domingo, 16 de março de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (5a) - Ippolít, que lá pelo fim

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
5.

     Ippolít, que lá pelo fim da arenga de Liébediev adormecera repentinamente sobre o sofá, acordou de súbito, como se lhe tivessem dado um empurrão. Sobressaltado sentou-se olhou em redor e ficou muito branco, parecendo muito espantado de se achar ali; e quando se lembrou de tudo e refletiu uns segundos, uma expressão de horror lhe veio ao semblante

- Como? Estão saindo? Já acabou? Terminou? O sol já nasce? - pôs-se a perguntar, inquieto, agarrando a mão do príncipe  - Que horas são? Pelo amor de Deus, que horas são? Peguei no sono sem querer... Dormi muito tempo? - continuou a indagar como se uma coisa lhe tivesse arrebatado o destino enquanto dormia.
- Dormiu... quer saber... apenas uns sete ou oito minutos! - acalmou-o Evguénii Pávlovitch. 

     Ippolít fixou-o avidamente, distendendo por alguns momentos um raciocínio vagaroso.

- Só? Então eu... - e deu um suspiro ardente e profundo, como aliviando algum peso. Verificou que o grupo não se dissolvera, que tinha abandonado a mesa apenas para sentar a uma outra na peça contígua diante da ceia, que a aurora ainda não chegara e que, afinal de contas, a unica coisa terminada de fato fora o bestialógico de Liébediev. Sorriu e um fluxo vermelho, característico da tuberculose, lhe tingiu as faces. Comentou com ironia a afirmativa de Radómskii: - Esteve contando os minutos enquanto eu dormia, hein, Evguénii Pávlovitch? Bem reparei esta noite que o senhor não tirava os olhos de cima de mim. Olá, Rogójin! Vi-o em sonhos agora mesmo. - Franziu uma sobrancelha na direção do príncipe. como a mostrar-lhe Parfión que ainda permanecia sentado diante da mesa. Logo mudou de assunto. - Onde está o orador? Que fim levou Liébediev? Então ele já finalizou aquela xaropada? Como foi a peroração? É verdade, príncipe, que o senhor disse uma vez que a Beleza salvaria o mundo? Senhores! exclamou bem alto, dirigindo-se para o grupo inteiro - aqui o príncipe afirma que a Beleza salvará o mundo! Participo-lhes que a razão desta sua ideia tão radiosa advém do fato de estar ele apaixonado. Mal embarafustou por aqui adentro esta noite, logo vi isso na fisionomia dele. Não desaponte. príncipe, senão me enternecerá ainda mais. Afinal, que espécie de beleza é que salvará o orbe? O senhor é um cristão fervoroso? Kólia me garantiu que o senhor é cristão convicto.

      O príncipe olhava-o atentamente, sem responder.

- Ah! Não responde? - e bruscamente Ippolít acrescentou: - Cuida porventura que sou muito seu amigo? 
- Não, não julgo. Já percebi que não gosta de mim grande coisa.
- Como? Mesmo depois de ontem? Ontem fui sincero com você.
- Eu sabia, ontem também, que você não gostava de mim.
- E por que será? Inveja? Pensou, desde que me conhece, que fosse por causa disso, não pensou? Mas, por que estou eu interpelando-o assim na sua própria casa? Quero um pouco mais de champanha. Keller, torne a encher a minha taça.
- Você não deve beber mais, Ippolít. Não consinto - e o príncipe lhe arredou para longe a taça. 
- Tem toda a razão. - e concordando, foi assumindo gradualmente um feitio de quem se torna mais lúcido. - Comentariam.., chamar-me-iam de bêbado, ainda por cima... ou de romântico. Tanto se me dá. Pois comentem.., ou deixem de comentar! Não concorda comigo, príncipe? Hei de me importar muito com o que digam depois, hein? Que pode interessar a qualquer um de nós o que acontece depois? Parece que ainda não acordei direito... Tive um sonho.., credo! Ainda não se desfez direito. Não lhe desejaria um sonho destes, príncipe, apesar de nossa antipatia recíproca. Eu cá adoto o seguinte sistema: não desejo o mal para uma pessoa mesmo que embirre com ela. Mas.., chega de perguntas e declarações. Príncipe, dê-me a sua mão. Quero apertá-la calorosamente. Assim! Ainda bem que o senhor a estendeu. Portanto acreditem que quando aperto a mão de alguém o faço com sinceridade. Não beberei mais, já que esse é o seu desejo. Que horas serão? Outra pergunta vã. Se aqui há uma criatura que sabe a hora, e que hora é esta, exatamente esta, sou eu. Sim, porque ela, a hora, ei-la!... Esse é o tempo exato. Armaram a ceia acolá naquele canto?! Então isso significa que esta mesa aqui está livre? Ótimo. Ora muito bem, cavalheiros, eu... Mas os senhores querem ouvir, ou não querem?... Príncipe, era meu intento ler um pequeno ensaio. Bem sei que cear é bem mais interessante; ainda assim... - e de súbito, da maneira mais inesperada, sacou do bolso de dentro do paletó um envelope grande, selado com uma rodela de lacre, e o depôs em cima da mesa, na sua frente. 

