volume II
À Sombra das Moças em Flor
Primeira Parte
Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann
(u)
continuando...
Voltei para casa, segurando com desespero os dez mil francos repentinos que me permitiriam dar tantos pequenos prazeres à Gilberte, a qual, agora, estava decidido a nunca mais ver. É claro que a parada na loja do negociante de antiguidades chinesas me alegrara, pois dera me a esperança de só ver a minha amiga reconhecida e contente comigo. Mas, se não tivesse parado, se o carro não tivesse ido pela avenida dos Champs-Élysées, não teria encontrado Gilberte e aquele rapaz. Desse modo, um mesmo fato compreende ramais opostos e a desgraça que engendra anula a felicidade que causara. Acontecera-me o contrário do que ocorre com tanta frequência. Alguém deseja uma alegria e lhe faltam os meios materiais de obtê-la. "É triste-diz La Bruyere -amar sem possuir uma grande fortuna." Não há outro remédio senão tentar liquidar aos poucos o desejo de ter essa alegria. Quanto a mim, ao contrário, obtivera os meios materiais, mas, no mesmo instante, senão por um efeito lógico, ao menos por uma consequência fortuita desse primeiro êxito, escapou-me essa alegria. Aliás, parece que sempre deve nos escapar. É verdade que, normalmente, não costuma escapar na mesma noite em que adquirimos o que a torna possível. Em geral, continuamos a nos esforçar e a ter esperança durante algum tempo. Porém a felicidade jamais pode se realizar. Se as circunstâncias chegam a ser ultrapassadas, vencidas, a natureza transporta a luta de fora para dentro e aos poucos faz mudar bastante o nosso coração, a ponto que ele sinta outra coisa diversa da que vai possuir. E, se foi tão rápida a peripécia que o coração não teve tempo de mudar, nem por isso a natureza desesperada por dominar-nos, é verdade que de uma forma tardia, mais sutil; mas igualmente. Então, no último momento, a posse da felicidade nos é roubada, ou melhor, a mesma posse que, com argúcia diabólica, a Natureza encarrega de destruir a felicidade. Tendo fracassado em tudo que fosse do domínio dos fatos e da vida, impossibilidade última; a impossibilidade psicológica, o que a Natureza fenômeno da felicidade não se produz ou cede lugar às mais amargas realidades. Tinha os dez mil francos na mão. Mas eles já não me serviam para nada; aliás, gastei-os mais depressa ainda do que se tivesse mandado flores todos os dias à Gilberte, pois quando baixava a noite sentia-me tão infeliz que não podia ficar em casa e ia chorar nos braços de mulheres a quem não amava. Já não desejava esforços para agradar Gilberte; agora, voltar à casa de Gilberte só poderia aumentar meu sofrimento. Mesmo tornar a vê-la, o que me parecera tão delicioso na véspera, hoje não me bastaria. Pois ficaria preocupado todas as horas que estivesse longe dela. Tal é a razão por que, quando uma mulher nos causa um mágoa, muitas vezes sem sabê-lo, aumenta seu domínio sobre nós, mas igualmente nossas exigências a seu respeito. Pelo mal que nos causou, a mulher cada vez mais, duplica nossas cadeias, mas também aquelas cadeias que até nos pareciam suficientes para prendê-la de tal forma que nos sentíssemos tolos. Na véspera, se não julgasse aborrecer Gilberte, teria me contentado em conceder algumas raras entrevistas, que agora já não me satisfariam e que substituíram as condições bem diversas. Pois no amor, ao contrário do que se passa: combates, quanto mais somos vencidos mais duras condições impomos; deixar de agravá-las, se, todavia, estivermos em situação de as exigir. Não era o caso quanto a Gilberte. Assim, primeiro preferi não voltar à casa de sua mãe. Continuava a dizer para mim mesmo que Gilberte não me amava, que há muito disso, que podia revê-la se quisesse e, se não quisesse, esquecê-la com rapidez. Essas ideias porém, como um remédio que é inócuo diante de