Livro II
Ela não é galante,
não usa ruge algum.
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
Capítulo XXXVIII
UM HOMEM PODEROSO
Mas há tantos mistérios em suas atitudes e elegância em seu porte. Quem
poderá ela ser?
SHILLER
AS PORTAS DO TORREÃO abriram-se na manhã seguinte bem cedo. Julien foi despertado num sobressalto.
– Ah! Meu Deus!, pensou, é meu pai. Que cena desagradável!
No mesmo instante, uma mulher vestida como camponesa precipitou-se em seus braços, ele
custou a reconhecê-la. Era a srta. de La Mole.
– Malvado, só por tua carta eu soube onde estavas. O que chamas teu crime, e que não é
senão uma nobre vingança que me mostra todo o orgulho do coração que bate nesse peito, só o
fiquei sabendo em Verrières...
Apesar de suas prevenções contra a srta. de La Mole, que aliás ele não confessava a si
mesmo muito claramente, Julien achou-a muito bela. Como não ver nessa maneira de agir e de
falar um sentimento nobre, desinteressado, muito acima do que teria ousado uma alma pequena
e vulgar? Ele acreditou ainda amar uma rainha e, depois de alguns instantes, foi com uma rara
nobreza de elocução e de pensamento que disse a ela:
– O futuro desenhava-se a meus olhos com muita clareza. Depois de minha morte, você
tornaria a casar com o sr. de Croisenois, que teria desposado uma viúva. A alma nobre mas
um pouco romanesca dessa viúva encantadora, abalada e convertida ao culto da prudência
vulgar por um acontecimento singular, trágico e grande para ela, teria se dignado compreender
o mérito real do jovem marquês. Você teria se resignado a ser feliz com a felicidade de todo o
mundo, a consideração, as riquezas, a posição social elevada... Mas sua chegada a Besançon,
querida Mathilde, se for descoberta, será um golpe mortal para o sr. de La Mole, e isso jamais
me perdoarei. Já causei tanto desgosto a ele! O acadêmico vai dizer que ele alimentou uma
serpente em sua casa.
– Confesso que não esperava tão frias razões e tanta preocupação com o futuro, disse a
srta. de La Mole, meio zangada. Minha camareira, quase tão prudente quanto você, conseguiu
um passaporte para ela, e foi sob o nome de sra. Michelet que corri até a Posta.
– E a sra. Michelet pôde chegar tão facilmente até mim?
– Ah! Continuas sendo o homem superior, aquele que distingui! Primeiro, ofereci cem
francos a um secretário de juiz, que dizia ser impossível minha entrada neste torreão. Mas,
recebido o dinheiro, esse sujeito fez-me esperar, levantou objeções, achei que quisesse
roubar-me... - ela se deteve.
– E então?, disse Julien.
– Não fique zangado, querido Julien, disse ela abraçando-o, fui obrigada a dizer meu nome
a esse secretário, que me tomava por uma jovem operária de Paris apaixonada pelo belo
Julien... Foram as palavras dele. Jurei que era tua mulher e terei uma permissão para te ver
diariamente.
A loucura é completa, pensou Julien, não pude impedi-la. Afinal, o sr. de La Mole é um
poderoso senhor, e a opinião pública saberá encontrar uma desculpa para o jovem coronel que
desposar essa encantadora viúva. Minha morte próxima apagará tudo; e ele entregou-se com
delícia ao amor de Mathilde. Era loucura, grandeza de alma, tudo o que há de mais singular.
Ela propôs seriamente matar-se com ele.
Depois desses primeiros arrebatamentos, e quando ela se saciou da felicidade de ver
Julien, uma curiosidade viva apoderou-se de sua alma. Examinava o amante e o julgou mais
acima do que ela imaginara. Boniface de La Mole parecia-lhe ressuscitado, porém mais
heroico.
Mathilde procurou os principais advogados da região, que ela ofendeu ao oferecer-lhes
dinheiro muito cruamente; mas eles acabaram aceitando.
Ela rapidamente chegou à conclusão de que, em matéria de coisas duvidosas e de alta
importância, tudo dependia em Besançon do sr. abade de Frilair.
