O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
5.continuando...
“EXPLICAÇÃO INDISPENSÁVEL
Aprês moi le déluge!”
“O príncipe esteve aqui ontem, de manhã. Entre outras coisas me persuadiu a
que me mudasse para a sua vila. Eu tinha certeza de que ele insistiria sobre isso e
falaria pelos cotovelos até me convencer que era ‘mais suportável morrer entre
arvores e gente’, conforme sua expressão. Mas hoje já não disse ‘morrer’ e sim
‘viver’, o que no meu caso vem a dar no mesmo. Perguntei-lhe que queria dizer
com aquelas ‘árvores’ e por que me amolava tanto com elas. E vim a saber,
então, com grande surpresa para mim, que eu próprio dissera naquela tarde que
seria capaz de vir para Pávlovsk só para olhar para as árvores pela última vez.
Quando lhe disse que tanto se me dava morrer olhando para árvores como para
os muros de tijolos que dão para a minha janela, não sendo, pois, preciso tanta
bulha por causa de uns quinze dias, ele imediatamente concordou; mas o verde e
o ar fresco, segundo ele, deveriam produzir, seguramente, uma mudança física
em mim, até talvez aliviando a minha excitação e os meus sonhos. Redargui-lhe,
a rir, que estava falando como um materialista. Como ele jamais mente, essas
suas palavras devem valer alguma coisa.
Tem um belo sorriso; examinei-o
agora. cuidadosamente. Não sei se gosto dele, ou não. Nem disponho de tempo
para perder com isso. Devo observar, porém, que o ódio que senti por ele,
durante cinco meses, começou a se desfazer este mês. Mas.., então, por que
deixei o meu quarto? Um homem condenado à morte não deve deixar o seu
canto. Talvez, quem sabe, tenha eu decidido ir a Pávlovsk para ver o príncipe,
apenas? Se não fosse ter tomado, como tomei, a minha decisão final, deixando de
me consumir aos poucos até ao último instante, nada me teria induzido a deixar o
meu quarto e eu não aceitaria o seu convite para ir morar com ele, para morrer
em Pávlovsk. Devo apressar-me a acabar esta “explicação” antes de amanhã,
seja como for. Não terei, pois. tempo para relê-la, nem para emendá-la. Só a
relerei amanhã, quando for mostrá-la ao príncipe e a duas ou três testemunhas
que porventura
encontre por lá.
Portanto, não deve haver por aqui uma só palavra falsa, tudo
tem de ser a verdade última e solene. E já estou curioso para saber que
impressão isto causará na hora e no minuto da sua leitura. Fiz mal em escrever,
penso eu, que esta é a última e solene verdade; não vale a pena dizer mentiras
por uns quinze dias, já que, de qualquer maneira, não vale a pena viver quinze
dias. Esta é a prova evidente de que não quero senão escrever a verdade.
(N.B.:
Não esquecer o pensamento: não estarei maluco neste instante, ou melhor, nestes
minutos? Já me asseguraram, positivamente, que os tuberculosos, em seu último
estágio, perdem a cabeça por tempos. Devo verificar isto amanhã, pela
impressão que causar no meu auditório. Ora aí está um caso que tenho de
verificar, do contrário, como agirei?)
Está me parecendo que escrevi algo terrivelmente estúpido; mas, como já disse,
não tive tempo para corrigir.
Além disso prometi a mim mesmo, de propósito, não emendar uma linha sequer
deste manuscrito, mesmo se perceber que me contradigo em cada cinco linhas.
O que desejo decidir depois, com a leitura de amanhã, é justamente se a
sequência lógica de minhas ideias está correta; quero perceber os meus erros e
por conseguinte se tudo quanto andei pensando aqui neste quarto é verdade ou
delírio.
Se eu devesse deixar o meu quarto, há dois meses atrás, e tivesse dito adeus às
paredes de Meyer, estou certo que teria ficado triste. Mas agora não sinto nada.
Sei que vou deixar o meu quarto e aquela parede para sempre. Portanto, a minha
convicção de que quinze dias não valem nada, e que não adianta sentir nem
lastimar coisa alguma, se assenhoreou de toda a minha natureza e já pode ditar
os meus sentimentos. Mas é isso certo? É verdade que a minha natureza já se
deixou vencer? Se eu for torturado por alguém, agora, naturalmente que ainda
darei gritos, vociferarei e não direi que é indiferente sofrer só porque tenho
apenas duas semanas de vida. Mas, na verdade, só tenho mesmo duas semanas
para viver, e não mais?
Aquele dia, em Pávlovsk, eu menti.
E... não me disse nada, pois nunca me viu. Mas, há cerca de uma semana, me
trouxeram um estudante chamado Kisloródov. Por suas convicções se trata de
um materialista, de um ateu, de um niilista. E foi por isso que o mandei chamar.
Eu precisava de um homem que me dissesse a verdade nua, isto é, sem
cerimônia nem brandura. E foi o que ele fez, não só com desembaraço e sem
preâmbulo, mas com satisfação óbvia (que excedeu ao que eu pensava). Provou
me que eu tenho mais ou menos um mês de vida, talvez um pouco
mais, caso as circunstâncias me sejam favoráveis, sendo porém mais provável
que morra antes. Em sua opinião posso morrer subitamente, amanhã, por
exemplo. Há casos assim, e antes de ontem, por exemplo, em Kolómna, uma
jovem senhora tuberculosa, cujas condições eram idênticas às minhas, ia sair
para ir ao mercado comprar seus mantimentos quando repentinamente se sentiu
mal e caiu sobre um sofá; deu um suspiro e morreu.
Tudo isso Kisloródov me
disse sem rodeios e insensivelmente, como se me estivesse fazendo uma honra,
ou melhor, como que dando-me a entender que me considerava, a mim
também, um ser superior, igual a ele, imbuído do mesmo espírito de negação, e
que, é claro, não se importa de morrer.
De qualquer modo o fato é verdadeiro:
um mês, não mais. E estou perfeitamente convencido de que ele não se
equivocou.
Admirei muito ter o príncipe adivinhado que eu tinha ‘maus sonhos’.
Expressou estas palavras sinceras: que em Pávlovsk a minha excitação e os meus
sonhos se modificariam. E por que sonhos? Ou ele é um pouco doutor, ou
excepcionalmente inteligente, e vê habilmente as coisas (mas o que ele é, depois
de tudo quanto disse e fez, é um idiota; quanto a isso não pode haver dúvida).
Antes dele entrar eu tive, e até parece coincidência, um lindo sonho (apesar de, a
falar verdade, ter sempre milhares de sonhos como esse). Adormeci, creio que
uma hora antes dele chegar, e sonhei que estava em um quarto que não era o
meu, melhor mobiliado e mais claro.
Havia um sofá, uma cômoda, um guarda-roupa e a minha cama que era grande
e larga, coberta com uma colcha de seda verde. Mas no quarto deparei com um
bicho asqueroso, uma espécie de monstro. Parecia um escorpião, mas não era
um escorpião; era mais asqueroso e mais horripilante. Assim julguei porque não
havia nada semelhante a ele na natureza e parecia ter vindo ali por encomenda,
expressamente, havendo portanto, nisso, qualquer coisa de misterioso. Examinei
o com muito cuidado. Era pardo, coberto com uma carapaça; tratava-se de um
réptil com sete polegadas de comprido, dois dedos de espessura na cabeça,
rematando em ponta na cauda, de forma que esta só tinha um sexto de polegada
de largura. Quase duas polegadas para baixo da cabeça e em ângulo de quarenta
e cinco graus com o corpo saíam duas pernas, uma de cada lado, do
comprimento aproximado de quatro polegadas; de maneira que toda a criatura
tinha a forma de um tridente, olhada de cima. Não pude verificar bem a cabeça.
