Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda
VIII - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
Ao mesmo tempo, porém, que entre as duas crianças tinha lugar esta cena, os
fregueses da taberna puseram-se a cantar uma cantiga obscena que os fazia rir tão
estrondosamente, que parecia que tremia o teto.
O estalajadeiro animava-os e acompanhava-os na ruidosa manifestação da sua alegria.
Do mesmo modo que as aves. com qualquer coisa fazem um ninho, assim as crianças
de qualquer coisa arranjam uma boneca. Enquanto Eponina e Azelma enfaixavam o gato,
Cosette, pela sua parte, enfaixara a espada. Feito isto, deitou-a nos braços e pôs-se a
embalá-la neles, cantando para a fazer adormecer.
A boneca é uma das mais imperiosas necessidades e juntamente um dos mais
engraçados instintos da infância feminina. Preparar, enfeitar, vestir, despir, tornar a
vestir, ensinar, ralhar, embalar, afagar, adormecer, figurar de qualquer coisa uma pessoa,
todo o futuro da mulher consiste nisto. A cismar e a tagarelar, a fazer enxovaizinhos e
vestidinhos, corpinhos e roupõezinhos, a criança torna-se adolescente, a adolescente
donzela, e a donzela mulher. A primeira criança continua a última boneca.
Uma criança sem boneca é quase tão infeliz e tão completamente impossível como
uma mulher sem filhos.
Cosette, pois, tinha feito da espada uma boneca.
Quanto à Thenardier, chegara-se para o pé do homem de amarelo e dizia consigo:
«Meu marido tem razão, talvez este homem seja Laffite. Há ricos tão pantomineiros!»
E após isto foi encostar-se à mesa a que ele estava sentado.
— Senhor... — disse ela.
A esta palavra senhor, o homem voltou-se, pois, a Thenardier ainda o não havia
tratado senão por honrado homem, ou bom homem.
— Olhe, senhor — prosseguiu ela, tomando o seu ar adocicado, que ainda era mais
desagradável à vista do que o seu gesto feroz — eu não levo a mal que a pequena
brinque, nem me oponho a isso, mas é por esta vez só, porque o senhor é generoso. Ela
não tem nada de seu, portanto precisa de trabalhar.
— Visto isto, não é sua a pequena? — perguntou o homem.
— Oh, meu Deus! Não, senhor! É uma pobrezita que nós recolhemos assim por
caridade. Uma espécie de tolinha; aquilo tem água na cabeça por força; o senhor bem vê
como ela tem a cabeça grande. Não somos ricos, mas, enfim, fazemos-lhe o bem que
podemos. Por mais que tenhamos escrito para a terra dela, vai há seis meses que não
nos respondem. Enquanto a mim, é porque a mãe morreu.
— Ah! — disse o homem, recaindo na sua meditação.
— Também fraca mãe era — acrescentou a Thenardier — uma mãe que não quer
saber da filha!...
Durante toda esta conversação, Cosette, como se um instinto a avisasse de que
falavam dela, não despregava os olhos da Thenardier, escutando, porém, ouvindo
apenas vagamente aqui e ali algumas palavras.
No entanto, repetiam os bebedores, já quase a cair de bêbados, a sua imunda cantiga
com maior alegria. Era um agregado de facécias infames, em que figurava a Virgem e o
Menino Jesus, de envolta com as maiores desonestidades. A Thenardier fora tomar parte
na alegria dos comensais, que se manifestava por estrondosas gargalhadas. Cose e
olhava debaixo da mesa para a fogueira, cujo clarão se lhe reverberava nos olhos fixos e
pusera-se de novo a embalar a trouxazinha que fizera, cantando em voz baixa, ao passo
que a embalava: «Minha mãe já morreu! Minha mãe já morreu! Minha mãe já morreu!»
Em virtude de novas insistências da estalajadeira, o homem de amarelo, «o
milionário», anuiu, enfim, a cear.
— Que há de querer o senhor?
— Pão e queijo — respondeu o homem.
«Decididamente é um farroupilha», disse consigo a Thenardier.
Os bêbados continuavam a cantar a sua obscena cantiga e Cosette debaixo da mesa
continuava também a sua.
De repente, Cosette interrompeu-se. Acabara de se voltar e avistar a boneca das filhas
da estalajadeira, a qual haviam deixado pelo gato e atirado ao chão a alguns passos da
mesa da cozinha.
A criança deixou então cair a espada feita boneca que mal preenchia o seu fim e
circunvagou a vista por toda a casa. A Thenardier falava baixo ao marido e contava
dinheiro; Ponina e Zelma brincavam com o gato; os viajantes comiam ou bebiam ou
cantavam; ninguém a via, ninguém fixava os seus olhares sobre ela. Não havia, pois, um
momento a perder. Saiu de debaixo da mesa, arrastando-se nos joelhos e nas mãos,
certificou-se outra vez de que a não observavam e em seguida dirigiu-se com ligeireza
para a boneca e pegou nela. Daí a um instante estava outra vez sentada no seu lugar e
imóvel, porém, com as costas voltadas de modo a fazer sombra à boneca que tinha no
regaço. Era tão rara para ela aquela ventura de brincar com uma boneca, que essa
ventura tinha toda a violência de uma voluptuosidade.
