em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(e)
continuando...
Como sempre, porém mais facilmente enquanto o pai se afastara para conversar com o advogado, eu olhava a Srta. de Stermaria. Assim como a sua autoridade ousada, sempre bela as suas atitudes, feito quando, com os cotovelos apoiados na mesa, erguia o copo acima dos antebraços; a secura do olhar esgotado; a dureza fundamental e familiar que se percebia, mal encoberta inflexões pessoais; no fundo da voz, e que havia chocado minha avó; uma estátua de cânone atávico ao qual ela voltava quando acabava de expressar seu pensamento com um olhar ou uma entonação de voz; tudo isso fazia imaginar, a que contemplava, a linhagem que lhe legara essa insuficiência de simpatia humana; lacunas de sensibilidade, uma carência de amplitude de caráter em sua forma que a todo instante fazia falta. Mas certos olhares que passavam rapidamente no fundo árido de suas pupilas e nos quais sentia-se aquela doçura quase humilde; o gosto predominante dos prazeres dos sentidos confere à mulher mais orgulhosa que algum dia acabará dando valor apenas a quem lhe proporcionar tais prazeres, seja um cômico ou um saltimbanco, pelo qual talvez um dia largará o marido; em certo matiz de pele, vivo e rosado, que se espalhava por suas faces pálidas, semelhante ao que coloria de encarnado o coração das ninfeias do Vivonne, eu julgava sentir que ela facilmente me permitiria que fosse nela buscar o gosto daquela vida tão poética que levava na Bretanha, vida à qual, fosse por hábito, por distinção inata, por nojo da pobreza ou da avareza dos seus, parecia dar tão pouco valor, e que, no entanto, ela mantinha eclusa em seu corpo. Na fraca reserva de vontade que lhe fora transmitida e que dava à sua expressão algo de covarde, talvez não encontrasse a Srta. de Stermaria apoio suficiente para resistir. O chapéu de feltro cinza, encimado por uma pluma um tanto fora de moda e pretensiosa, que ela usava invariavelmente em cada refeição, fazia-a mais simpática ainda a meus olhos, não porque se harmonizasse com sua pele argêntea e rosada, e sim porque, por ele, imaginava eu que não fosse rica, aproximando-a de mim. Obrigada a uma atitude convencional devido à presença do pai, mas guiando-se já por princípios diversos dele, para olhar e classificar as pessoas que estavam à sua frente, talvez visse em mim não a linhagem insignificante, mas o sexo e a idade. Se um dia o Sr. de Stermaria saísse sem ela, principalmente se a Sra. de Villeparisis viesse sentar-se em nossa mesa e assim lhe desse a nosso respeito uma opinião que me encorajasse a me aproximar dela, talvez pudéssemos trocar algumas palavras, marcar um encontro, ligar-nos mais. Num mês em que ela ficasse sozinha sem os pais, em seu castelo romanesco, talvez passeássemos ao crepúsculo, quando suavemente reluzissem as flores róseas das sarças sobre a água ensombrecida, debaixo dos carvalhos onde vinham morrer as ondas. Juntos, percorreríamos essa ilha imaginada por mim com tanto encanto porque teria enfeixado a vida habitual da Srta. de Stermaria e que repousava na memória de seus olhos. Pois parecia-me que não a possuiria de verdade senão ali, quando tivesse atravessado aqueles lugares que a rodeavam de tantas recordações, véu que o meu desejo queria arrancar, desses que a natureza interpõe entre a mulher e algumas criaturas (com a mesma intenção com que coloca, para todos, o ato de reprodução entre os seres humanos e o mais vivo prazer, e, no caso dos insetos, entre