quarta-feira, 12 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / IX - Thenardier em exercício

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

IX - Thenardier em exercício
     
     De madrugada, duas horas antes de romper o dia, Thenardier, sentado a uma mesa da sala de baixo da estalagem, com uma pena na mão, confeccionava, à luz de uma vela, a conta do viajante do casacão amarelo. 
     A mulher, de pé, meio curvada sobre ele, seguia com os olhos o que o marido escrevia. Não trocavam uma palavra. De um lado era a meditação profunda, do outro a admiração religiosa com que se vê nascer e desabrochar uma maravilha do espírito. 
     Este silêncio era apenas interrompido pelo ruído da Cotovia a varrer a escada. 
     Após um bom quarto de hora e de algumas raspaduras, Thenardier produziu a seguinte obra-prima:

 CONTA DO HÓSPEDE DO N.º 9 
 Ceia — 3 francos 
 Quarto — 10 francos 
 Luz — 5 francos 
 Lume — 4 francos 
 Serviço — 1 francos 
 Total — 23 francos

      Serviço estava escrito servisso.

 — Vinte e três francos! — exclamou a mulher com um entusiasmo misturado de alguma hesitação.

      Thenardier, porém, como todos os grandes artistas, não estava satisfeito da sua obra.

— Ora! — disse ele.

      Era o mesmo acento de Castlereagh no congresso de Viena, redigindo a conta que a França devia pagar.

— Tu tens razão, Thenardier, por certo que só se lhe pede o que ele deve — murmurou a mulher, que se lembrava da boneca dada a Cosette em presença das filhas —, isso é justo, mas é demais. Decerto o homem não há de querer pagar.

     Thenardier sorriu com o seu sorriso frio e disse para a mulher:

— Deixa que ele pagará.

     Aquele seu riso era a suprema significação da autoridade e da confiança em si mesmo. O que assim era dito, assim devia ser; por isso a mulher não insistiu.
     Pôs-se a arrumar as mesas enquanto o marido passeava na sala de um lado para o outro. Após um instante, este acrescentou:

— O pior é eu dever mil e quinhentos francos!

     E, depois de dizer isto, foi sentar-se próximo da chaminé com os pés nas cinzas quentes.

— É verdade! — replicou a mulher. — Não sei se te lembras que eu ponho hoje Cosette no andar da rua. Monstro! Faz-me arder em febre por causa da tal boneca! Antes queria casar com Luís XVIII do que tê-la mais um só dia das portas para dentro!

     Thenardier acendeu o cachimbo e respondeu entre duas baforadas:

— Entrega a conta ao homem.

     E dizendo isto saiu. 
     Mal ele, porém, saíra a porta da sala, entrou nela o viajante.
     Thenardier tornou logo atrás dele e ficou parado à porta, por entre a qual, como estava entreaberta, só a mulher o podia ver.
     O homem do casaco amarelo trazia na mão o seu cajado e a trouxa.

— A pé tão cedo! — disse a Thenardier. — Então o senhor já nos deixa?

     E, ao falar assim, virava a conta nas mãos com ar de embaraço, fazendo-lhe dobras com as unhas. Aquele rosto duro oferecia uma expressão que não lhe era habitual: a da timidez e do escrúpulo. Apresentar semelhante conta a um homem que parecia realmente «um pobre» era para ela uma coisa difícil.
     O viajante, que parecia preocupado e distraído, respondeu:

— É verdade, senhora, vou-me embora. 
— Então o senhor não veio a Montfermeil para tratar de algum negócio? 
— Nada, foi só de passagem simplesmente. Quanto é que lhe devo, senhora? — acrescentou ele em seguida.

    A Thenardier, em vez de responder, apresentou-lhe a conta dobrada. 
    O homem desdobrou o papel e correu-o com a vista; porém, a sua atenção estava visivelmente noutra parte.

— Então faz muito negócio aqui em Montfermeil? — tornou ele. 
— Nem por isso, senhor! — respondeu a Thenardier estupefata de não ver outra explosão da parte do viajante. — Depois prosseguiu, com acento lamentosamente elegíaco: — Oh, senhor, os tempos correm tão desgraçados. Está tudo por tal forma! E depois há tão pouca gente de teres pelos nossos sí os! Como o senhor havia de reparar, são tudo fregueses que pouco gasto podem fazer. O que nos vale, assim mesmo, é algum passageiro generoso como o senhor, que vem lá de tempos a tempos. Se não fosse isso, não sei o que havia de ser de nós, às despesas que temos! Só a pequena fica-nos pelos olhos da cara...