certas afecções, tinham qualquer eficácia contra aquelas duas linhas paralelas que eu revia quando, lembrava de Gilberte e do rapaz, avançando devagar pela avenida Champs Élysées. Era um novo mal, que também acabaria por se deteriorar, imagem que um dia se apresentaria a meu espírito inteiramente depurada do que possuía de nocivo, como esses venenos mortais que a gente manuseia em perigo, como um pouco de dinamite junto à qual podemos acender o sem medo de explosão. Enquanto esperava, em mim havia uma outra pessoa que lutava poderosamente contra essa força malsã; que me representava invariado o passeio de Gilberte ao crepúsculo; para quebrar os assaltos sucessivos da memória, trabalhava com eficiência a minha imaginação, em sentido com a primeira dessas duas forças, é claro que continuava a me mostrar os dois passeantes da avenida dos Champs-Élysées, oferecendo-me outras imagens desagradáveis, extraídas do passado: por exemplo, Gilberte dando de ombros quando sua mãe lhe pedia que ficasse comigo. Porém a segunda força, operando no plano das minhas esperanças, desenhava um futuro mais aprazivelmente amplo do que aquele pobre passado em suma tão restrito. Por um minuto em que revia Gilberte de mau humor, quantos outros não existiam em que eu fantasiava os passos que ela daria para nossa reconciliação, talvez até para o nosso noivado! É verdade que semelhante força de imaginação, dirigida ao futuro, era extraída toda do passado. À medida que se apagasse todo o meu aborrecimento pelo fato de Gilberte ter dado de ombros, diminuiria também a recordação de seu encanto; recordação que me fazia desejar que ela voltasse para mim. Mas achava-me ainda muito longe dessa morte do passado. Continuava sempre a amar aquela a quem de fato julgava detestar. Cada vez que me via bem penteado, de bom aspecto, gostaria que ela estivesse presente. Sentia-me irritado com o desejo, manifestado por muitas pessoas àquela época, de me receberem e a cujas casas me recusava a ir.
Voltei para casa, segurando com desespero os dez mil francos repentinos que me permitiriam dar tantos pequenos prazeres à Gilberte, a qual, agora, estava decidido a nunca mais ver. É claro que a parada na loja do negociante de antiguidades chinesas me alegrara, pois dera me a esperança de só ver a minha amiga reconhecida e contente comigo. Mas, se não tivesse parado, se o carro não tivesse ido pela avenida dos Champs-Élysées, não teria encontrado Gilberte e aquele rapaz. Desse modo, um mesmo fato compreende ramais opostos e a desgraça que engendra anula a felicidade que causara. Acontecera-me o contrário do que ocorre com tanta frequência. Alguém deseja uma alegria e lhe faltam os meios materiais de obtê-la. "É triste-diz La Bruyere -amar sem possuir uma grande fortuna." Não há outro remédio senão tentar liquidar aos poucos o desejo de ter essa alegria. Quanto a mim, ao contrário, obtivera os meios materiais, mas, no mesmo instante, senão por um efeito lógico, ao menos por uma consequência fortuita desse primeiro êxito, escapou-me essa alegria. Aliás, parece que sempre deve nos escapar. É verdade que, normalmente, não costuma escapar na mesma noite em que adquirimos o que a torna possível. Em geral, continuamos a nos esforçar e a ter esperança durante algum tempo. Porém a felicidade jamais pode se realizar. Se as circunstâncias chegam a ser ultrapassadas, vencidas, a natureza transporta a luta de fora para dentro e aos poucos faz mudar bastante o nosso coração, a ponto que ele sinta outra coisa diversa da que vai possuir. E, se foi tão rápida a peripécia que o coração não teve tempo de mudar, nem por isso a natureza desesperada por dominar-nos, é verdade que de uma forma tardia, mais sutil; mas igualmente. Então, no último momento, a posse da felicidade nos é roubada, ou melhor, a mesma posse que, com argúcia diabólica, a