sábado, 29 de março de 2025

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A intriga (XXXIX)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXIX

A INTRIGA

 Castres, 1676. – Um irmão acaba de assassinar sua irmã na casa vizinha à 
 minha; esse homem já era culpado de um assassinato. Seu pai, fazendo 
 distribuir secretamente quinhentos escudos aos conselheiros, salvou-lhe 
a vida.

LOCKE, Viagem pela França


     AO SAIR DO BISPADO, Mathilde não hesitou em enviar uma correspondência à sra. de Fervaques; o temor de comprometer-se não a deteve um segundo. Ela conjurava a rival a obter uma carta para o sr. de Frilair, escrita de próprio punho pelo monsenhor de ***. Chegava a suplicar-lhe que fosse pessoalmente a Besançon. Foi um gesto heroico da parte de uma alma ciumenta e orgulhosa.
     Aconselhada por Fouqué, ela tivera a prudência de não falar de suas providências a Julien. Sua presença perturbava-o bastante mesmo sem isso. Mais honesto ante a proximidade da morte do que fora em vida, ele tinha remorsos não apenas em relação ao sr. de La Mole, mas também a Mathilde.
     Como é possível, pensava, que eu tenha junto a ela momentos de distração e mesmo de tédio? Ela se perde por minha causa e é assim que a recompenso! Serei uma pessoa ruim? Essa questão o teria ocupado bem pouco quando ele era ambicioso; então, não triunfar era a única vergonha para ele.
     Seu mal-estar moral junto a Mathilde era tanto maior quanto ele inspirava naquele momento a paixão mais extraordinária e mais louca. Ela só falava dos sacrifícios estranhos que queria fazer para salvá-lo.
     Exaltada por um sentimento do qual se orgulhava e que prevalecia sobre todo o seu orgulho, queria não deixar passar um instante da vida sem preenchê-lo com alguma providência extraordinária. Os projetos mais desvairados, mais perigosos para ela, ocupavam suas longas conversas com Julien. Os carcereiros, bem pagos, deixavam-na reinar na prisão. As ideias de Mathilde não se limitavam ao sacrifício de sua reputação; pouco lhe importava que sua condição fosse conhecida de toda a sociedade. Lançar-se de joelhos para pedir o indulto de Julien, diante da carruagem do rei a galope, chamar a atenção do príncipe com o risco de fazer-se esmagar, era uma das menores quimeras que sonhava essa imaginação exaltada e corajosa. Através de amigos que trabalhavam junto ao rei, ela tinha certeza de poder entrar nas partes reservadas do palácio de Saint-Cloud.
     Julien achava-se pouco digno de tanta devoção, na verdade estava cansado de heroísmo. Ele teria se mostrado sensível a uma ternura simples, ingênua e quase tímida, enquanto, ao contrário, era a ideia de um público e dos outros que continuava sendo necessária para a alma altaneira de Mathilde.
     Em meio a todas as suas angústias, a todos os seus temores pela vida do amante, a quem não queria sobreviver, ela sentia uma necessidade secreta de assombrar o público pelo excesso de seu amor e a sublimidade de suas iniciativas.
      Julien aborrecia-se por não se sensibilizar com todo esse heroísmo. Como não ficaria se soubesse das loucuras com que Mathilde acabrunhava o espírito devotado, mas eminentemente razoável e limitado, do bom Fouqué?
      Este não sabia bem o que censurar na devoção de Mathilde; pois ele também teria sacrificado a fortuna e exposto a vida aos maiores perigos para salvar Julien. Estava estupefato com a quantidade de ouro lançada por Mathilde. Nos primeiros dias, as quantias gastas desse modo impressionaram Fouqué, que tinha pelo dinheiro toda a veneração de um provinciano.
     Por fim, ele descobriu que os projetos da srta. de La Mole variavam muito e, para seu grande alívio, encontrou uma palavra para censurar esse caráter que lhe era tão fatigante: ela era instável. Desse epíteto ao de impertinente, o maior anátema na província, há apenas um passo.
     É singular, pensava Julien, num dia em que Mathilde saía de sua prisão, que uma paixão tão forte e de que sou o objeto me deixe tão insensível! e eu a adorava dois meses atrás! Já havia lido que a proximidade da morte desinteressa de tudo; mas é terrível sentir-se ingrato e não poder mudar. Serei então um egoísta? E fazia-se as mais humilhantes recriminações a esse respeito.
     A ambição estava morta em seu coração, uma outra paixão saíra de suas cinzas; ele a chamava o remorso de ter atentado contra a vida da sra. de Rênal.
      Na verdade, estava perdidamente apaixonado por ela. Descobria uma felicidade singular quando, deixado completamente a sós e sem receio de ser interrompido, podia entregar-se por inteiro à lembrança dos dias felizes que passara outrora em Verrières ou em Vergy. Os menores incidentes daquele tempo tão rapidamente desaparecido tinham para ele um frescor e um encanto irresistíveis. Nunca pensava em seus êxitos de Paris, estava enfastiado disso.
     Essas disposições que cresciam ligeiro foram em parte adivinhadas pelo ciúme de Mathilde. Ela percebia muito claramente que devia lutar contra o amor pela solidão. Às vezes, pronunciava com terror o nome da sra. de Rênal e via Julien estremecer. A paixão dela não tinha agora nem limites, nem medida.
     Se ele morrer, morrerei em seguida, dizia a si mesma com toda a boa-fé possível. Que diriam os salões de Paris ao verem uma moça de minha condição adorar a tal ponto um amante destinado à morte? Para encontrar tais sentimentos, é preciso remontar ao tempo dos heróis; eram amores desse tipo que faziam palpitar os corações do século de Carlos IX e de Henrique III.
      Em meio aos transportes mais intensos, quando apertava contra o coração a cabeça de Julien, ela pensava com horror: Quê! Essa cabeça encantadora estaria destinada a rolar no chão! Pois bem, acrescentava, inflamada de um heroísmo em que não deixava de haver felicidade, meus lábios, que se comprimem contra esses lindos cabelos, estarão gelados menos de vinte e quatro horas depois.
      As lembranças desses momentos de heroísmo e de terrível volúpia envolviam-na num abraço invencível. A ideia de suicídio, tão dominante por si mesma, e até então afastada por essa alma altaneira, nela penetrou e logo reinou com um poder absoluto. Não, o sangue de meus antepassados não esmoreceu ao chegar até mim, dizia-se Mathilde com orgulho.

– Tenho um favor a te pedir, disse um dia seu amante: leva teu filho para ser criado em Verrières, a sra. de Rênal protegerá a mãe de criação.
– O que está me dizendo é muito duro... E Mathilde empalideceu.
– É verdade, e peço-te mil vezes perdão, exclamou Julien, saindo de seu devaneio e estreitando-a nos braços.

      Depois de enxugar as lágrimas, ele voltou a seu pensamento, mas com mais habilidade. Deu à conversação um tom de filosofia melancólica e falou do futuro que em breve se fecharia para ele.

– É preciso convir, querida amiga, que as paixões são um acidente na vida, mas esse acidente só acontece nas almas superiores... A morte de meu filho seria, no fundo, uma felicidade para o orgulho de sua família, é o que pensarão os subalternos. A negligência será a herança desse filho do infortúnio e da vergonha... Confio que, numa época que não quero determinar mas que minha coragem entrevê, você obedecerá a minhas últimas recomendações: desposará o sr. marquês de Croisenois.
– Como! Desonrada?
– A desonra não poderá atingir um nome como o seu. Você será viúva e viúva de um louco, eis tudo. Irei mais longe: não tendo o meu crime por motivo o dinheiro, ele não será desonroso. Talvez, nessa época, algum legislador filósofo terá obtido, dos preconceitos de seus contemporâneos, a supressão da pena de morte. E alguma voz amiga dirá como um exemplo: Veja, o primeiro esposo da srta. de La Mole era um louco, mas não um homem ruim, um celerado. Foi um absurdo mandarem cortar aquela cabeça... Então minha memória deixará de ser infame, pelo menos depois de um certo tempo... Sua posição na sociedade, sua fortuna e, permita-me dizer, seu gênio farão que o sr. de Croisenois, como seu esposo, desempenhe um papel que ele sozinho não saberia cumprir. Ele só possui estirpe e bravura, e essas simples qualidades, que faziam um homem completo em 1729, são um anacronismo um século mais tarde e só produzem pretensões. Agora é preciso outras coisas para colocar-se à frente da juventude francesa.

     Você levará o auxílio de um caráter firme e empreendedor ao partido político no qual lançará seu esposo. Poderá suceder aos Chevreuse e aos Longueville da Fronda... Mas então, querida amiga, o fogo celeste que a anima neste momento terá se esmorecido um pouco.
     Permita-me dizer-lhe, ele acrescentou depois de muitas outras frases preparatórias, dentro de quinze anos você verá como uma loucura escusável, mas ainda assim uma loucura, o amor que teve por mim.
     Parou de repente e ficou pensativo. Estava de novo diante desta ideia tão chocante para Mathilde: dentro de quinze anos a sra. de Rênal irá adorar meu filho, e você o terá esquecido.

continua página 329...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: A intriga (XXXIX)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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