Sob o nome obscuro de sra. Michelet, ela encontrou primeiro insuperáveis dificuldades
para chegar até o todo-poderoso dirigente da Congregação. Mas a notícia da beleza de uma
jovem modista, louca de amor, e vinda de Paris a Besançon para consolar o jovem padre
Julien Sorel, espalhou-se pela cidade.
Mathilde andava a pé, sozinha, pelas ruas de Besançon; esperava não ser reconhecida. Em
todo caso, não achava inútil à sua causa produzir uma grande impressão no povo. Sua loucura
pensava em fazê-lo revoltar-se para salvar Julien a caminho da morte. A srta. de La Mole
acreditava estar vestida com simplicidade e como convém a uma mulher que sofre, mas o fazia
de modo a atrair todos os olhares.
Estava sendo o objeto da atenção de todos em Besançon, quando, depois de oito dias de
solicitações, obteve uma audiência com o sr. de Frilair.
Qualquer que fosse sua coragem, as ideias da influência e da profunda e prudente perfídia
do dirigente da Congregação estavam tão ligadas em seu espírito que ela tremeu ao bater à
porta do bispado. Mal conseguiu andar quando precisou subir a escada que conduzia aos
aposentos do vigário-geral. A solidão do palácio episcopal causava-lhe frio. Posso sentar-me
numa poltrona e essa poltrona prender-me os braços. Se desapareço, a quem minha camareira
poderá recorrer? O capitão da gendarmeria evitará agir... Estou isolada nesta grande cidade!
Em sua primeira inspeção do apartamento, a srta. de La Mole ficou tranquilizada. Um
lacaio de libré muito elegante viera abrir-lhe a porta. A sala onde a fizeram esperar ostentava
um luxo fino e delicado, muito diferente da magnificência grosseira, e que em Paris só se
encontra nas melhores casas. Assim que avistou o sr. de Frilair que vinha em sua direção com
um ar paterno, todas as ideias de crime atroz desapareceram. Não encontrou em sua bela
fisionomia nem mesmo a marca daquela virtude enérgica e um pouco selvagem, tão antipática
à sociedade parisiense. O meio sorriso que animava as feições do padre que dispunha de tudo
em Besançon anunciava o homem de boa companhia, o prelado instruído, o administrador
hábil. Mathilde acreditou estar em Paris.
O sr. de Frilair precisou de apenas alguns instantes para fazer Mathilde confessar-lhe ser a
filha de seu poderoso adversário, o marquês de La Mole.
– De fato, não sou a sra. Michelet, disse ela, retomando toda a altivez de seu caráter, e
essa confissão custa-me um pouco, pois venho consultá-lo, senhor, sobre a possibilidade de
conseguir a libertação do sr. de La Vernaye. Em primeiro lugar, ele é culpado apenas de um
desatino; a mulher contra a qual disparou passa bem. Em segundo lugar, para seduzir os
subalternos, posso agora mesmo dispor de cinquenta mil francos e comprometer-me a pagar o
dobro. Enfim, meu reconhecimento e o de minha família nada julgarão impossível para quem
tiver salvo o sr. de La Vernaye.
O sr. de Frilair parecia surpreso com esse nome. Mathilde mostrou-lhe várias cartas do
ministro da guerra, endereçadas ao sr. Julien Sorel de La Vernaye.
– Está vendo, senhor, que meu pai encarregou-se da fortuna dele. Desposei-o em segredo,
meu pai desejava que ele fosse oficial superior antes de anunciar esse casamento um tanto
singular para um de La Mole.
Mathilde notou que a expressão de bondade e de suave satisfação dissipava-se
rapidamente à medida que o sr. de Frilair chegava a descobertas importantes. Uma sagacidade
mesclada a uma falsidade profunda transparecia em seu rosto.
O abade tinha dúvidas, relia lentamente os documentos oficiais.
Que partido tirar dessas estranhas confidências?, ele pensava. Eis-me de repente em
relação íntima com uma amiga da célebre marechala de Fervaques, sobrinha todo-poderosa do
monsenhor de ***, através de quem se é bispo na França. O que eu via como remoto no futuro
apresenta-se de improviso. Isso pode levar-me à meta de todos os meus desejos.
A princípio, Mathilde ficou assustada com a mudança rápida de fisionomia desse homem
tão poderoso, com quem se achava sozinha num apartamento retirado. Mas como?, disse a si
mesma em seguida. O pior teria sido não causar nenhuma impressão no frio egoísmo de um
padre saciado de poder e de prazeres.