     Tal gesto inopinado alarmou a assistência que não esperava por uma coisa dessas e que, além de um tanto bebida, tinha fome. Evguénii Pávlovitch quase deu um pulo da cadeira. Gánia caminhou depressa para a mesa. Rogójin fez o mesmo, mas com uma espécie de raiva sinistra, como se estivesse pressentindo o que ia acontecer. Liébediev, que já se achava perto, abaixou os olhos perscrutadores arregalando-os por sobre o envelope, querendo adivinhar o que seria aquilo. Foi então que o príncipe perguntou com certo receio:

- Isso aí o que é?
- Ao primeiro clarão do sol nascente me “prostrarei”, príncipe. Já lhe disse. Palavra de honra. O senhor verá! - exclamou Ippolít - Mas.., mas... Cuidam que não serei capaz de abrir este envelope? – acrescentou volvendo os olhos para os assistentes, encarando-os um por um, como a desafiá-los indistintamente. 

      Míchkin reparou que ele tremia de modo quase convulsivo.

- Por que havemos de pensar uma coisa dessas? - respondeu o príncipe por todos - E por que pensa você isso da gente? Que ideia é essa.., que ideia é essa de ler isso a estas horas? Que é que tem aí nesse envelope, Ippolít?
- Sim, que é? - perguntavam todos, entre si.
- Que foi que lhe aconteceu? Está querendo o quê? - em breve o rodearam todos, alguns ainda comendo. 
     
     Aquele envelope com o lacre vermelho parecia um imã. 

- Escrevi isto anteontem, príncipe, logo depois que prometi vir passar uma temporada na sua casa. Passei o dia inteiro escrevendo, fui pela noite adentro, e só ontem foi que acabei. Depois me deitei e tive um sonho...
- Não seria muito melhor adiar isto para amanhã?
- Amanhã “não haverá mais tempo” - disse Ippolít ejaculando uma risada histérica - Mas não se assustem. Levarei apenas uns quarenta minutos a ler. Uma hora, no máximo. E por que não hei de ler se noto tamanha curiosidade, se todos não tiram os olhos de cima do lacre? Ah! Como um envelope grande, lacrado, causa sensação, gente! Hum! Vejam só o que é o mistério! Devo soltar o lacre, ou não, senhores? - perguntou, fixando-os com olhos fulgurantes e rindo de modo esquisitíssimo - É segredo, gente, segredo! Lembra-se, príncipe, quem foi que proclamou que já não haveria “mais tempo”? Foi o grande e poderoso arcanjo do Apocalipse. 
- É melhor não ler! - exclamou de repente Evguénii Pávlovitch com um timbre de tamanha preocupação que alvoroçou os demais.
- Deixe dessa ideia. Não leia, não! - aconselhou o príncipe também, pondo a mão sobre o envelope. 
- Ler para quê? É hora de cear, isso sim - declarou alguém. 
- É algum artigo? Colaboração para alguma revista? - perguntou um outro.
- Alguma droga, na certa - aventou um terceiro.

     O gesto de Míchkin, conquanto tímido, pareceu haver arrefecido Ippolít.

- Então.., não querem que eu leia? - disse quase a sussurrar, com certa apreensão os lábios lívidos repuxados por um sorriso em esgar - Acham que não convém ler? - murmurou, esquadrinhando vagarosamente as fisionomias dos demais, como a querer cobrar ânimo para investir sobre todos com um único arremesso difuso. - Estão com medo de quê? - depois ficou a consultar a indecisão do príncipe. 
- Por que haveríamos nós de ter medo? - redarguiu este último, mudando de fisionomia cada vez mais.

     Então, dando um salto da cadeira, como se alguma mola o tivesse arrojado, Ippolít perguntou ao acaso: 

- Alguém terá aí uma moeda de vinte Copeques? Ou qualquer outra?
- Tome disse Liébediev, entregando imediatamente uma. E o fez certo de que o rapaz, devido ao seu estado de saúde, estivesse em algum delírio. 

     Voltando-se depressa para a menina, Ippolít pediu:

 - Vera Lukiánovna pegue esta moeda, atire-a para o ar... Cara ou coroa. Se for cara, então quererá dizer que posso ler!

     Vera olhou muito espantada para a moeda, depois para Ippolít, por último para o pai e amedrontadamente recuando a cabeça, como se achasse que não devia olhar para a moeda, arremessou-a para o ar. Esta caiu na mesa, com a efígie virada para cima.

- Ler! Vou ler- grunhiu Ippolít como varado pela decisão do destino. Mais pálido do que estava era impossível. Nem que aquilo fosse a sua sentença de morte.- Mas... - irrompeu ele despropositadamente metendo-se entre os mais próximos, após meio minuto de silêncio - Como?! Então ganhei? Foi mesmo “cara”? - e com um pasmo que era quase súplica, tomando a todos como testemunhas os encarou. Depois tornou a se voltar para Míchkin com um legítimo ar de assombro - Mas isto é prova da força psicológica. E... deveras inacreditável, príncipe! - disse e repetiu, forçando o hausto e parecendo recobrar ânimo - Guarde bem este fato, príncipe não esqueça, alteza, já que, segundo creio, o senhor costuma colecionar episódios referentes às sentenças de morte... Pelo menos, me contaram ah, ah!... Deus do Céu, que absurdo sem pé nem cabeça!