Natureza encarrega de destruir a felicidade. Tendo fracassado em tudo que fosse do domínio dos fatos e da vida, impossibilidade última; a impossibilidade psicológica, o que a Natureza fenômeno da felicidade não se produz ou cede lugar às mais amargas realidades. Tinha os dez mil francos na mão. Mas eles já não me serviam para nada; aliás, gastei-os mais depressa ainda do que se tivesse mandado flores todos os dias à Gilberte, pois quando baixava a noite sentia-me tão infeliz que não podia ficar em casa e ia chorar nos braços de mulheres a quem não amava. Já não desejava esforços para agradar Gilberte; agora, voltar à casa de Gilberte só poderia aumentar meu sofrimento. Mesmo tornar a vê-la, o que me parecera tão delicioso na véspera, hoje não me bastaria. Pois ficaria preocupado todas as horas que estivesse longe dela. Tal é a razão por que, quando uma mulher nos causa um mágoa, muitas vezes sem sabê-lo, aumenta seu domínio sobre nós, mas igualmente nossas exigências a seu respeito. Pelo mal que nos causou, a mulher cada vez mais, duplica nossas cadeias, mas também aquelas cadeias que até nos pareciam suficientes para prendê-la de tal forma que nos sentíssemos tolos. Na véspera, se não julgasse aborrecer Gilberte, teria me contentado em conceder algumas raras entrevistas, que agora já não me satisfariam e que substituíram as condições bem diversas. Pois no amor, ao contrário do que se passa: combates, quanto mais somos vencidos mais duras condições impomos; deixar de agravá-las, se, todavia, estivermos em situação de as exigir. Não era o caso quanto a Gilberte. Assim, primeiro preferi não voltar à casa de sua mãe. Continuava a dizer para mim mesmo que Gilberte não me amava, que há muito disso, que podia revê-la se quisesse e, se não quisesse, esquecê-la com rapidez. Essas ideias porém, como um remédio que é inócuo diante de certas afecções, tinham qualquer eficácia contra aquelas duas linhas paralelas que eu revia quando, lembrava de Gilberte e do rapaz, avançando devagar pela avenida Champs Élysées. Era um novo mal, que também acabaria por se deteriorar, imagem que um dia se apresentaria a meu espírito inteiramente depurada do que possuía de nocivo, como esses venenos mortais que a gente manuseia em perigo, como um pouco de dinamite junto à qual podemos acender o sem medo de explosão. Enquanto esperava, em mim havia uma outra pessoa que lutava poderosamente contra essa força malsã; que me representava invariado o passeio de Gilberte ao crepúsculo; para quebrar os assaltos sucessivos da memória, trabalhava com eficiência a minha imaginação, em sentido com a primeira dessas duas forças, é claro que continuava a me mostrar os dois passeantes da avenida dos Champs-Élysées, oferecendo-me outras imagens desagradáveis, extraídas do passado: por exemplo, Gilberte dando de ombros quando sua mãe lhe pedia que ficasse comigo. Porém a segunda força, operando no plano das minhas esperanças, desenhava um futuro mais aprazivelmente amplo do que aquele pobre passado em suma tão restrito. Por um minuto em que revia Gilberte de mau humor, quantos outros não existiam em que eu fantasiava os passos que ela daria para nossa reconciliação, talvez até para o nosso noivado! É verdade que semelhante força de imaginação, dirigida ao futuro, era extraída toda do passado. À medida que se apagasse todo o meu aborrecimento pelo fato de Gilberte ter dado de ombros, diminuiria também a recordação de seu encanto; recordação que me fazia desejar que ela voltasse para mim. Mas achava-me ainda muito longe dessa morte do passado. Continuava sempre a amar aquela a quem de fato julgava detestar. Cada vez que me via bem penteado, de bom aspecto, gostaria que ela estivesse presente. Sentia-me irritado com o desejo, manifestado por muitas pessoas àquela época, de me receberem e a cujas casas me recusava a ir.
