradas; semelhantes por onde haveria de passar mais tarde a passeio. A viagem, sem solução de continuidade e que, graças a ela, poderia ir com com meu coração. Pois, desde que o carro ou o automóvel entravam numa estradas que desse a impressão de continuar aquela que eu percorrera com de Villeparisis, minha consciência atual se acharia de imediato apoiada, em meu passado mais recente, estando abolidos todos os anos intermediários de impressões que eu tivera naqueles fins de tarde, passeando pelas cercados de Balbec; quando as folhas cheiravam bem e se erguia a névoa, como além da próxima se vislumbrava o pôr-do-sol feito uma outra localidade distante, e que não era possível atingir na mesma tarde. Tais impressões, às quais experimentava agora, em outras regiões e estradas semelhantes, ficaram sendo todas as sensações acessórias de livre respiração, de curiosidade, de apetite e de alegria, que lhe eram comuns, excluindo todas as outras impressões se reforçavam, assumiam a consistência de uma espécie que compartilha prazer, quase de um quadro de vida que aliás muito raramente voltaria a ver; mas nos quais despertadas recordações punha em meio à realidade material percebida, uma porção bem ampla de realidade evocada, imaginada, inatingível que me dava, em meio a essas regiões que atravessava, algo mais que um momento de estética, um desejo fugaz, porém exaltado, de ali viver para sempre, quantas vezes, apenas por ter aspirado a fragrância de uma folhagem, ou estar sentado num carro defronte à Sra. de Villeparisis; de cruzarmos Luxemburgo, que lhe acenava do seu carro, e voltar para jantar no Hotel; era como que uma felicidade inefável que nem o presente nem futuro podem nos proporcionar e que só saboreamos uma vez na vida! Muitas vezes a noite já caíra antes que estivéssemos de volta; e recitava à Sra. de Villeparisis, mostrando-lhe a lua no céu, uma bela expressão de Chateaubriand, de Vigny ou de Victor Hugo:

"Ela espalhava o velho segredo de melancolia" ou "Chorando como Diana junto de suas fontes" ou ainda "A era nupcial, augusta e solene".

- E acha isso bonito? perguntava-me a marquesa. - Genial, como dizer? Pois lhe direi que sempre me espanta ver que se levam agora a sério as coisas que os amigos desses cavalheiros, mesmo fazendo inteiros a seus méritos, eram os primeiros a ridicularizar. Não se prodigalizava, o qualificativo de gênio, pois, se agora a gente diz a um escritor que ele talento, ele se sente injuriado. Você me cita uma grande frase de Chateaubriand sobre o luar. Vai ver, agora, como tenho meus motivos para ser imune às expressões do Sr. de Chateaubriand vinha seguidas vezes à casa de meu pai. De resto, agradável quando não havia gente de fora, porque então se mostrava divertido. Porém, quando havia audiência, começava a fazer pose e se tornava ridículo; diante de meu pai, afirmava que havia atirado sua demissão à cara do rei e que dirigira o conclave, esquecendo que meu pai fora por ele encarregado de suplicar ao rei que voltasse a admiti-lo e ouvira fazê-lo acerca da eleição do papa os prognósticos mais descabidos. Era necessário ouvir, sobre esse famoso conclave, o Sr. de Blacas, que era pessoa bem diferente do Sr. de Chateaubriand! Quanto às frases deste sobre o luar, simplesmente se tornaram uma instituição lá em casa. Cada vez que havia luar sobre o castelo, quando tínhamos um novo convidado, nós lhe aconselhávamos que levasse o Sr. de Chateaubriand para tomar um pouco de ar depois da refeição. Quando voltavam, meu pai não deixava de chamar à parte o convidado:

"- O Sr. de Chateaubriand foi eloquente?
- Claro que sim. 
- E lhe falou do luar?
-Sim, como sabe?
-Espere, e não lhe disse... (e citava-lhe a frase)?
-Sim, mas por que o mistério...? 
- E até lhe falou do luar na campanha romana. 
- Mas o senhor é feiticeiro?"

     Meu pai não era feiticeiro, mas o Sr. de Chateaubrind se contentava em servir sempre o mesmo prato já preparado.
     Ao nome de Vigny, ela começou a rir:

- Aquele que dizia: "Eu sou o conde Alfred de Vigny." A gente pode ou não ser conde, isto não tem a menor importância.