mas saíam dela dois fiapos duros, como bigodes, curtos, também marrom,
lembrando duas agulhas fortes. Havia dois fios iguais àqueles na cauda e na
extremidade de cada perna perfazendo oito,
ao todo. O bicho corria pelo quarto, muito depressa, com a sua cauda e as suas
pernas; e quando corria o corpo e as pernas rastejavam como serpente, com
extraordinária desenvoltura, apesar da carapaça; e era horrível de ver-se. Eu
estava com um medo terrível de ser mordido. Sabia que ele era venenoso, mas o
que mais que tudo me aterrorizava era ignorar quem o teria posto no meu quarto,
qual a intenção e qual o segredo. Meteu-se debaixo da cômoda; depois debaixo
do guarda-roupa e trepou pelos cantos. Sentei-me em uma cadeira e ergui as
pernas. O bicho andava à vontade pelo quarto e sumiu perto da minha cadeira.
Procurei-o com terror e como estava sentado com as pernas erguidas calculei
que não subisse por mim acima. De repente ouvi, atrás de mim, quase à altura da
minha cabeça, um ruído, como de uma coisa que estivesse sendo raspada. Voltei
me e vi que o réptil subia pela parede, já estando ao nível da minha cabeça e
tocando o meu cabelo com a cauda que se virava e enrolava com extraordinária
rapidez. Dei um pulo e o bicho desapareceu. Fiquei com medo de ir para a cama,
durante a noite, pois podia ser que ele se insinuasse debaixo do travesseiro. Minha
mãe entrou no quarto com um conhecido dela e tentou pegar o bicho. Eles
estavam muito mais calmos do que eu poderia estar, sem medo absolutamente. E
não perceberam o meu pavor. O réptil recomeçou a rastejar. O demoniozinho
queria alguma coisa! E correu desta vez do quarto para a porta, rastejando de
modo mais revoltante ainda. Então minha mãe abriu a porta e chamou Norma, a
nossa cachorra felpuda terra-nova (que já morreu há mais de cinco anos).
Arremessou-se ela para o quarto e estacou diante do réptil. O bicho parou
também, mas ainda se contorcendo; e raspava o chão com as patas e a cauda. Os
animais não sentem terror pelo mistério, a não ser que eu esteja enganado. Mas
naquele momento me pareceu que havia um terror extraordinário em Norma.
Um terror deprimente, como se a cadela também tivesse notado que ali estava
algo de poderoso e estranho. Começou a recuar aos poucos, diante do réptil que
deu em rastejar também vagarosamente para ela, querendo decerto pegá-la
para a picar. Apesar de apavorada, Norma olhava para aquilo com fúria, embora
tremendo. De repente abriu com certo jeito os dentes, mostrando as tremendas
mandíbulas vermelhas, agachou-se, preparada para o salto, e subitamente pegou
o bicho com os dentes. O réptil lutou para se livrar e Norma outra vez o agarrou
quando já escapulia, duas vezes prendendo-o todo nas mandíbulas, parecendo
engoli-lo enquanto dava safanões, moendo a carapaça entre os dentes, com as
pernas e a cauda dependuradas para fora da bocarra. E como aquilo ainda
assim se mexia horrípilantemente! Nisto Norma deu um grito agudo e
lancinante. O animal conseguira picar-lhe a língua. Ganindo e latindo, abriu a
boca, por causa da dor, e eu vi o bicho, apesar de cortado em dois, ainda mexer
lá dentro, lançando do seu corpo esmagado uma porção de um fluido branco
como o que sai quando se esmaga uma barata... Nisto acordei e o príncipe
chegou.”
- Senhores - disse Ippolít, interrompendo inesperadamente a leitura e
parecendo envergonhado, quase -, não tive tempo de reler isto e acho que escrevi
demais, muita coisa até sem necessidade. Este sonho, por exemplo...
- De pleno
acordo - apressou-se Gánia em concordar.
- Há aqui muita coisa demasiado
pessoal, devo confessar. Isto é. quase que só falo de mim.
E dizendo isso, Ippolít fez um ar de enfado e de cansaço, limpando o suor da
fronte com um lenço.
continua página 343...
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O Idiota: Terceira Parte (5b) - Explicação Indispensável
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