Houve uma cena em casa porque não acompanhei meu pai a um jantar oficial, onde
estariam os Bontemps com sua sobrinha Albertine, mocinha que era quase uma criança ainda. Os
diferentes períodos de nossa vida se sobrepõem assim uns aos outros. Recusamos
desdenhosamente, por causa de quem amamos e que um dia nos será indiferente, conhecer a
que hoje nos é indiferente; que amanhã haveremos de amar e que talvez pudéssemos, se
tivéssemos concordado em conhecê-la, amar mais cedo, e que, assim, teria abreviado nossos
atuais sofrimentos, é claro que substituindo-os por outros. Os meus iam se modificando.
Espantava-me verificar, no fundo de mim mesmo, um sentimento num dia, no dia seguinte um
outro, geralmente inspirados por uma esperança ou por um temor em relação a Gilberte. A
Gilberte que trazia dentro de mim. Tive de concordar que a outra, a de verdade, talvez fosse bem
diversa desta, ignorava todos os lamentos relativos a ela e provavelmente pensava muito menos
em mim não apenas do que eu nela, mas nem mesmo como a fazia pensar em mim, quando
estava a sós em conversa com minha Gilberte imaginária, querendo descobrir quais seriam seus
propósitos a meu respeito, fantasiando-a desse modo, com a atenção sempre voltada para mim.
Nesses períodos em que, sempre se enfraquecendo, a mágoa persiste, é necessário
distinguir entre a que nos causa o pensamento constante na própria pessoa, e a que certas
lembranças reavivam, uma frase infeliz pronunciada, um verbo empregado numa carta recebida.
Reservando-nos para descrever por ocasião de um amor futuro as formas diversas do desgosto,
diremos que, desses dois, o primeiro é infinitamente menos cruel que o segundo. Isto se deve a
que a nossa opção da pessoa, vivendo sempre em nós, é embelezada com a auréola que não
tivemos a lhe emprestar e se reveste, senão das frequentes doçuras da esperança, ao menos da
tranquilidade de uma tristeza permanente. (Aliás, convém na imagem de uma pessoa que nos faz
sofrer ter pouco espaço nessas composições que agravam um desgosto de amor, prolongando-o
e atrapalhando sua cura; em certas moléstias a causa é desproporcional em relação à febre
constante de lentidão da entrada em convalescença.) Mas, se a ideia da pessoa a quem recebe o
reflexo de uma inteligência em geral otimista, o mesmo não está nessas lembranças especiais,
essas frases infelizes, essa carta hostil (ainda tivesse recebido de Gilberte nenhuma que o fosse);
dir-se-ia que a própria vive naqueles fragmentos, contudo tão restritos, e com uma força que longe
de possuir na ideia habitual que formamos dela inteira. Não esquecemos a carta como a imagem
do ser amado, numa nostalgia calma e melancólica, lemo-la, devoramo-la na terrível angústia com
que nos comprime uma imagem inesperada. A formação desses tipos de desgostos é bem
diversa; eles vieram de fora e foi pelo caminho do mais cruel de sofrimento que atingiram coração.
A imagem da nossa amiga, imagem que julgamos antiga e autêntica, na realidade é refeita por
nós várias vezes. A lembrança cruel não contem essa imagem restaurada, pertence a outra
época, é uma das raras testemunhas de um passado monstruoso. Mas, como esse passado
continua a existir, em nós mesmos, porque agradou-nos substituí-lo por uma maravilhosa
felicidade; um paraíso onde todos estarão reconciliados, tais lembranças e tais cartas de
advertência da realidade deveriam nos fazer sentir, pelo mal súbito, o quanto estamos dela
afastados nas loucas esperanças de nossa vida cotidiana. Não é que essa realidade deva
permanecer sempre a mesma, embora ocorra às vezes. Na nossa vida há muitas mulheres que
nunca procuramos que responderam muito naturalmente ao nosso silêncio, de modo nenhum
reducional, mas por um outro silêncio análogo. Unicamente, estas, como não as amamos não
contamos os anos passados longe delas e, quando raciocinamos, eficácia do isolamento, esse
exemplo, que a invalidaria, é por nós de como aqueles que acreditam em pressentimentos
desdenham todos os cálculos. que estes não se confirmam. Mas enfim, o afastamento pode ser
eficaz. O desejo e a apetência de novo acabam renascendo nesse coração que hoje nos
despreza. Apenas é preciso dar tempo ao tempo.