Deslumbrado com a possibilidade rápida e imprevista que se abria, para ele, de chegar ao
episcopado, espantado com o gênio de Mathilde, por um instante o sr. de Frilair perdeu toda
cautela. A srta. de la Mole quase o viu a seus pés, ambicioso e agitado de nervosismo.
Tudo se esclarece, ela pensou, nada será impossível para a amiga da sra. de Fervaques.
Apesar de um sentimento de ciúme ainda muito doloroso, ela teve a coragem de explicar que
Julien era amigo íntimo da marechala, e encontrava quase todos os dias na casa dela o
monsenhor de ***.
– Depois que sortearem quatro ou cinco vezes seguidas uma lista de trinta e seis jurados
entre os notáveis desta região, disse o vigário-geral com o áspero olhar da ambição e
acentuando as palavras, eu me considerarei como muito pouco felizardo se em cada lista não
contar com oito ou dez amigos, e os mais inteligentes do grupo. Quase sempre terei a maioria,
e mais ainda, em caso de condenação; veja, senhorita, com que facilidade posso obter a
absolvição...
O abade parou de repente, como espantado com o som de suas palavras; ele confessava
coisas que nunca são ditas aos leigos.
Mas, por sua vez, ele deixou Mathilde estupefata quando lhe informou que o que
surpreendia e interessava sobretudo a sociedade de Besançon, na estranha aventura de Julien,
é que ele inspirara outrora uma grande paixão à sra. de Rênal, e por muito tempo a
compartilhara. O sr. de Frilair percebeu facilmente a perturbação extrema que suas palavras
produziam.
Tenho minha desforra!, ele pensou. Eis, enfim, um meio de conduzir essa pessoa tão
decidida; temia não descobri-lo. O ar distinto e pouco fácil de conduzir aumentava, para ele, o
encanto da rara beleza que via quase suplicante à sua frente. Recobrou todo o sangue-frio e
não hesitou em enterrar o punhal no coração dela.
– Eu não ficaria surpreso, disse num tom leviano, se ficássemos sabendo que foi por ciúme
que o sr. Sorel disparou dois tiros de pistola contra essa mulher outrora tão amada. Ela está
longe de não ter atrativos, e há algum tempo vinha se encontrando seguidamente com um
certo padre Marquinot, de Dijon, um jansenista sem caráter, como são todos.
O sr. de Frilair torturou voluptuosamente e à vontade o coração daquela linda moça, cujo
lado fraco surpreendera.
Por que razão, dizia, e punha os olhos ardentes sobre Mathilde, o sr. Sorel teria escolhido
a igreja, senão porque, precisamente naquele instante, seu rival celebrava ali a missa? Todos
concordam em atribuir muita inteligência e, mais ainda, prudência ao homem feliz que a
senhora protege. Que haveria de mais simples do que esconder-se no jardim do sr. de Rênal
que ele conhece tão bem? E ali, com quase a certeza de não ser visto, nem descoberto, poder
matar a mulher de quem tinha ciúmes?
Esse raciocínio, aparentemente tão justo, acabou por lançar Mathilde no desespero. Essa
alma altiva, mas saturada daquela prudência seca que na alta sociedade é tida como a
descrição fiel do coração humano, não fora feita para compreender depressa a felicidade de
zombar de toda prudência, que pode ser tão intensa para uma alma apaixonada. Nas classes
elevadas da sociedade de Paris, onde Mathilde vivera, a paixão só muito raramente pode
despojar-se da prudência, e é do quinto andar que as pessoas se jogam pela janela.
Enfim, o abade de Frilair sentiu-se seguro de seu domínio. Deu a entender a Mathilde (ele
certamente mentia) que podia dispor à vontade do ministério público, encarregado de fazer a
acusação contra Julien. Depois que o sorteio designasse os trinta e seis jurados da sessão, ele
faria um contato direto e pessoal com trinta deles, pelo menos.
Se o sr. de Frilair não tivesse achado Mathilde tão bonita, não lhe teria falado assim tão
claramente senão no quinto ou no sexto encontro.
continua página 326...
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Leia também:
O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
O Vermelho e o Negro: Um Homem Poderoso (XXXVIII)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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