O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
5. Ippolít, que lá pelo fim da arenga de Liébediev adormecera repentinamente
sobre o sofá, acordou de súbito, como se lhe tivessem dado um empurrão.
Sobressaltado sentou-se olhou em redor e ficou muito branco, parecendo muito
espantado de se achar ali; e quando se lembrou de tudo e refletiu uns segundos,
uma expressão de horror lhe veio ao semblante
- Como? Estão saindo? Já
acabou? Terminou? O sol já nasce? - pôs-se a perguntar, inquieto, agarrando a
mão do príncipe - Que horas são? Pelo amor de Deus, que horas são? Peguei no
sono sem querer... Dormi muito tempo? - continuou a indagar como se uma coisa
lhe tivesse arrebatado o destino enquanto dormia.
- Dormiu... quer saber... apenas
uns sete ou oito minutos! - acalmou-o Evguénii Pávlovitch.
Ippolít fixou-o avidamente, distendendo por alguns momentos um raciocínio
vagaroso.
- Só? Então eu... - e deu um suspiro ardente e profundo, como aliviando algum peso. Verificou que
o grupo não se dissolvera, que tinha abandonado a mesa apenas para sentar a
uma outra na peça contígua diante da ceia, que a aurora ainda não chegara e
que, afinal de contas, a unica coisa terminada de fato fora o bestialógico de
Liébediev. Sorriu e um fluxo vermelho, característico da tuberculose, lhe tingiu as
faces. Comentou com ironia a afirmativa de Radómskii: - Esteve contando os minutos enquanto eu dormia, hein, Evguénii Pávlovitch?
Bem reparei esta noite que o senhor não tirava os olhos de cima de mim. Olá,
Rogójin! Vi-o em sonhos agora mesmo. - Franziu uma sobrancelha na direção do
príncipe. como a mostrar-lhe Parfión que ainda permanecia sentado diante da
mesa. Logo mudou de assunto. - Onde está o orador? Que fim levou Liébediev?
Então ele já finalizou aquela xaropada? Como foi a peroração? É verdade,
príncipe, que o senhor disse uma vez que a Beleza salvaria o mundo? Senhores!
exclamou bem alto, dirigindo-se para o grupo inteiro - aqui o príncipe afirma
que a Beleza salvará o mundo! Participo-lhes que a razão desta sua ideia tão
radiosa advém do fato de estar ele apaixonado. Mal embarafustou por aqui
adentro esta noite, logo vi isso na fisionomia dele. Não desaponte. príncipe, senão
me enternecerá ainda mais. Afinal, que espécie de beleza é que salvará o orbe? O
senhor é um cristão fervoroso? Kólia me garantiu que o senhor é cristão convicto.
O príncipe olhava-o atentamente, sem responder.
- Ah! Não responde? - e bruscamente Ippolít acrescentou: - Cuida porventura que sou muito seu amigo?
- Não, não julgo. Já percebi que não gosta de mim grande coisa.
- Como? Mesmo
depois de ontem? Ontem fui sincero com você.
- Eu sabia, ontem também, que
você não gostava de mim.
- E por que será? Inveja? Pensou, desde que me
conhece, que fosse por causa disso, não pensou? Mas, por que estou eu
interpelando-o assim na sua própria casa? Quero um pouco mais de champanha.
Keller, torne a encher a minha taça.
- Você não deve beber mais, Ippolít. Não consinto - e o príncipe lhe arredou para
longe a taça.
- Tem toda a razão. - e concordando, foi assumindo gradualmente um feitio de
quem se torna mais lúcido. - Comentariam.., chamar-me-iam de bêbado, ainda por cima... ou de romântico.
Tanto se me dá. Pois comentem.., ou deixem de comentar! Não concorda
comigo, príncipe? Hei de me importar muito com o que digam depois, hein? Que
pode interessar a qualquer um de nós o que acontece depois? Parece que ainda
não acordei direito... Tive um sonho.., credo! Ainda não se desfez direito. Não lhe
desejaria um sonho destes, príncipe, apesar de nossa antipatia recíproca. Eu cá
adoto o seguinte sistema: não desejo o mal para uma pessoa mesmo que embirre
com ela. Mas.., chega de perguntas e declarações. Príncipe, dê-me a sua mão.
Quero apertá-la calorosamente. Assim! Ainda bem que o senhor a estendeu.
Portanto acreditem que quando aperto a mão de alguém o faço com sinceridade.
Não beberei mais, já que esse é o seu desejo. Que horas serão?
Outra pergunta vã. Se aqui há uma criatura que sabe a hora, e que hora é esta,
exatamente esta, sou eu. Sim, porque ela, a hora, ei-la!... Esse é o tempo exato.
Armaram a ceia acolá naquele canto?! Então isso significa que esta mesa aqui
está livre? Ótimo. Ora muito bem, cavalheiros, eu... Mas os senhores
querem ouvir, ou não querem?... Príncipe, era meu intento ler um pequeno
ensaio. Bem sei que cear é bem mais interessante; ainda assim... - e de súbito, da
maneira mais inesperada, sacou do bolso de dentro do paletó um envelope
grande, selado com uma rodela de lacre, e o depôs em cima da mesa, na sua
frente.