Ora, nossas exigências, no que concerne ao tempo são menos exorbitantes que as que o
coração exige para mudar. Primeiramente é o que cedemos com a maior dificuldade, pois nosso
sofrimento é cruel há pressa em vê-lo acabar. Depois, esse tempo, de que precisa o outro para
mudar, servirá ao nosso também para mudar, de modo que quando nos propomos se tornar
acessível terá deixado de ser um objetivo para disso, a mesma ideia de que será acessível, de
que não haverá felicidade; e possamos atingir quando já não nos seja uma felicidade; pois
comporta apenas uma parte da verdade. Alcança-nos quando já nos tornamos indiferentes.
porém, justamente essa indiferença nos fez menos exigentes e nos permite acreditar,
retrospectivamente, que a felicidade nos enfeitiçou numa época em que talvez se nos afigurasse
muito incompleta. Não somos muito exigentes, nem bons juízes, acerca de coisas que não nos
interessam. A gentileza de uma pessoa a quem já não amamos e que ainda parece excessiva à
nossa indiferença, talvez estivesse bem longe de bastar ao nosso amor. Essas palavras ternas, à
oferta de um encontro, pensamos no prazer que nos teriam causado e não em todas aquelas que
desejaríamos ver imediatamente seguidas e cuja realização talvez tivéssemos impedido com essa
avidez. De forma que não é certo que a ventura sobrevindo tarde demais, quando já não podemos
gozá-la, quando já não amamos, seja exatamente a mesma ventura cuja falta outrora nos fez tão
infelizes. Só uma pessoa poderia decidir a respeito, o nosso eu de antigamente; já não existe; e
sem dúvida bastaria que retornasse para que, idêntica ou não, a felicidade se desvanecesse.
Enquanto esperava essas realizações, afinal já sem motivo, de um sonho em que não
mais acreditava, à força de inventar, como no tempo em que mal conhecia Gilberte; palavras,
cartas em que ela implorava o meu perdão, confessava nunca haver amado alguém além de mim,
e me pedia em casamento, uma série de doces imagens incessantemente recriadas acabaram
por ocupar mais lugar em meu espírito que a visão de Gilberte e do rapaz, visão que não era mais
alimentada por coisa alguma. E talvez desde então tivesse voltado à casa da Sra. Swann, não
fosse um sonho que tive; onde um de meus amigos, entretanto para mim desconhecido, agia
comigo com a maior falsidade e achava que eu fazia o mesmo com ele. Bruscamente acordado
pelo sofrimento que o sonho me causava, e vendo que a dor persistia, pensei de novo nele,
procurei me lembrar quem seria o amigo que vira dormindo e cujo nome espanhol já não era
distinguível. Fazendo ao mesmo tempo o papel de José e do Faraó, passei a interpretar meu
sonho.
Sabia que em muitos sonhos não se deve ligar à aparência das pessoas, que podem estar
disfarçadas e terem trocado seus rostos, como esses santos mutilados das catedrais que os
arqueólogos ignorantes andaram refazendo, pondo sobre o corpo de um a cabeça de outro, e
misturando os atributos e os nomes. Os nomes que as pessoas adotam nos sonhos podem nos
levar a erros. A pessoa a quem amamos deve ser nele reconhecida apenas pela intensidade da
dor que experimentamos. E a minha dor me disse que, transformada em rapaz durante o sonho, a
pessoa cuja falsidade recente ainda me causava mal era Gilberte. Lembrei-me então que, da
última vez que a vira, no dia em que sua mãe a impedira de ir a uma matinê dançante, Gilberte,
sincera ou fingidamente, negou-se a crer na retidão de minhas intenções, rindo de forma
estranha. Por associação, tal lembrança trouxe outra à memória. Muito tempo antes, foi Swann
quem não quis acreditar na minha sinceridade, ou que eu fosse um digno amigo para Gilberte.