 — Que pequena? 
— Ora! A pequena que o senhor sabe, Cosette! A Cotovia, como cá na terra lhe chamam. 
— Ah! — disse o homem.

     Ela continuou:

 — Esta gente daqui é uma súcia de parvos com as tais alcunhas. Ela tem mais parecenças com um morcego do que com uma cotovia. Olhe, senhor, nós não vamos bater à porta de ninguém, mas... sabe Deus o que por cá vai. Não estamos em circunstâncias de fazer esmolas. O que ganhamos vai-se tudo para os credores; e se fora só para esses, mas os tributos? Tanto para estradas, tanto pela licença, tantos por cento por isto, mais tantos por cento para aquilo; o senhor bem sabe o horror de dinheiro que se vai para o governo! E no fim de tudo isto, ainda tenho as filhas para sustentar, tenho de sustentar-me a mim. Parece-me que não tenho necessidade nenhuma de estar a dar de comer a estranhos.

     O homem replicou com aquela voz que ele tentava com esforço tornar indiferente, mas em que se denotava certo tremor:

— E se houvesse quem a livrasse dela? 
— De quem, da Cosette? 
— Sim.

     A fronte vermelha e violenta da taberneira iluminou-se de um fulgor medonho, que se expandiu por toda ela.

— Ah, senhor, meu bom senhor! Pegue nela, leve-a, tire-a, ensope-a, frite-a, beba-a, coma-a, e que a Virgem Santíssima e todos os santos do céu o guardem de perigos! 
— Está dito. 
— Deveras? Leva-a? 
— Levo. 
— Já? 
— Já. Chame por ela. 
— Cosette! — gritou a Thenardier. 
— Entretanto — prosseguiu o homem — deixe-me pagar-lhe a minha conta. Quanto é?

     O viajante deitou então um olhar para o papel e não pôde reprimir um movimento de surpresa:

 — Vinte e três francos?! — e olhou para a taberneira, repetindo: — Vinte e três francos?

     No tom com que estas palavras foram repe das, havia o acento que separava o ponto de admiração do de interrogação. 
     A Thenardier, que vera tempo de se preparar para o choque, respondeu com desassombro:

— Vinte e três francos, sim, senhor, pois então?

     O hóspede pôs cinco moedas de cinco francos em cima da mesa e disse à taberneira:

— Então vá buscar a pequena.
— O senhor deve vinte e seis soldos. 
— Vinte e seis soldos! — exclamou a mulher. — Vinte soldos pela cama — continuou o taberneiro friamente — e seis pela ceia. Quanto à pequena, preciso de conversar um bocado com o senhor. — e acrescentou, voltando-se para a mulher: — Deixa-nos sós.

     A Thenardier sen a um desses deslumbramentos que causam os imprevistos clarões do talento. Conheceu que entrava em cena o grande ator, e por isso saiu sem dizer uma palavra.
     Apenas ficaram a sós, Thenardier ofereceu uma cadeira ao viajante. Este sentou-se e Thenardier ficou de pé, com uma singular expressão de bondade simples gravada no rosto.

— Olhe, senhor, vou dizer-lhe uma coisa: sou doido por esta criança. 

     O hóspede olhou fixamente para o estalajadeiro e perguntou: 

— Qual criança? 

     Thenardier continuou: 

— É uma tolice a gente tomar amizade às pessoas. Que me importa a mim este dinheiro? Pode guardar as suas moedas de cem soldos. O que eu adoro é aquela criança. 
— Mas quem é? — perguntou o homem.

— Ora! É a nossa Cosette! Não é essa que o senhor nos quer levar? Pois digo-lhe com toda a franqueza dum homem honrado, que não posso consentir em semelhante coisa. É uma criança que me há de fazer muita falta: vejo-a desde muito pequenita. É verdade que nos custa dinheiro e que tem defeitos, é verdade que não somos ricos e pagamos mais de quatrocentos francos em drogas, só numa doença que ela teve! Mas a gente sempre há de fazer alguma coisa pelo amor de Deus. É uma desgraçadinha que não tem pai nem mãe; criamo-la nós. Para mim e para ela sempre hei de ter pão; e depois não posso separar-me da pequena. O senhor bem percebe o que é a gente ter afeição a uma pessoa; eu sou um pobre diabo, que não tenho raciocínio, mas que sou amigo desta criança; minha mulher tem mau génio, mas também a esma. Bem vê, é como se fosse nossa filha. Não posso passar sem a sentir em casa.