Tal gesto inopinado alarmou a assistência que não esperava por uma coisa dessas
e que, além de um tanto bebida, tinha fome. Evguénii Pávlovitch quase deu um
pulo da cadeira. Gánia caminhou depressa para a mesa. Rogójin fez o mesmo,
mas com uma espécie de raiva sinistra, como se estivesse pressentindo o que ia
acontecer. Liébediev, que já se achava perto, abaixou os olhos perscrutadores
arregalando-os por sobre o envelope, querendo adivinhar o que seria aquilo. Foi
então que o príncipe perguntou com certo receio:
- Isso aí o que é?
- Ao primeiro clarão do sol nascente me “prostrarei”, príncipe. Já lhe disse.
Palavra de honra. O senhor verá! - exclamou Ippolít - Mas.., mas... Cuidam que
não serei capaz de abrir este envelope? – acrescentou volvendo os olhos para os
assistentes, encarando-os um por um, como a desafiá-los indistintamente.
Míchkin reparou que ele tremia de modo quase convulsivo.
- Por que havemos de
pensar uma coisa dessas? - respondeu o príncipe por todos - E por que pensa você isso da gente? Que ideia é essa.., que ideia é essa de ler
isso a estas horas? Que é que tem aí nesse envelope, Ippolít?
- Sim, que é? - perguntavam todos, entre si.
- Que foi que lhe aconteceu? Está querendo o quê? - em breve o rodearam todos, alguns ainda comendo.
Aquele envelope com o
lacre vermelho parecia um imã.
- Escrevi isto anteontem, príncipe, logo depois que prometi vir passar uma
temporada na sua casa. Passei o dia inteiro escrevendo, fui pela noite adentro, e
só ontem foi que acabei. Depois me deitei e tive um sonho...
- Não seria muito
melhor adiar isto para amanhã?
- Amanhã “não haverá mais tempo” - disse
Ippolít ejaculando uma risada histérica - Mas não se assustem. Levarei apenas uns quarenta minutos a ler. Uma hora, no
máximo. E por que não hei de ler se noto tamanha curiosidade, se todos não
tiram os olhos de cima do lacre? Ah! Como um envelope grande, lacrado, causa
sensação, gente! Hum! Vejam só o que é o mistério! Devo soltar o
lacre, ou não, senhores? - perguntou, fixando-os com olhos fulgurantes e rindo
de modo esquisitíssimo - É segredo, gente, segredo! Lembra-se, príncipe, quem
foi que proclamou que já não haveria “mais tempo”? Foi o grande e poderoso
arcanjo do Apocalipse.
- É melhor não ler! - exclamou de repente Evguénii Pávlovitch com um timbre
de tamanha preocupação que alvoroçou os demais.
- Deixe dessa ideia. Não leia,
não! - aconselhou o príncipe também, pondo a mão sobre o envelope.
- Ler para quê? É hora de cear, isso sim - declarou alguém.
- É algum artigo?
Colaboração para alguma revista? - perguntou um outro.
- Alguma droga, na
certa - aventou um terceiro.
O gesto de Míchkin, conquanto tímido, pareceu
haver arrefecido Ippolít.
- Então.., não querem que eu leia? - disse quase a
sussurrar, com certa apreensão os lábios lívidos repuxados por um sorriso em
esgar - Acham que não convém ler? - murmurou, esquadrinhando
vagarosamente as fisionomias dos demais, como a querer cobrar ânimo para
investir sobre todos com um único arremesso difuso. - Estão com medo de quê? - depois ficou a consultar a indecisão do príncipe.
- Por que haveríamos nós de ter medo? - redarguiu este último, mudando de
fisionomia cada vez mais.
Então, dando um salto da cadeira, como se alguma mola o tivesse arrojado,
Ippolít perguntou ao acaso:
- Alguém terá aí uma moeda de vinte Copeques? Ou qualquer outra?
- Tome
disse Liébediev, entregando imediatamente uma. E o fez certo de que o rapaz,
devido ao seu estado de saúde, estivesse em algum delírio.
Voltando-se depressa para a menina, Ippolít pediu:
- Vera Lukiánovna pegue esta
moeda, atire-a para o ar... Cara ou coroa. Se for cara, então quererá dizer que
posso ler!
Vera olhou muito espantada para a moeda, depois para Ippolít, por
último para o pai e amedrontadamente recuando a cabeça, como se achasse que
não devia olhar para a moeda, arremessou-a para o ar. Esta caiu na mesa, com a
efígie virada para cima.
- Ler! Vou ler- grunhiu Ippolít como varado pela decisão do destino. Mais pálido
do que estava era impossível. Nem que aquilo fosse a sua sentença de morte.- Mas... - irrompeu ele despropositadamente metendo-se entre os mais
próximos, após meio minuto de silêncio - Como?! Então ganhei? Foi mesmo
“cara”? - e com um pasmo que era quase súplica, tomando a todos como
testemunhas os encarou. Depois tornou a se voltar para Míchkin com um legítimo
ar de assombro - Mas isto é prova da força psicológica. E... deveras inacreditável,
príncipe! - disse e repetiu, forçando o hausto e parecendo recobrar ânimo - Guarde bem este fato, príncipe não esqueça, alteza, já que, segundo creio, o
senhor costuma colecionar episódios referentes às sentenças de morte... Pelo
menos, me contaram ah, ah!... Deus do Céu, que absurdo sem pé nem cabeça!