     Sentou-se no sofá, fincou os cotovelos sobre a mesa e apoiou a cabeça.

- Ora, isto é positivamente vergonhoso! Importa-me lá que seja vergonhoso! - imediatamente ergueu a cabeça outra vez - Senhores, senhores! Vou romper o lacre do meu envelope - exclamou com repentina decisão - O que aliás não obriga ninguém a ficar para ouvir. - com as mãos trêmulas de tanta excitação, abriu o envelope, tirou diversas tiras de papel escritas em letra miúda; começou a arrumá-las, colocando-as na sua frente. 
- Mas de que se trata? Que é que ele vai ler? - murmurou alguém, soturnamente; mas os outros ficaram calados, sentando-se e espiando com curiosidade.

      Contavam com alguma coisa fora do comum. Vera grudou-se à cadeira do pai, amedrontada, com vontade de chorar. Kólia não deixava também de estar assustado. Liébediev, que já se tinha sentado, tornou a se levantar e trouxe as velas para perto de Ippolít, para clarear mais.

- Senhores, o que isto seja, os senhores vão ver já, por si mesmos - começou Ippolít que bem sabia por que começava assim. E logo desandou a ler: - “Explicação indispensável”. Mote: “Après moi le déluge”. Hum! Não estou gostando! Será que escrevi seriamente um mote tão estúpido? Ouçam, senhores!... Asseguro-lhes que tudo isto não passa afinal de uma algaravia! Uns pensamentos meus... E se porventura pensam que há qualquer coisa misteriosa, qualquer coisa proibida, então, de fato... 
- Por que é que não lê isso sem prefácio? - interrompeu-o Gánia.
- E afetação - ajuntou outra pessoa.
- E muita falação - disse Rogójin que até ali estivera calado.

     Ippolít o encarou de repente e quando os seus olhos se encontraram, Rogójin fez um arreganho vagaroso e ácido, pronunciando arrastadamente esta opinião:

- Não é por este caminho que vais lá das pernas, rapaz, digo-te.

     Ninguém naturalmente entendeu o que Rogójin quis dizer. Pensaram todos que fosse uma ideia qualquer vinda em um relance. Mas essa frase causou terrível impressão em Ippolít que ficou tão trêmulo que o príncipe chegou a estender a mão para ampará-lo, e até quis gritar, só não o tendo feito porque a voz lhe faltou. Ippolít levou quase um minuto fixando Rogójin, calado, a respiração presa. Por fim, retomando o folego, pronunciou, com tremendo esforço:

- Com que então era você? Sim, você? 
- Fui eu o quê? Fui eu o quê? - retrucou Rogójin, espantado.

     Ippolít, inflamando-se exclamou tomado de fúria, violentamente:

- Você esteve no meu quarto, à noite, na semana transata, à uma hora da madrugada, depois que fui a sua casa de manhã! Você! Sim, confesse; foi você. 
- A semana passada? De madrugada? Você não está com as ideias muito claras, rapaz! 

     Ao que o “rapaz”, sem responder, ficou durante um minuto refletindo, com o indicador na testa. Mas havia qualquer brilho dissimulado e quase triunfante no seu sorriso pálido e um pouco destorcido pelo medo.

- Foi você! - repetiu, em um sussurro, com intensa convicção - Você entrou e se sentou no meu quarto, sem dizer nada, na cadeira perto da janela, durante uma hora inteira; mais, entre meia-noite e duas da madrugada. Depois, entre duas e três horas, você se levantou e foi embora... Foi você, foi você! Por que quis você me amedrontar? Por que foi me afligir? Não compreendo, mas foi você! - e apesar de ainda estar tremendo de medo, havia fulguração de ódio em seu olhar. - Os senhores virão a saber de tudo isso, diretamente... Eu... eu... Escutem... - mais uma vez, com encarniçada pressa, agarrou as tiras de papel que tinham corrido para os lados, procurando ajuntá-las; mas tremiam em suas mãos convulsas, e por isso custou-lhe endireitá-las.
 - Ou é maluqueira ou delírio - rosnou Rogójin de maneira quase inaudível.

     Afinal a leitura começou. 
     Nos primeiros cinco minutos o autor do inesperado artigo estava sem ar e leu aos supetões, incoerentemente. Mas, com a continuação a sua voz ficou mais forte e começou a exprimir melhor o sentido. Um violento acesso de tosse o interrompia, às vezes. Lá pela metade do artigo já estava rouco. E no fim a sua excitação febril, que ia aumentando com a leitura, alcançou tal ápice que produziu penosa impressão na assistência. 

O Idiota: Terceira Parte (5a) - Ippolít, que lá pelo fim
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