estes e o néctar, o pólen que eles devem transportar) a fim de que, enganados pela ilusão de possuí-la, assim de modo mais completo, sejam forçados a se apoderar primeiro das paisagens em que ela vive, e que, mais úteis para sua imaginação que o prazer sensual, não teriam contudo, sem ele, força bastante para atrair os homens. Mas tive de deixar de olhar a Srta. de Stermaria, pois seu pai, considerando sem dúvida que entrar em relações com uma personalidade importante era um ato curioso e breve, que se bastava a si mesmo e que, para desenvolver todo o interesse que comportava, não exigia mais que um aperto de mão e um olhar penetrante sem conversação imediata nem relações posteriores, já se despedira do advogado e voltara a sentar se à frente dela, esfregando as mãos como um homem que há de fazer uma preciosa aquisição. Quanto ao advogado, tão logo passara a prior emoção daquela entrevista, como nos outros dias, ouviram-no por alguns instantes dirigir-se ao mordomo:
- Mas eu não sou rei, Aimé; vá você ver o rei... Diga, meu caro presidente, é verdade que
essas trutas têm muito bom aspecto? Vamos pedi-las a Aimé. Parecem-me bem recomendáveis
esses peixinhos que você tem aí; traga-nos uns tantos deles, Aimé. - Repetia o tempo todo o
nome de Aimé, de modo que, quando tinha - convidado para jantar, este lhe dizia:
"Vejo que conhece muito bem a casa", e julgava dever também pronunciar constantemente
"Aimé", devido à predisposição de certas pessoas em achar espirituoso e elegante imitar
literalmente aquelas a quem se encontram, atitude em que entram, ao mesmo tempo, a timidez, a
vulgaridade e a idiotice. Repetia-o sem parar mas com um sorriso, pois fazia questão de ostentar,
a um tempo, as boas relações com o mordomo e sua superioridade sobre ele. E o próprio
mordomo, toda vez que era pronunciado o seu nome, sorria um ar de carinho e orgulho
mostrando que reconhecia a honra e compreendia o gracejo.
Eram sempre aborrecidas para mim as refeições naquele vasto restaurante do Grande
Hotel, normalmente apinhado, mas tornavam-se ainda mais quando chegava, para passar alguns
dias, o proprietário (ou gerente-geral eleito por assembleia de acionistas, não sei) não só daquele
hotel como de sete outros situados em todas as partes da França, e que se habituara a estar
sempre numa roda-viva de hotel em hotel, uma semana em cada um. Então, quase a princípio do
jantar, aparecia todas as noites, na entrada da sala de jantar, homenzinho de cabelos brancos e
nariz vermelho, de impassibilidade extraordinária, e que era, ao que parece, conhecido, tanto em
Londres como em Monte Cario, como um dos primeiros hoteleiros da Europa. Uma ocasião eu
havia saído um instante no início do jantar, como na volta passasse por todos, saudou-me, sem
dúvida para mostrar que eu estava em sua casa, mas com frieza cujo motivo não consegui saber
se se tratava da reserva de alguém que não esquece do que representa, ou do desdém por um
freguês sem importância daqueles que, ao contrário, tinham grande importância, o gerente-geral
se via, igualmente frio, porém mais profundamente, as pálpebras abaixadas; espécie de respeito
pudico, como se tivesse à sua frente, numa cerimônia o pai da morta ou o Santo Sacramento. A
não ser por esses cumprimentos e raros, não fazia um só movimento, como para mostrar que
seus olhos davam a impressão de lhe saltarem do rosto, viam tudo; regulavam, asseguravam no
"Jantar do Grande Hotel" não só o acabamento dos detalhes, mas a harmonia do conjunto.