Inutilmente lhe escrevera. Gilberte trouxera a carta e devolvera com o mesmo riso
incompreensível. De fato, devolvera logo; lembrei-me de toda a cena por trás do bosquezinho.
Fazemo-nos moralistas quando somos infelizes. A antipatia atual de Gilberte surgiu-me como um
castigo infligido pela vida devido à conduta que tivera no dia. A gente crê evitar os castigos,
porque evita os perigos tendo muito cuidado ao atravessar a rua. Mas há castigos internos. O
acidente chega de onde nem se imagina, de dentro, do coração. As palavras de Gilberte: "Se
quiser, continue a lutar" me causaram horror. E imaginava-a em situação idêntica, em sua
rouparia, com o rapaz que vira em sua companhia na avenida dos Champs. Assim como fora tão
insensato há tempos, ao acreditar que estava tranquilamente instalado nos domínios da
felicidade, também o era hoje, quando já desistira feliz, ao ter como seguro que pelo menos me
achava tranquilo e que assim mereceria. Pois, enquanto o nosso coração acolhe de modo
permanente a imagem de outra criatura, não é apenas a nossa felicidade que pode a qualquer
momento ser destruída; quando se desvanece tal felicidade, depois de muito sofrer, tão tentador e
precário como o fora a própria felicidade é o sossego. Meu sossego por regressar, pois o que
penetrou no nosso espírito, modificando nosso moral, nossos desejos, graças a um sonho,
também pouco a pouco se dissipa das que são prometidas a permanência e a duração, nem
mesmo à dor. Aliás, sofrer pelo amor são, como se poderia dizer de certos doentes, seu próprio
contágio. Como só obtêm consolo do próprio ser que causa a sua dor e essa dor já é emanação
dele, é nela mesma que acabam por encontrar um remédio. A criatura amada lhes revela, num
dado momento, esse remédio, pois, a melhoria revolvem dentro de si mesmos, essa dor lhes
mostra um outro aspecto da que perderam, ou tão odiosa que nem mesmo sentem mais desejo
de vê-la, antes de gozar sua presença; seria necessário fazê-la sofrer, ou então dar-lhe a mesma
doçura que a dor lhe empresta é considerada um mérito da qual se tira um motivo de esperança.
Mas, conquanto se apaziguasse em sofrimento que voltara a despertar, não quis retornar à
casa da Sra. Swann muito raramente. Primeiro porque, nas pessoas que amam e não são
escondidos, o sentimento de espera - ainda que de espera inconfessa - em que transforma por si
mesmo, embora de aparência idêntica, faz suceder a um um outro exatamente contrário. O
primeiro era a consequência, o reflexo de antes dolorosos que nos tinham transtornado. A
expectativa do que poder está mesclada de terror, tanto mais que desejamos nesse momento, de
novo nos acontece da parte da pessoa amada, agir por conta própria e não também qual será o
êxito de semelhante ato, que, uma vez cumprido, impede a ação de outro. Em breve, porém, sem
que nos apercebamos de tal, nossa vida, que continua, já não é determinada, como vimos, pela
recordação que sofremos mas pela esperança de um futuro imaginário. Daí então, agradável.
Além disso, a primeira, durando um pouquinho, habituou-nos a viver na expectativa. O sofrimento
que sentimos nos nossos últimos encontros ainda sobrevive em nós, mas já amortecido. Não
temos pressa em renová-lo, tanto mais que agora já não saberíamos o que pedir. Possuir um
pouco mais da mulher amada só faria tornar mais necessário aquilo que não possuímos e que,
apesar de tudo, permaneceria sendo algo irredutível, visto que nossas necessidades se originam
de nossas satisfações.