     O desconhecido continuou a olhar para o estalajadeiro, que continuou:

— O senhor há de desculpar-me, mas bem vê que não se deve entregar assim uma criança a uma pessoa que se não conhece. Não é verdade que tenho razão? Ao mesmo tempo não digo que não; o senhor é rico, parece muito boa pessoa, e talvez seja para seu bem; mas assim mesmo é preciso vermos. O senhor bem percebe. Supondo que eu me sacrificasse e a deixasse ir, queria saber para onde ia, desejaria não a perder de vista e saber para casa de quem ia morar, para ir vê-la de vez em quando; era preciso que ela soubesse que seu pai adotivo não deixava de a ter na lembrança. Enfim, há coisas que não são possíveis. Eu não sei como o senhor se chama. O senhor levava-a, e depois, onde está a Cotovia? Para quem foi ela? Era preciso, ao menos, ver um bocado de papel qualquer; que diabo! A ponta de um passaporte, por exemplo...

     O desconhecido, sem afastar do estalajadeiro o olhar que, por assim dizer, vai até ao fundo da consciência, respondeu-lhe com voz grave e firme.

— Senhor Thenardier, não se tira passaporte para vir a cinco léguas de Paris. Se levar Cosette, levá-la-ei e nada mais. O senhor nem saberá o meu nome, nem a minha morada, nem onde ela estará; a minha intenção é que ela não torne mais a vê-lo. Quebrando-lhe o fio que a prende pelo pé, desaparecerá para sempre. Convém-lhe isto? Sim ou não?

      Pelo mesmo modo que os demónios e os génios reconheciam, por certos sinais, a presença de um deus superior, reconheceu Thenardier que tratava com quem quer que era muito poderoso.
     Foi uma como intuição; compreendeu-o com toda a nitidez e sagacidade da sua percepção. Na véspera, bebendo, fumando e cantando com os fregueses, passara a noite a observar o desconhecido, espreitando-o como um gato e estudando-o como um matemático. Espionara-o por sua conta, por gosto e instinto, e igualmente como se para isso fora pago. Nem um gesto ou um só movimento do homem do casacão amarelo lhe escapara. Antes mesmo do desconhecido manifestar o seu interesse por Cosette, já Thenardier o tinha adivinhado, surpreendendo os detidos olhares que o velho incessantemente deitava à criança. Em que se fundava tal interesse? Que homem era aquele? Porque trajava ele tão miseravelmente, com tanto dinheiro de seu?
      Questões eram estas que ele a si mesmo propunha e que o irritavam, sem que conseguisse resolvê-las. Toda a noite meditara sobre este objeto. Não podia ser o pai de Cosette. Seria avô? Mas então porque razão se não dera logo a conhecer? Quem tem direitos, mostra-os. Era evidente: aquele homem não tinha direitos nenhuns sobre Cosette. Então quem era? Thenardier perdia-se em suposições, porém não atinava com a saída do labirinto de dúvidas em que se lhe embrenhava o espírito. Entrevia tudo e não via nada. Fosse, porém, o que fosse, certo de que nisto havia algum segredo de que o homem tinha interesse em não desvendar o véu em que se envolvia, sentira-se forte ao encetar a conversa com ele; ao ouvir, porém, a clara e firme resposta do desconhecido, ao ver que aquele personagem misterioso era tão simplesmente misterioso, sentiu-se fraco. Não esperava por semelhante coisa. Foi a derrota das suas conjecturas.
     Reuniu, pois, todas as suas ideias, pesou tudo aquilo no espaço de um segundo. 
     Thenardier era desses homens a quem basta um relancear de olhos para ajuizarem de uma situação. Viu que era chegada a ocasião de caminhar depressa e direito ao alvo.
     Fez como os grandes capitães no instante decisivo que só eles sabem conhecer deixou repentinamente a descoberto a sua bateria.

— Senhor — disse ele —, a pequena é sua, uma vez que me dê mil e quinhentos francos.

      O desconhecido tirou de um dos bolsos, que tinha ao lado, uma carteira velha de couro preto, abriu-a e pegou em três notas que pôs em cima da mesa. Depois apoiou sobre elas o largo polegar e disse para o taberneiro:

— Mande chamar Cosette.