Evidentemente, ele se sentia muito mais que um regente de orquestra; sentia-se um verdadeiro
generalíssimo. Julgando que uma contemplação levada ao máximo de intensidade era o bastante
para lhe assegurar que tudo estava preparado, que nenhum erro cometido poderia acarretar a
desordem; para assumir enfim suas responsabilidades, abstinha-se não só de qualquer gesto,
como até de mover os olhos petrificados, pela atenção que abarcava e dirigia a totalidade das
operações. Eu sentia que mesmo os movimentos da minha colher não lhe escapavam e,
conquanto se eclipsasse logo após tomada a sopa, a revista que acabava de fazer me tirava o
apetite para o resto da refeição. Seu apetite, no entanto, era muito bom, como se podia ver
quando almoçava como simples particular, à mesma hora que os demais, na sala de jantar. Sua
mesa apenas tinha uma peculiaridade: é que, ao lado, enquanto ele comia, o gerente habitual
permanecia de pé o tempo inteiro conversando. Pois, sendo subordinado ao gerente-geral,
procurava lisonjeá-lo e tinha-lhe muito medo. Durante essas refeições, eu sentia menos medo,
pois o gerente, perdido no meio dos clientes, assumia a discrição de um general sentado em um
restaurante onde há também soldados, e que tem o ar de não se ocupar deles. Todavia, quando o
porteiro, cercado de seus criados, me anunciava:
"Amanhã ele vai para Biarritz e depois para Cannes" eu respirava mais livremente.
Minha vida no hotel se tornara não só triste, porque não tinha relações, mas incômoda,
porque Françoise, em compensação, fizera muitas. Pode parecer que tais relações nos teriam
facilitado muita coisa. Pelo contrário. Os proletários, embora lhes fosse muito difícil serem tratados
como conhecidos por Françoise e só o conseguissem à custa de certas finezas para com ela, em
compensação, quando por fim lhe alcançavam as graças, eram as únicas pessoas a lhe
merecerem consideração. Seu velho código lhe ensinava que nada devia aos amigos dos patrões
e, se estivesse apressada, podia mandar embora uma dama que tivesse vindo visitar minha avó.
Mas, no tocante às próprias relações, ou seja, com as raras pessoas do povo admitidas à sua
difícil amizade, suas ações eram reguladas pelo protocolo mais sutil e absoluto. Assim Françoise,
tendo travado relações com o cafeteiro do hotel e com uma criadinha de quarto que fazia vestidos
para uma senhora belga, não subia mais para preparar as coisas de minha avó imediatamente
após o almoço, e sim uma hora mais tarde, porque o cafeteiro queria lhe preparar café ou chá na
cafeteria, e a criada de quarto lhe pedia que fosse vê-la coser, e recusar-se a tal era-lhe
impossível, pois tais coisas não se fazem. Além disso, a criadinha de quarto merecia-lhe atenções
especiais, pois era órfã e fora educada por uma família estranha, em cuja casa costumava passar
alguns dias. Tal situação excitava a piedade de Françoise bem como o seu desdém benevolente.
Ela que possuía família, uma casinha que herdara dos pais e onde o irmão criava algumas Vacas,
não podia considerar sua igual uma moça sem lar nem parentes. E, como esta esperava o dia 15
de agosto para visitar os benfeitores, Françoise não podia deixar de repetir:
- Ela me faz rir. Diz: espero ir para casa no dia 15 de agosto, casa, diz ela! E nem sequer é
sua terra; trata-se de pessoas que a recolheram, e chama de sua casa como se fosse
verdadeiramente sua. Pobre menina! Bastante pobrezinha para não se dar conta do que é ter uma
casa.-
Embora Françoise não se relacionasse senão com criadas de quarto trazidas pelos
hóspedes, as quais jantavam com ela no "refeitório dos serviçais" e que, diante a sua touca de
rendas e seu fino perfil, a tomavam por uma dama, talvez nobre, requerida pelas circunstâncias
ou pelo afeto a dama de companhia de minha avó, se, palavra, Françoise só conhecesse pessoas
que não trabalhavam no hotel, o mal teria sido grande; pois ela não teria podido impedi-las de nos
servir para a coisa, simplesmente porque, em caso algum, e mesmo desconhecidos dela, não nos
serviria de nada. Mas ela também se ligara em amizade com o copeiro, com um ajudante de
cozinheiro e com uma primeira camareira. No que diz respeito à nossa vida diária, foi que
Françoise, que no dia em que ela chegou, quando ainda não conhecia ninguém, tocava a
campainha por qualquer coisa em horas inoportunas, quando nem minha avó nem eu teríamos
coragem de fazê-lo, e respondia, se lhe fazíamos uma ligeira observação:
"Mas a gente paga bem caro pelo serviço" como se pagasse do próprio bolso, agora que
era uma personalidade da cozinha, o que nos parecera de bom agouro para nossa comodidade.