Por fim, uma última razão se acrescentou posteriormente a esta para fazer com que
cessasse inteiramente minhas visitas à Gilberte Swann. Essa razão, mais tardia, não era que já
houvesse esquecido Gilberte, mas que tentasse esquecê-la mais depressa. É claro que, desde
que minha grande mágoa acabara, as visitas à casa da Sra. Swann tinham voltado a ser, para o
que me restava de tristeza, o calmante e a distração que me foram preciosos no começo. Mas o
motivo da eficácia do primeiro causava também a inconveniência do segundo, isto é, a recordação
de Gilberte estava intimamente associada a essas visitas. A distração só me seria útil caso tivesse
sido posta em luta com um sentimento que a presença de Gilberte já não alimentava, com
pensamentos, interesses e paixões com que Gilberte nada tivesse a ver. Esses estados de
consciência, aos quais o ser amado permanece estranho, ocupam então no espírito um lugar que,
por menor que seja a princípio, já é vedado ao amor que enchia toda a alma. É preciso tentar
nutrir, fazer crescer esses pensamentos, enquanto declina o sentimento que já não passa de uma
lembrança, de modo que os elementos novos introduzidos no espírito lhe contestem, lhe
arranquem uma porção cada vez maior da alma, e finalmente roubem-na toda. Percebia eu que
era essa a única maneira de matar um amor; era bastante jovem e corajoso para tentar fazê-lo,
para assumir a mais cruel das dores, a que nasce da certeza de que, mesmo que demoremos
algum tempo, chegará o dia em que atingiremos nosso objetivo. A razão que expunha agora em
minhas cartas a Gilberte, acerca da recusa em vê-la, era a alusão a um misterioso mal-entendido,
completamente fictício, que teria ocorrido entre mim e ela e sobre o qual primeiro havia esperado
que Gilberte me desse explicações. Mas na verdade nunca, mesmo nas mais insignificantes
relações da vida, são solicitados esclarecimentos por um correspondente que sabe que uma frase
obscura, mentirosa, incriminadora, ali está justamente para que ele proteste, e que se dá por
muito feliz em ver que, desse modo, possui e mantém a iniciativa e o domínio das operações. O
mesmo ocorre nas mais carinhosas relações, onde o amor tem tanta eloquência e a indiferença
tão pouco de curiosidade. Não tendo Gilberte posto em dúvida nem procurado esclarecer o mal
entendido, ele se tornou para mim algo de real a que me referia em todas as cartas. E há nessas
situações falseadas, na afetação de frieza, um sortilégio que nos faz perseverar a força de
escrever: "Desde que nossos corações se desuniram"; para que Gilberte me respondesse: "Mas
não estão desunidos, expliquemo-nos"; acabara por me convencer de que o estavam. Sempre
repetindo: "A vida mudara para nós, mas não apagará o sentimento que tivemos", desejando ouvi-la dizer: "Mas nada mudou, esse sentimento está mais forte que nunca''; vivia com a ideia de que
a vida de fato mudara, e que conservaríamos a recordação do sentimento que já não existia,
como certas pessoas nervosas por terem sofrido uma enfermidade acabam por ficar sempre
doentes. Agora, todas as vezes que tinha de escrever a Gilberte, reportava-me a essa mudança
imaginária, cuja ausência, de agora em diante tacitamente reconhecida pelo silêncio que ela
observaria a tal respeito em suas respostas, subsistiria entre nós. Depois, Gilberte deixou importar
com rejeições. Ela própria adotou meu ponto de vista; e, como nos grandes oficiais em que o
chefe de Estado que é recebido retoma aos poucos algumas expressões que acaba de empregar
o chefe de Estado que o recebe, as vezes em que escrevia a Gilberte: "A vida pôde nos separar, a
recordação em que nos conhecemos há de permanecer", ela não deixava de responder, pôde nos
separar, não poderá nos fazer esquecer as boas horas que nos sempre caras" (ficaríamos muito
embaraçados para dizer por que "a vida separara, qual a mudança que se produzira). Eu já não
