Alexander Pushkin
Capítulo 7
Quando entrou em seu quarto, Lizaveta tinha o coração disparado. Não saberia direito o que fazer se o rapaz misterioso estivesse lá dentro. Acendeu a lamparina e constatou que o quarto estava vazio. Um misto de decepção e alívio percorreu seu corpo. Assim que chegou do baile, teve trabalho para convencer a empregada de que não precisava de ajuda para retirar seu vestido. A mulher ficou desapontada, pois havia acordado àquela hora só para isso. Lizaveta sentiu um pouco de vergonha de sua atitude. Mal tinha dado atenção à Condessa, só pensava em encontrar seu correspondente e agora ele a tinha deixado na mão.
Sentou-se na cama, ainda de vestido, e começou a lembrar dos últimos
acontecimentos de sua vida. Não fazia nem três semanas desde que vira o jovem
oficial pela primeira vez, através da janela, e já trocava cartas frequentes com ele.
E, nessas cartas, ele a havia induzido a convidá-lo para uma visita noturna! Teve
raiva de si mesma, lembrando que nunca tinha ouvido a voz daquele rapaz. Que
sabia que seu nome era Hermann só porque ele havia assinado algumas das cartas
com esse nome e porque, no baile daquela noite, algo curioso havia acontecido.
Paul Tomsky, o neto da Condessa, um pouco irritado porque sua pretendente, a princesa Pauline, não o procurava com os olhos, resolveu tirar Lizaveta
para dançar. Queria com isso causar ciúmes na princesa. Para tanto, dançava com
Lizaveta, sem ao menos olhar para a princesa, assumindo um ar de indiferença e
puxando conversa com a tutelada de sua avó.
Durante a dança, uma mazurka [1] interminável, Paul procurou provocar
Lizaveta. Paul queria saber mais sobre o interesse da moça pelos oficiais da engenharia, tudo porque dias antes a moça havia perguntado se um amigo de Paul era
engenheiro.
— Eu sei muitas coisas que você não sabe, Liza — disse Paul.
Lizaveta se sentiu ameaçada. Era como se seu segredo, sua aproximação sigilosa com o oficial misterioso, tivesse sido descoberto.
— E quem lhe revelou essas “muitas coisas”, Paul? — quis saber Lizaveta.
— Um amigo meu, um sujeito muito distinto.
— E ele tem nome, Paul?
— O nome dele é Hermann.
Lizaveta chegou a perder o passo na dança, enquanto Paul Tomsky
continuava:
— Esse Hermann tem uma personalidade muito romântica, sabe. Posso dizer que ele tem o perfil de um Napoleão e a alma de um mefisto [2]. Não duvido
que não tenha pelo menos uns três crimes na consciência... Ei, você ficou tão
pálida de repente!
— Desculpa, é que estou com dor de cabeça, mas pode me contar mais
sobre esse Hermann. É esse o nome dele, certo? O que foi que ele disse?
— Ele me contou que um amigo dele se interessou por você! Mas não quis
me dizer quem era. Disse apenas que não gosta dos modos desse sujeito. Disse
que agiria de forma totalmente diferente se ele fosse seu pretendente.
— Mas o que o amigo desse Hermann faz? Ele contou? — queria saber
Lizaveta, surpresa com essas notícias.
— Não, ele não quis dizer quem era.
— Mas quem será ele? De onde será que me conhece?
— Sei lá, talvez da igreja ou de algum baile. Só Deus sabe, Lizaveta. Mas o
que eu acho mesmo é que Hermann, o meu amigo, está com ciúmes desse sujeito. Eu acho que Hermann também gosta de você, minha cara!
A conversa foi interrompida quando duas damas se aproximaram do casal
perguntando:
— Esquecimento ou Arrependimento?
Paul Tomsky escolheu a própria princesa Pauline e, em uma nova dança, se
reconciliou com ela. Lizaveta voltou para a mesa onde estava a Condessa. Sentou-se e ficou pensando que o tal amigo de Hermann só podia ser o próprio Hermann.