     No entanto, achava que deveria ter alguma, pois acrescentava:

- Em primeiro lugar, não estou certa de que o fosse; e, de qualquer modo, era de pequena linhagem esse senhor que falou em seus versos de sua "viseira de nobre". Como tem bom gosto e é interessante para o leitor! É como Musset, simples burguês parisiense, que exclamava com ênfase: "O falcão de ouro que enfeita meu capacete." Um grão-senhor de verdade nunca diz dessas coisas. Pelo menos Musset possuía talento como poeta. Mas, tirando Cinq-Mars, nunca pude ler nada do Sr. de Vigny, o tédio me faz cair o livro das mãos. O Sr. Molé, dotado de todo o espírito e tato ausentes no Sr. de Vigny, empregou-os muito bem ao recebê-lo na Academia. Como? Não conhece o seu discurso? É uma obra-prima de malícia e impertinência.

     Censurava em Balzac, espantando-se que seus sobrinhos o admirassem, o ter pretendido pintar uma sociedade "em que não era recebido", e sobre a qual contou mil inverossimilhanças. Quanto a Victor Hugo, ela nos dizia que o Sr. De Bouillon, pai dela, que tinha muitos amigos entre a juventude romântica, graças a eles comparecera à estreia de Hernani, mas não pudera ficar até o fim, tão ridículos que achara os versos desse escritor talentoso porém exagerado, que só recebera o título de grande poeta em virtude de um contrato ajustado e como recompensa pela indulgência interessada que tivera para com as perigosas divagações dos socialistas.
      Já víamos o hotel e suas luzes, tão hostis na primeira noite, a da chegada; agora suaves e protetoras, anunciando o lar. E, quando o carro chegava à porta, o Porteiro, os grooms e o lift, apressados, ingênuos, vagamente inquietos com o nosso atraso, amontoados na escadaria à nossa espera, já tornados familiares, eram como essas criaturas que mudam tantas vezes no decurso de nossa vida e como nós próprios mudamos, mas nas quais encontramos o prazer de fiel e amistosamente refletidos, enquanto durar o tempo em que são o espelho de nossos hábitos. Os preferimos aos amigos que não vemos há muito tempo, porque contêm, em maior proporção que aqueles, algo do que somos na atualidade. Somente aquele que ficara exposto ao sol o dia inteiro voltara para dentro a suportar a friagem da noite, e, todo envolto em lã, com a cabeleira escorrida e a flor curiosamente rosada das faces, no meio do hall envidraçado; lembrava uma planta de estufa protegida contra o frio. Descemos do carro, ajudados por muito mais empregados do hotel do que seria necessário; mas eles a importância da cena e nela julgavam-se obrigados a representar um papel. Eu estava faminto. De modo que muitas vezes, para não atrasar o jantar, não subi ao quarto, que acabara por se tornar tão realmente meu que rever agora o cortinado violáceo e as estantes baixas era encontrar-me sozinho com esse espetáculo; se refletia nas coisas como nas pessoas e esperávamos juntos no hall; até que o mordomo viesse nos dizer que já estávamos servidos. Era a ocasião de ouvir uma vez a Sra. de Villeparisis.

- Estamos abusando da senhora - dizia minha avó.
- Nada disso, estou encantada, isto me agrada bastante - respondia a amiga com um sorriso carinhoso, afinando a voz num tom melodioso que contava com sua simplicidade habitual.

     É que, de fato, nesses momentos, ela não era natural; lembrava-se da educação, dos modos aristocráticos com que uma grande dama deve movimentar; os burgueses em cuja companhia se alegra de estar, que não é orgulhosa. A falta de verdadeira polidez que se podia observar nela eram os excessos da mesma polidez; pois nisso era possível reconhecer o vinco profissional da dama do faubourg de Saint-Germain, que, vendo sempre em certos burgueses descontentes que estava destinada a fazer em alguns dias, aproveitava a vida em todas as ocasiões em que lhe é possível escrever, no livro de contas de sua contabilidade para com eles, a antecipação de um tostão de crédito que lhe possa compensar no seu débito; a festa ou o jantar a que não os convidará. Assim, de sua casta social modelara a marquesa de forma definitiva, sem saber que as circunstâncias eram bem outras, as pessoas diferentes, e que em Paris poderíamos ver em sua casa seguidas vezes; de modo que esse gênio a impulsionava com ardor febril, como se o tempo que se lhe concedia para ser amável fosse muito curto, a multiplicar para nós, enquanto estávamos em Balbec; os de rosas e melões; os empréstimos de livros; os passeios de carro e verbais. Daí, seguia-se que da mesma forma que o esplendor ofuscante; o flamejar multicor e os clarões submarinos dos quartos, bem como a equitação com que os filhos de um comerciante eram deificados, como Alexandre da Macedônia - ficaram na minha memória, como características da vida dos balneários, as amabilidades diárias da Sra. de Villeparisis e também a facilidade momentânea festiva com que minha avó as aceitava.