Se minha avó ou eu tínhamos frio nos pés, Françoise, na mesma hora, achando perfeitamente
normal, não se atrevia a tocar; afirmava que aquilo não pegaria bem, pois obrigaria a
reacenderem os fornos ou incomodaria os criados, que ficavam descontentes. E terminava com
uma locução que, apesar da forma insegura que a pronunciava, não era menos clara e nos fazia
perder a paciência:
"A Vê é que...". Não insistíamos, de medo que nos saísse com uma outra, bem grave:
"Seja o que for..." De modo que não mais podíamos ter água quente. Françoise se tornara amiga
da pessoa a quem cabia esquentar a água. Por fim, nós também fizemos uma amizade, embora
sem que minha avó quisesse, pois ela e a Sra. de Villeparisis se encontraram certa manhã em
frente, passando por uma porta, e foram obrigadas a se falarem, não sem trocarem gestos de
surpresa e de hesitação, e executando movimentos de recuo, de que, afinal, fazendo protestos de
delicadeza e alegria, como em certas cenas de uma peça onde dois atores monologam há muito
tempo, cada um de seu lado, acompanhando os passos um do outro, fazendo de conta que não
se viram ainda, e de repente se reconhecem, não podem crer nos seus olhos, entrecortam suas
frases e finalmente juntos - o coro vindo após o diálogo - se lançam nos braços um do outro. Ao
de um instante, a Sra. de Villeparisis, por discrição, quis deixar a minha avó que ao contrário,
reteve-a até o almoço, desejando saber como procedia ela para mais cedo o correio e para que
lhe servissem boa carne grelhada; pois a Villeparisis, muito gulosa, gostava bem pouco da
cozinha do hotel. Serviam refeições que minha avó sempre citando a Sra. de Sévigné, a "tão
magníficas que nos matavam de fome". E a marquesa todos os dias aceitava sentar-se à nossa
mesa, enquanto esperava que a servissem; permitia que nos levantássemos ou nos
incomodássemos por sua presença e demorávamos à mesa, conversando com ela, tendo
terminado naquele momento sórdido em que as facas jazem na toalha junto dos desfeitos. De
minha parte, a fim de conservar, para poder gostar de que estava na extremidade da terra,
esforçava-me por olhar somente o mar, procurar nele os efeitos descritos por Baudelaire e olhar
cair sobre a mesa senão nos dias em que haviam servido um monstro marinho que, ao contrário
das facas e dos garfos, era de conter épocas primitivas, quando a vida começava a surgir no
Oceano, cujo corpo, dotado de inumeráveis vértebras, de nervos fora construído pela natureza
mas segundo um plano arquitetônico de catedral polícroma dos mares. Assim como o barbeiro
que, ao ver que um oficial a quem com especial consideração reconhece um freguês que acaba
de entrar para conversar com ele, se regozija ao compreender que são da mesma época não
pode deixar de ir sorrindo, em busca da saboneteira, pois no estabelecimento, juntam-se às
tarefas ordinárias de simples salão, os prazeres sociais, e até mesmo aristocráticos. Assim Aimé,
vendo que Villeparisis encontrara em nós amizades antigas, ia em busca de taça boa com o
mesmo sorriso orgulhosamente modesto e sabiamente de uma dona-de-casa que sabe se retirar
no momento oportuno. Dir-se-ia de um pai feliz e enternecido que vigia, sem perturbá-la, a ventura
de um moço que principiou em sua mesa. De resto, bastava que pronunciassem diante de uma
pessoa dotada de um título, para que Aimé parecesse feliz. Françoise, diante de quem não se