Ele certamente teria inventado o amigo para poder conversar sobre Lizaveta com
Paul sem despertar muito a curiosidade do neto da Condessa.
Esse interesse de Hermann deixava Lizaveta lisonjeada. Ela gostaria de
ter continuado a conversa com Paul, mas agora ele não mais pensava na vida amo rosa da serviçal de sua avó. Estava mais concentrado em guiar os passos da jovem
nobre pelo salão.
Sentada em sua cama, Lizaveta pensava na vida, ainda de vestido e com a
guirlanda de flores na cabeça. De repente, viu a porta se abrir e gelou quando
Hermann entrou no quarto.
— Onde você estava? — perguntou com uma voz de susto e sussurro.
— Saí agora do quarto da Condessa. E, e... Ela está morta!
— O quê? Meu Deus, o que você está me dizendo?
— O pior é que eu acho que a matei.
Ela o olhou aterrorizada e sentiu as palavras de Paul Tomsky ecoando em
seu cérebro: “Não duvido que não tenha pelo menos uns três crimes na consciência...”. Hermann sentou em uma poltrona, perto da garota e contou tudo o que
havia acontecido. Ela escutou com uma expressão de terror no rosto. Era quase
inacreditável, pensava. Então todas aquelas cartas apaixonadas, todos os desejos
ardentes, toda vontade de encontrá-la, tudo isso não tinha sido feito por amor,
mas por dinheiro! Tinha sido usada por ele, para que pudesse ter acesso à casa da
Condessa. Para que, em última análise, ele pudesse matar a velha indefesa. Sem
suportar os fatos, Lizaveta começou a chorar. Lágrimas pesadas caíam de seus
olhos negros.
Hermann a olhou em silêncio. Também seu coração estava exposto a fortes
emoções. Contudo, não era o sofrimento da jovem que o afligia, nem a triste
beleza da expressão dela contra a fraca luz da lamparina o sensibilizava. Tampouco
sua consciência estava pesada por ter causado a morte de uma velha senhora.
Apenas a perda irreparável do segredo das cartas e com ele a possibilidade de
ficar rico é que entristeciam a alma endurecida do engenheiro.
— Você é um monstro! — Lizaveta disse, tentando controlar o rio selvagem
de suas emoções.
— Eu não queria que ela morresse. Minha arma nem estava carregada!
Sem forças e ânimo para discutir, Lizaveta nada falou e ambos ficaram
quietos por um bom tempo.
Quando começou a amanhecer, Lizaveta enxugou o rosto, levantou-se e
apagou a lamparina. A luz pálida do início do dia entrava no quarto. Hermann
permanecia sentado e tinha um vinco na testa. Naquela pose, Lizaveta pensou
que ele parecia mesmo um jovem Napoleão, como Paul havia dito e esse pensamento a deixou mais abatida.
— Como eu faço para sair da casa? — ele disse, rompendo o silêncio.
— Pensei em te levar até uma escada secreta, que não usamos nunca, mas
para isso teríamos de passar pelo quarto da Condessa e tenho medo de ir até lá.
— Então me diz como achar essa escada e eu vou sozinho.
A garota abriu uma gaveta, lhe entregou uma chave e explicou como chegar à escada. Ele a segurou com as mãos frias e fracas, beijou sua cabeça baixa e
saiu do quarto. Passou pelo corredor e entrou novamente no quarto da Condessa.
A velha continuava sentada. Parecia petrificada na tênue luz do amanhecer. Seu
rosto tinha uma tranquilidade profunda. Por longos minutos, Hermann parou em
frente a ela e observou, como se estivesse se convencendo do que havia feito.
Depois, entrou no escritório e achou o alçapão no piso. Abriu e se enfiou na
escada escura cheio de emoções estranhas. No térreo, Hermann encontrou uma
porta que não era aberta há um bom tempo, seguiu por um estreito corredor que
o conduziu a um beco lateral e de lá ganhou a rua.
continua na pág 24...
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Leia também:
Pushkin - A dama de espadas: Cap. 07
[1] MAZURKA: dança tradicional da Rússia
[2] MEFISTO: demônio erudito da tradição alemã
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