sofria muito. No entanto, o dia em que, numa carta, lhe dizia que soubera da morte da nossa
velha vendedora de balas dos Champs-Élysées, ao acabar de escrever estas palavras: "Imagino
que isto te causou pesar. Em mim, veio agitar muitas lembranças", não pude me desmanchar em
lágrimas ao ver que falava no passado, e, como já estava morto quase esquecido, daquele amor
em que, apesar de tudo, jamais, pensar como se fosse vivo, podendo ao menos renascer. Nada
mais que essa correspondência entre amigos que não queriam se ver mais. As vezes Gilberte
tinha a delicadeza das que eu escrevia aos indiferentes e me confessava as mesmas aparentes
marcas de afeto, tão suaves para mim por virem dela. Aliás, aos poucos, toda recusa minha em
vê-la me era menos como ela se me tornasse menos cara, minhas lembranças dolorosas já não
tinham força bastante para destruir, no seu retorno incessante, a formação do prazer que sentia
em pensar em Florença, em Veneza. Nesses momentos, lamentava ter desistido a entrar para a
carreira diplomática e de ter-me construído uma sedentária, a fim de não me afastar de uma
jovem que já não mais esquecera quase por completo. A gente constrói a vida para uma pessoa,
enfim podemos recebê-la em nossa vida, essa pessoa não vem, depois nós acabamos vivendo
prisioneiros na morada que só a ela se dedicou.
Quando se aproximou a primavera, afastando o frio, no tempo dos santos de gelo e das
chuvas de granizo da Semana Santa, como a Sra. Swann achasse que a casa estava muito
gelada, aconteceu várias vezes vê-la receber as visitas envolta em peles, as mãos e os ombros
friorentos desaparecendo sob o branco e brilhante tecido de um imenso regalo e de uma capa,
ambos de marta-zibelina, que não retirara ao entrar e que apresentavam o aspecto das últimas
nevascas de inverno, mais persistentes que as outras e que nem o calor do fogo nem o avanço da
estação haviam logrado derreter. A verdade integral dessas glaciais semanas, contudo já
florescentes, era-me sugerida naquele salão, aonde em breve não voltaria mais, por outras
brancuras mais inebriantes, a das "bolas-de-neve", por exemplo, que reuniam no alto de seus
grandes caules despidos como os arbustos lineares dos pré-rafaelitas, seus globos parcelados
mas unidos, alvos como anjos anunciadores, e que eram envoltos num aroma de limão. Pois a
castelã de Tansonville sabia que abril, mesmo gelado, não é destituído de flores; que o inverno, a
primavera e o verão não são separados por divisões tão herméticas como é levado a crer o
morador dos bulevares que, até os primeiros calores, imagina que o mundo é composto somente
de casas desabrigadas sob a chuva.
Que a Sra. Swann se contentasse com as remessas que lhe fazia o seu jardineiro de
Combray, e que, por intermédio de sua florista "oficial", não preenchesse as lacunas de uma
evocação insuficiente com o auxílio de empréstimos tomados à precocidade mediterrânea, longe
estou de o pretender e não me preocupava com isso. Para sentir a nostalgia do campo, bastava-me que, junto com as nevadas do regalo da Sra. Swann, as bolas-de-neve (que não tinham quem
sabe outro objetivo, na ideia da dona da casa, senão o de compor, aos conselhos de Bergotte,
uma "sinfonia em branco maior" com suas mobílias e sua toalete) me recordassem que o
encantamento da Sexta-feira Santa configura um milagre natural, a que poderíamos assistir todos
os anos se fôssemos sensatos; ajudadas pelo perfume ácido e capitoso das corolas de outras
espécies, cujos nomes ignorava e que tantas vezes me haviam feito parar nos meus passeios de
Combray, tornassem o salão da Sra. Swann tão virginal, tão candidamente florido sem nenhuma
folha, tão sobrecarregado de aromas autênticos como a pequena ladeira de Tansonville.
continua na página 93...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - u)
Volume 3Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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