Sentou-se no sofá, fincou os cotovelos sobre a mesa e apoiou a cabeça.
- Ora, isto
é positivamente vergonhoso! Importa-me lá que seja vergonhoso! - imediatamente ergueu a cabeça outra vez - Senhores, senhores! Vou romper o lacre do meu envelope - exclamou com repentina decisão - O que aliás não
obriga ninguém a ficar para ouvir. - com as mãos trêmulas de tanta excitação,
abriu o envelope, tirou diversas tiras de papel escritas em letra miúda; começou a
arrumá-las, colocando-as na sua frente.
- Mas de que se trata? Que é que ele vai ler? - murmurou alguém, soturnamente;
mas os outros ficaram calados, sentando-se e espiando com curiosidade.
Contavam com alguma coisa fora do comum. Vera grudou-se à cadeira do pai,
amedrontada, com vontade de chorar. Kólia não deixava também de estar
assustado. Liébediev, que já se tinha sentado, tornou a se levantar e trouxe as
velas para perto de Ippolít, para clarear mais.
- Senhores, o que isto seja, os
senhores vão ver já, por si mesmos - começou Ippolít que bem sabia por que
começava assim. E logo desandou a ler: - “Explicação indispensável”. Mote:
“Après moi le déluge”. Hum! Não estou gostando! Será que escrevi
seriamente um mote tão estúpido? Ouçam, senhores!... Asseguro-lhes que tudo
isto não passa afinal de uma algaravia! Uns pensamentos meus... E se porventura
pensam que há qualquer coisa misteriosa, qualquer coisa proibida, então, de
fato...
- Por que é que não lê isso sem prefácio? - interrompeu-o Gánia.
- E
afetação - ajuntou outra pessoa.
- E muita falação - disse Rogójin que até ali estivera calado.
Ippolít o encarou de repente e quando os seus olhos se encontraram,
Rogójin fez um arreganho vagaroso e ácido, pronunciando arrastadamente esta
opinião:
- Não é por este caminho que vais lá das pernas, rapaz, digo-te.
Ninguém
naturalmente entendeu o que Rogójin quis dizer. Pensaram todos que fosse uma
ideia qualquer vinda em um relance. Mas essa frase causou terrível impressão
em Ippolít que ficou tão trêmulo que o príncipe chegou a estender a mão para
ampará-lo, e até quis gritar, só não o tendo feito porque a voz lhe faltou. Ippolít
levou quase um minuto fixando Rogójin, calado, a respiração presa.
Por fim, retomando o folego, pronunciou, com tremendo esforço:
- Com que
então era você? Sim, você?
- Fui eu o quê? Fui eu o quê? - retrucou Rogójin, espantado.
Ippolít, inflamando-se
exclamou tomado de fúria, violentamente:
- Você esteve no meu quarto, à noite,
na semana transata, à uma hora da madrugada, depois que fui a sua casa de
manhã! Você! Sim, confesse; foi você.
- A semana passada? De madrugada?
Você não está com as ideias muito claras, rapaz!
Ao que o “rapaz”, sem responder, ficou durante um minuto refletindo, com o
indicador na testa. Mas havia qualquer brilho dissimulado e quase triunfante no
seu sorriso pálido e um pouco destorcido pelo medo.
- Foi você! - repetiu, em um
sussurro, com intensa convicção - Você entrou e se sentou no meu quarto, sem
dizer nada, na cadeira perto da janela, durante uma hora inteira; mais, entre
meia-noite e duas da madrugada. Depois, entre duas e três horas, você se
levantou e foi embora... Foi você, foi você! Por que quis você me amedrontar?
Por que foi me afligir? Não compreendo, mas foi você! - e apesar de ainda estar tremendo de medo, havia fulguração de ódio em seu
olhar. - Os senhores virão a saber de tudo isso, diretamente... Eu... eu... Escutem... - mais uma vez, com encarniçada pressa, agarrou as tiras de papel que tinham
corrido para os lados, procurando ajuntá-las; mas tremiam em suas mãos
convulsas, e por isso custou-lhe endireitá-las.
- Ou é maluqueira ou delírio - rosnou
Rogójin de maneira quase inaudível.
Afinal a leitura começou.
Nos primeiros
cinco minutos o autor do inesperado artigo estava sem ar e leu aos supetões,
incoerentemente. Mas, com
a continuação a sua voz ficou mais forte e começou a exprimir melhor o sentido.
Um violento acesso de tosse o interrompia, às vezes. Lá pela metade do artigo já
estava rouco. E no fim a sua excitação febril, que ia aumentando com a leitura,
alcançou tal ápice que produziu penosa impressão na assistência.
continua página 343...
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Segunda Parte
O Idiota: Terceira Parte (5a) - Ippolít, que lá pelo fim
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