podia dizer "o Sr. conde Fulano" a fisionomia ficasse sombria e suas palavras fossem secas e
breves, fazia com que ela estimasse a nobreza em grau inferior a Aimé. Aliás, Françoise possuía
uma qualidade que nos outros é o maior dos defeitos: era orgulhosa. Não era do tipo agradável de
Aimé, tipo que sente e manifesta um vivo prazer quando suplicante, mas inédito, que não saiu nos
jornais. Françoise, ao contrário, demonstrava espanto. Se houvessem dito diante dela que o
arquiduque de cuja existência jamais suspeitara, não havia morrido como ainda vivia, teria
respondido "sim", como se o soubesse há muito. Françoise, mesmo de nossos lábios, lábios de
quem ela chamava seus patrões; que a tínhamos quase inteiramente do mesmo modo que um
parente; não podia ouvir o nome de um nobre sem ter de reprimir um movimento; da família a que
pertencia, ocupasse na sua aldeia uma posição de destaque, e que só devia ser perturbada na
consideração de que gozava pelos mesmos nobres em cuja casa Aimé, pelo contrário, servira
como criado desde a infância, se é que não fora educado por caridade. Assim, para Françoise, a
Villeparisis é que tinha de pedir perdão por ser nobre. Mas, ao menos na França precisamente o
talento; a única ocupação dos grão-senhores e das grandes Françoise, obedecendo à tendência
dos criados a sempre andarem recolhendo respeito de seus patrões, informações fragmentárias
sobre suas relações com as outras pessoas, das quais às vezes extraem deduções errôneas -
como o faz homens acerca da vida dos animais -, achava a cada instante que estava em falta
conosco. Conclusão a que aliás chegava com facilidade tanto devido ao exagerado por nós
quanto ao grande prazer que sentia em nos ser desagradável. Tendo porém constatado, sem erro
possível, as mil atenções que a Sra. de Villeparisis, tinha para conosco e até para com ela,
Françoise perdoou-lhe o fato de ser marquesa; como ao mesmo tempo, nunca havia deixado de
respeitá-la por seu título, de preferi-la a todos os nossos conhecidos. A verdade é que nenhum
deles se esforçava ser tão continuamente amável. Toda vez que a minha avó reparava num livro a
Sra. de Villeparisis estava lendo, ou dizia ter achado muito bom. Algumas frutas lhe mandara uma
amiga, uma hora após um lacaio subia para nos trazer tais frutas. E, quando a víamos depois,
para responder aos nossos agradecimentos, ela se contentava em dizer, dando a impressão de
procurar desculpar; com o pretexto de uma utilidade especial:
"Não é uma obra-prima, mas já chegam tão tarde, é necessário ter algo para ler" ou "é
sempre mais prudente frutas confiáveis quando se está à beira-mar."
- Mas parece que vocês não comem ostras nunca. - disse à Villeparisis (aumentando a
minha náusea daquela hora, pois a carne viva das ostras me repugnava ainda mais que a
viscosidade das medusas que me incomodavam na praia de Balbec) ; aqui são excelentes! Ah,
vou dizer à minha criada de que vá pegar sua correspondência ao mesmo tempo que a minha.
Como? Sua filha lhe escreve todos os dias? E o que é que vocês encontram para dizer uma à
outra?
Minha avó se calou, creio que por desdém, ela que repetia para mamãe as palavras da
Sra. de Sévigné:
"Logo que recebo uma carta, já queria ter outra, antes de recebê-la. Poucas pessoas são
dignas de compreender o que sinto."
Receei que aplicasse à Sra. de Villeparisis a conclusão:
"Procuro a minoria que me corresponde e evito os outros."