     Que fazia ela enquanto se passava isto? 
     Apenas acordou, Cosette correu ao fogão e achara dentro do soco aí depositado a moeda em ouro, que o desconhecido lá deixara. Não era um Napoleão, era uma moeda de vinte francos, nova, da restauração, em cuja efígie, como nas de todas as outras do mesmo cunho, a coroa de louro se achava substituída pela caudazinha prussiana.
     Cosette ficou deslumbrada. Principiava a embriagá-la o seu destino. A pobre criança não sabia o que era uma moeda em ouro, nunca vira nenhuma, e escondeu-a com a maior presteza no bolso, como se a tivera roubado. Conquanto conhecesse que aquilo lhe pertencia realmente e adivinhasse de onde lhe vinha aquele dom, sentia uma espécie de alegria entremeada de medo. Estava satisfeita, e, mais que tudo, estupefata; não lhe pareciam reais aquelas coisas tão magníficas e bonitas. Assustava-a a boneca, assustava-a a moeda em ouro, tremendo vagamente diante daquelas magnificências.
      Só o desconhecido é que não a assustava, antes pelo contrário, a tranquilizava. Desde a véspera, que ela por entre os seus espantos, por entre as sombras vagas do seu sonho, tinha o seu espiritozinho de criança constantemente ocupado com a lembrança daquele velho de aspecto tão mesquinho e triste, mas tão rico e cheio de bondade. Cosette, menos feliz que a menor andorinha do céu, nunca soubera o que era o refugiar-se uma criatura à sombra e sob as asas de uma mãe. Havia cinco anos, isto é, até onde podiam remontar as suas reminiscências, que a pobre criança tremia de medo e tiritava de frio.
     Nua sempre ao ventar agudo da desgraça, parecia-lhe agora que já se achava vestida.
     A sua alma outrora sentira frio, agora sentia calor. Cosette já não temia tanto a Thenardier, porque não se achava só; havia mais alguém a seu lado, e esse alguém dava lhe coragem para se defrontar menos receosa com os aspectos medonhos do seu infortúnio.
     Após o seu precioso achado, principiara imediatamente a sua tarefa de todas as manhãs. Porém, aquele luís, que trazia consigo naquele mesmo bolso do avental de onde tão desastradamente lhe caíra na noite antecedente a moeda de quinze soldos, fazia-a andar distraída e como que fora de si. Ela não se atrevia a tocar-lhe, mas passava às vezes cinco minutos a contemplá-lo, de boca aberta. Ao varrer a escada, parava e assim ficava, imóvel, esquecida de tudo, alheada da sua vassoura e do universo inteiro, e ocupada a ver brilhar aquela estrela no fundo do bolso do seu roto avental.
     Foi quando ela se achava numa dessas contemplações que a Thenardier, que por ordem do marido a vinha buscar, se acercou dela, e, coisa inaudita, sem lhe dar uma bofetada ou lhe atirar uma injúria, lhe disse quase com doçura:

 — Anda daí já, Cosette.

     Um instante depois, Cosette entrava na sala do andar de baixo da estalagem. 
     O desconhecido pegou na trouxa que tinha trazido e desatou-a. A trouxa continha um vestido de lã, um avental, um roupão de fustão, um saiote, um lenço para o pescoço, umas meias de lã, uns sapatos, um vestuário completo para uma rapariguinha de oito anos. Todos estes objetos eram pretos.

— Minha filha — disse o homem — leva isto e veste-te depressa.

      Despontava o dia quando os habitantes de Montfermeil, que principiavam a abrir as portas das suas casas, viram passar pela rua de Paris um velho pobremente vestido, dando a mão a uma pequenina toda de luto, que levava nos braços uma boneca cor-de-rosa. Os dois viandantes dirigiam-se para a parte de Livry.
     Era Cosette e o homem de casacão amarelo. 
     Ninguém o conhecia a ele, e quanto a Cosette, como já não ia coberta de andrajos, também muitos não a conheceram.
     Cosette partia. Mas com quem? Ignorava-o. Para onde? Não o sabia. O mais que ela compreendia era que se ausentava da taberna de Thenardier e de sua mulher. 
     Ninguém se lembrara de lhe dizer adeus nem ela de o dizer a ninguém. Saía daquela casa odiada e odiando.
     Pobre e meiga criatura, cujo coração até ali só fora oprimido! 
     Cosette caminhava gravemente, abrindo os seus rasgados olhos e contemplando o céu. De vez em quando curvava a cabeça e deitava um olhar para dentro do bolso do seu avental novo, onde metera o Luís, olhando depois para o velho. A pobre criança sentia-se como que na presença de Deus, tão entranhadamente celestial era a felicidade que lhe transbordava da alma!

continua na página 325...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - IX - Thenardier em exercício
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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