- Deem-me suas capas, para que as levem para cima.

      Minha avó estendia-as ao gerente e eu, por causa de suas gentilezas para comigo, estava desolado com a falta de consideração dela, que o incomodava.

- Creio que este senhor se aborreceu dizia a marquesa. - Provavelmente se julga fidalgo demais para pegar suas capas. Lembro-me do duque de Nemours, quando eu ainda era criancinha, entrando em casa de meu pai, que morava no último andar do palácio Bouillon, com um enorme pacote de cartas e jornais debaixo do braço. Creio ver o príncipe em seu fraque azul na soleira da porta (que, por sinal, tinha belos adornos em madeira; julgo que era trabalho de Bagard, aquelas pequenas molduras, vocês sabem, tão finas, a que o ebanista às vezes dava forma de conchas e de flores, como os laços que atam um buquê). - Olhe, Cyrus - dizia a meu pai. - Foi o porteiro quem me deu isto para você. Disse-me: "Já que o senhor vai à casa do senhor conde, não vale a pena que eu suba os andares, mas tenha cuidado para não desatar o nó." - Bem, já que se desembaraçou dos casacos, sente-se aqui - dizia a marquesa à minha avó, tomando-a pela mão.
- Não; se não se importa, nessa poltrona não! É muito pequena para nós duas, mas grande em excesso para mim; não ficaria à vontade.
-A senhora me faz pensar, porque era exatamente igual, numa poltrona que tive há muito tempo mas acabei por não ter como conservar, pois fora dada à minha mãe pela infeliz duquesa de Praslin. Minha mãe, que no entanto era a pessoa mais simples deste mundo, mas que ainda possuía ideias que lhe vinham  de outra época e que eu já não entendia muito bem, não quisera a princípio ser apresentada à Sra. de Praslin, que era apenas uma Srta. Sebastiani, ao passo que esta, por ser duquesa, achava que não lhe cabia solicitar uma apresentação. E de fato acrescentava a Sra. de Villeparisis, esquecendo-se que não distinguia esse tipo de nuanças - essa pretensão era insustentável, a não ser que ela fosse uma Sra. de Choiseul. Os Choiseul são o que existe de melhor, descendem de uma irmã de Luís, o Gordo, eram verdadeiros soberanos em Bassigny. Compreendo que levemos vantagens sobre eles pelas alianças e o brilho, mas a antiguidade de ambas as famílias é quase a mesma. Resultaram incidentes cômicos por causa dessa questão de precedência, como o caso de um almoço que foi servido com atraso de mais de uma hora, tempo necessário para convencer uma senhora a se deixar apresentar. Apesar de tudo, tornaram-se muito amigas, e a duquesa deu a minha mãe uma poltrona do mesmo feitio desta e na qual, como a senhora acaba de fazer, todos se recusavam a sentar. Um dia minha mãe ouve um carro no pátio do palácio. Pergunta a um criado de que "trata." 
- É a Sra. duquesa de La Rochefoucauld, senhora condessa. 
- Muito bem, vou recebê-la." Ao fim de um quarto de hora, ninguém: "E então? Onde e duquesa de La Rochefoucauld?"
- Está na escada, sem fôlego, senhora - responde o criado que chegara há pouco do campo, onde minha mãe tinha o bom costume de ir buscá-los. Muitas vezes vira-os nascer. É desse jeito, podem ter criados decentes. É o primeiro dos luxos. Com efeito, a duquesa Rochefoucauld ia subindo com dificuldade, porque era imensa, tão imensa que quando entrou, minha mãe teve um instante de preocupação, sem saber acomodá-la. Mas deu com os olhos na poltrona que fora presente.
- Tenha a bondade de se sentar-disse ela, empurrando-lhe a poltrona. 

     E a encheu-a até às bordas. Apesar de toda a sua imponência, era muito agradável.

"'Ainda faz efeito quando entra'' - dizia um de nossos amigos.

- Principalmente quando sai - respondia minha mãe, cujas tiradas eram mais atrevidas do que, 11% usaria. Na própria casa da duquesa, ninguém se constrangia em gracejar de suas enormes proporções diante dela, que era a primeira a achar graça.
- O senhor está sozinho? - perguntou minha mãe um dia ao Sr. de La Rochefoucauld que fora visitar a duquesa e, à porta do salão, o duque a recebera, e minha mãe não viu sua esposa, que se achava no vão de uma janela. - Julguei que ela estivesse em casa, mas não a vejo. 
- Como a senhora é amável! - respondeu o duque, homem de menos perspicácia que já conheci, mas que às vezes tinha bom espírito.

continua na página 130...
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