Mas ela mudou de assunto para elogiar as frutas que Villeparisis nos mandara na véspera.
Eram, de fato, tão lindas que o gerente, desgosto de ver suas compoteiras desprezadas, me
dissera:
- Sou como o senhor; tenho um fraco maior pelas frutas do que por qualquer outra. Minha
avó disse a sua amiga que ainda mais lhe agradecia, pois as que serviam no hotel em geral eram
detestáveis.
- Não posso dizer como a Sra. de Sévigné.- acrescentou - que, se não quisermos ter frutas
ruins, seríamos obrigadas a mandá-las vir de Paris.
- Ah, sim, a senhora lê a Sra. de Sévigné. Vejo-a desde o primeiro dia com suas Cartas
(esquecia que nunca vira a minha avó no hotel antes de reencontrá-la naquela porta). Não acha
que ela é um pouco exagerada com aquela preocupação constante a respeito da filha; parece que
fala demais no assunto para ser sincera. Falta-lhe naturalidade. Minha avó achou inútil a
discussão e, para evitar ter de falar de coisas de que gostava diante de alguém que não podia
compreendê-las, escondeu com a valise as ''Memórias da Sra. de Beausergent.''
Quando se encontrava com Françoise, no momento que esta chamava de "meio-dia", em
que, com sua bela touca e cercada da consideração geral, descia para comer "no refeitório dos
criados", a Sra. de Villeparisis a detinha para pedir notícias nossas. E Françoise nos transmitia os
recados da marquesa:
- Ela disse: "Dê-lhes bom-dia de minha parte" -, imitando a voz da Sra. de Villeparisis, da
qual julgava citar textualmente as palavras, não as deformando menos que Platão as de Sócrates
ou São João as de Jesus.
Naturalmente, Françoise ficava muito sensibilizada com essas atenções. Quando minha
avó afirmava que a Sra. de Villeparisis fora deslumbrante na juventude, não acreditava, achando
que esta mentia por interesse de classe, pois os ricos se defendem uns aos outros. É verdade que
daquela beleza de outrora subsistiam bem poucos indícios, e, para reconstituir com eles a beleza
perdida, seria preciso ser mais artista que Françoise. Pois, para bem compreender o quanto uma
velha pode ter sido bonita, não basta olhar mas traduzir cada feição.
- Preciso me lembrar de lhe perguntar um dia se não me engano ao achar que existe algum
parentesco entre ela e os Guermantes - disse minha avó, que com isso me indignou.
Como era possível que eu acreditasse na origem comum de dois nomes que haviam
entrado em mim através de portas tão diferentes, um pela porta baixa e vergonhosa da
experiência, outro pela porta de ouro da imaginação? Via-se passar por ali, já por alguns dias,
com vistoso aparato, a princesa de Luxemburgo, alta, ruiva, linda, com um nariz um tanto saliente;
passava algumas semanas na região. Havia parado diante do hotel, e um lacaio fora falar ao
gerente, voltando a carruagem para pegar um cesto de frutas maravilhosas (que uma em uma só
corbelha, como a baía, estações diferentes), com um cartão:
"A Princesa de Luxemburgo", onde estavam escritas algumas palavras a lápis. A que
viajante principesco, que permanecesse incógnito no hotel, poderiam ser destinadas aquelas
glaucas ameixas, luminosas e esféricas, como a redondeza do mar naquele momento; aquelas
uvas transparentes, pendentes do galho seco como um claro dia de outono; aquelas peras de um
azul celeste? Pois certamente a pessoa a quem a princesa vinha visitar não podia ser a amiga de
minha avó. Entretanto, na tarde seguinte, a Sra. de Villeparisis nos mandou aquele cacho de uvas
fresco e dourado além de umas ameixas e peras que logo reconhecemos.