Ninguém a vira, exceto o viajante do casacão, que comia pausadamente a sua frugal
ceia.
Durou cerca de um quarto de hora aquela alegria.
Porém, por maiores precauções que Cose e tomasse, não deu fé que um dos pés da
boneca estava à mostra e que a fogueira a iluminava com um clarão demasiado vivo.
Aquele pé cor-de-rosa e luminoso, que se destacava na sombra, feriu de súbito o olhar
de Azelma, que disse para Eponina:
— Ó mana, olha!
As duas crianças estacaram, estupefatas. Cose e vera a ousadia de lhes pegar na
boneca!
Eponina ergueu-se e, sem largar o gato, dirigiu-se para sua mãe e pôs-se a puxá-la pela saia.
— Deixa-me! — disse a mãe. — Que queres?
— Ó mãe — disse a criança — ora olhe!
E Eponina apontava para Cosette.
Esta, porém, toda embevecida no êxtase da posse, não via nem ouvia nada.
O rosto da Thenardier tomou então essa expressão particular, que se compõe do
terrível aplicado às ninharias da vida, e que é causa de que a esta casta de mulheres se
dê o nome de megeras.
Desta feita, a soberba ofendida ainda mais exasperava a sua cólera. Cose e
transpusera todas as barreiras, atentando contra a boneca «daquelas meninas». A figura
de uma czarina, ao ver pôr a um moujick o grande cordão azul de seu imperial filho, teria
a mesma expressão.
A estalajadeira gritou em voz enrouquecida pela indignação:
— Cosette!
A criança estremeceu como se o chão se lhe abrisse debaixo dos pés e voltou-se.
— Cosette! — repetiu a Thenardier.
— Então que é isto? — perguntou o viajante, que se levantara da mesa.
— Pois não vê? — respondeu a Thenardier, apontando para o corpo do delito que
jazia aos pés de Cosette.
— Mas que foi? — tornou o homem.
— Que foi? — respondeu a Thenardier. — Pois esta esfarrapada não teve o
atrevimento de tocar na boneca das pequenas?
— Ora! E para isso é preciso tanto barulho? — disse o homem. — E então que tinha
que ela brincasse com a boneca?
— Tocar-lhe com aquelas mãos sujas! — prosseguiu a Thenardier. — Com aquelas
mãos que metem nojo!
Cosette redobrou os soluços.
— Tu cala-te?! — gritou-lhe a Thenardier.
O homem foi direito à porta da rua, abriu-a e saiu.
Mal ele saíra, a Thenardier aproveitou a sua ausência para dar a Cosette, por baixo da
mesa, um grande pontapé, que a fez soltar descompassados gritos.
A porta tornou a abrir-se e o homem do casacão apareceu de novo, trazendo nas
mãos a fabulosa boneca de que falamos, e que todas as crianças da aldeia
contemplavam desde pela manhã, com os mais visíveis sinais de admiração.
— Toma, isto é para ti — disse para Cosette, pondo a boneca de pé diante dela.
Devemos crer que havia mais de uma hora, tempo em que ali se encontrava, que ele tinha, no meio do seu cogitar, notado confusamente aquela loja de quinquilharias tão
esplendidamente esclarecida por velas e lampiões, que se avistava como uma verdadeira
iluminação por entre as vidraças da taberna.
Cosette, que o vira dirigir-se para ela com aquela boneca, como veria ir o Sol; que lhe
ouviu aquelas palavras inauditas: Isto é para , olhou para ele e para a boneca, depois
recuou lentamente e foi-se esconder debaixo da mesa no sítio mais retirado, ao pé do
recanto da parede.
Cosette já não chorava, nem gritava, nem mesmo ousava tomar a respiração
livremente, ao que parecia.
Thenardier, Eponina e Zelma, eram outras tantas estátuas. Até os bebedores tinham
estacado no meio das suas estrepitosas libações. Operara-se um silêncio solene em toda
a sala da baiuca.
A Thenardier, após o primeiro sobressalto que a deixara petrificada e muda, voltou de
novo às suas conjecturas. «Quem diabo será este velho? Será algum pobre ou algum
milionário? Talvez seja ambas as coisas, isto é, um ladrão».
Quanto ao estalajadeiro, a sua fronte encrespou-se nessa ruga expressiva que
acentua o rosto humano todas as vezes que a ele acode o instinto predominante com
todo o seu bestial poder. O taberneiro contemplava alternadamente a boneca e o
viajante, parecendo farejar aquele homem, como farejaria um saco de dinheiro. Porém,
isto durou apenas o tempo de um relâmpago. O estalajadeiro acercou-se da mulher e
disse-lhe em voz baixa:
— Olha que a boneca não custou menos de trinta francos; nada de asneiras, pois; de
cabeça baixa diante do homem.
continua na página 312...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VII — Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VIII(b) - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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