Eu me indagava por que acaso, na luneta indiferente pela qual a Sra. de Villeparisis
considerava de muito longe a agitação sumária, minúscula e vaga da multidão de pessoas que
conhecia, se encontrava intercalado, no local onde ela via meu pai, um pedaço de vidro
prodigiosamente aumentativo que a fazia ver com tanto destaque e no maior detalhe, tudo o que
ele possuía de agradável, as contingências que o forçavam a voltar, seus aborrecimentos de
alfândega, seu gosto por El Greco, e, mudando para ela a escala de visão, mostrava-lhe este
único homem tão grande no meio dos outros, bem pequeninos, como aquele Júpiter a que
Gustave Moreau conferiu, quando o pintou ao lado de um frágil mortal, uma estatura mais que
humana.
Minha avó despediu-se da Sra. de Villeparisis para que pudéssemos ficar mais um
momento a respirar o ar livre diante do hotel, à espera de que nos fizessem sinal, pela vidraça, de
que o nosso almoço estava servido. Ouviu-se um tumulto. Era a jovem amante do rei dos
selvagens que acabara de tomar seu banho de mar e entrava para o almoço.
- Na verdade é uma praga; é o caso da gente deixar a França! - gritou com raiva o
advogado, que passava naquele instante.
Entretanto, a esposa do tabelião arregalava os olhos para a falsa rainha.
- Não posso lhes dizer como a Sra. Blandais me irrita reparando em pessoas desse tipo
disse o advogado ao presidente. - Gostaria de lhe dar um tapa. É assim que se dá importância a
essa gentalha que certamente não deseja outra coisa. Diga ao marido dela para avisá-la que isto
é ridículo; quanto a mim, não saio mais na companhia deles se continuam a prestar atenção aos
embusteiros.
Quanto à visita da princesa de Luxemburgo, cuja carruagem e acessórios, no dia em que
viera trazer as frutas, parara diante do hotel não havia escapado ao grupo da mulher do tabelião,
da do advogado e do primeiro magistrado, já desde algum tempo muito agitadas para saber se se
tratava de uma legítima marquesa e não de uma aventureira aquela Sra. de Villeparisis a quem
mostravam tanta deferência. Todas aquelas senhoras ardiam por descobrir que a marquesa era
indigna dessa consideração. Quando a Sra. de Villeparisis atravessava o hall a mulher do primeiro
magistrado, que em toda parte vislumbrava irregularidades, erguia o nariz do trabalho e olhava-a
de um modo que fazia as amigas morrerem de rir.
- Oh, vocês sabem que eu - dizia ela com orgulho - começo sempre por pensar mal. Não
consigo admitir que uma mulher esteja verdadeiramente casada senão depois de ver a certidão
de nascimento e os registros da cerimônia de casamento. Aliás, não se incomodem que vou fazer
um pequeno inquérito.
Todos os dias aquelas senhoras vinham rindo.
- Vimos saber das novidades.
Mas, no dia da visita da princesa de Luxemburgo, a mulher do primeiro magistrado pôs um
dedo sobre os lábios.
-Temos novidades.
- Oh, a senhora Poncin é extraordinária! Nunca vi ninguém assim! Mas diga... o que é que
há?
- Muito bem: uma mulher de cabelos louros, uma grossa camada de pintura no rosto, um
carro que cheirava a prostitutas a uma légua de distância, e como só essas senhoritas possuem,
veio há pouco para visitar a pretensa marquesa.
- Ora, ora! Não diga! Ora vejam! mas é aquela dama que vimos, lembram? Bem que
achamos que não nos enquadrava bem, mas não sabíamos que tinha vindo para ver a marquesa.
Uma mulher com um negro, não?- Essa mesma.
- Vejam só! E não sabe o nome dela?
- Sim, fingi que me enganava e peguei seu cartão; tem como nome de guerra o de
princesa de Luxemburgo! Bem que eu tinha razão de desconfiar. Muito agradável estarmos aqui
nessa promiscuidade com esta espécie de baronesa d'Ange.
continua na página 120...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - e)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário