O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
4.continuando...
- O ponto prová-lo-á o que segue: uma velha anedota. Sim, pois inevitavelmente tenho de lhes chapar com uma história dos tempos antigos. Em nossa era, em nosso país que, estou convencido, os senhores amam como eu, pois que até estou pronto a derramar a minha última gota de sangue...
- Toque para diante! Não
divague!
- No nosso país, como em todo o resto da Europa, vastas e terríveis carestias
assolam a humanidade e tanto quanto tem sido verificado, e tanto quanto me
possa eu lembrar, isso nunca sucede mais do que quatro vezes cada século, ou,
em outras palavras, cada vinte e cinco anos. Não quero disputar o número exato,
mas são comparativamente raras.
- Comparadas com quê?
- Comparadas com o século XII, ou os próximos dele, seja o anterior ou o
posterior a ele, pois que naquela época as grandes carestias, como escrevem e
como asseveram os escritores, vinham periodicamente cada dois anos, ou no
máximo, cada três anos, a tal ponto que devido a isso tamanha era a conjuntura,
que os homens chegaram a recorrer ao canibalismo, conquanto às ocultas. Um
desses canibais anunciou, espontaneamente, já depois de velho, que no curso de
sua longa vida de famélico, tinha matado e comido, no mais absoluto segredo,
sessenta monges e mais alguns leigos, mas estes mesmos, crianças, obra de seis,
se tanto. Isso é extraordinariamente pouco, comparado com a imensa massa de
eclesiásticos a que tinha dado consumo. De leigos crescidos, ao que consta, nunca
os atacara com tal intento.
- Isso não pode ser verdade! - berrou o presidente, o general, com voz de
ressentimento - Não me farto de discutir com esse indivíduo, senhores, a respeito dessas coisas;
ele sempre nos traz destas histórias absurdas; e tão absurdas que nossas orelhas
chegam a doer. E sem nenhuma partícula de veracidade.
- General! Contente-se
em se lembrar do assédio de Kars! Quanto aos senhores, deixem que lhes diga
que a minha história é verídica. Apenas observei
que toda e qualquer realidade, mesmo através de suas inalteráveis leis, sempre,
ou quase sempre, dificilmente é crível, muitas vezes. Até, com efeito, quanto
mais real for, mais improvável parece!
- Mas como pôde ele comer sessenta monges? - perguntaram, rindo, em volta.
- É que não os comeu de uma só vez, é claro. Se, porém, eu explicar que os
digeriu no decorrer de quinze ou vinte anos, fica tudo perfeitamente
compreensível e natural!...
- Natural?
- Sim, natural! - repetiu Liébediev, com pedante insistência - De mais a mais,
todo monge católico é, por sua própria natureza, facilmente maleável e curioso e
não seria difícil o ir levando para dentro da floresta, ou para qualquer lugar
secreto e então agir com ele como já foi dito. Não nego, porém, que o número
de pessoas devoradas pareça excessivo quanto ao ponto de vista da voracidade.
- Pode bem ser, meus senhores - observou, inopinadamente Míchkin, que até
então tinha escutado em silêncio os antagonistas diversos, sem tomar parte na
conversa, só algumas vezes se juntando cordialmente às gargalhadas gerais.
Evidentemente estava contente com a alegria e a barulhada que todos faziam, e
até mesmo por estarem a beber bastante. Talvez não viesse a articular uma só
palavra que fosse toda a noite; mas, de repente, não se pôde conter. Falou com
tanta gravidade que todos logo se viraram para ele, com a maior atenção - O que eu quero dizer, senhores, é que as carestias costumavam ser frequentes.
Sempre ouvi isso, apesar de conhecer pouco História. E acho que devam ter sido.
Quando eu me achava entre as montanhas suíças fiquei surpreendido ante as
ruínas de castelos feudais, construídos nas faldas das montanhas ou nas rochas
escarpadas que têm no mínimo meia milha de altura (o que quer dizer algumas
milhas de caminho nas montanhas). Os senhores sabem o que é um castelo: uma
perfeita montanha de pedras; representam um formidável, um incrível trabalho.
E, naturalmente, todos foram construídos pela gente pobre, pelos vassalos. Além
disso, tinham estes de pagar todas as taxas e sustentar o clero. Como haveriam
eles de se prover a si próprios, e lavrar a terra? Nessa época, não deviam ser em
grande número; morreram terrivelmente, com as calamidades, e muita vez não
deveriam ter literalmente nada para comer. Muita vez, com efeito, pasmei como
foi que essas criaturas não se extinguiram todas; como foi que aturaram e como
fizeram para suportar
isso e sobreviver. Sem dúvida Liébediev tem razão em que houve canibais, e
talvez muitos; só o que eu não compreendo é por que trouxe para essa história
monges e o que quer ele dizer com eles.
- Na certa porque no século XII eram só
os monges que conseguiam comer; e por conseguinte as únicas pessoas que eram
gordas - observou Gavríl Ardaliónovitch.
- Ora aí está uma exata e magnífica dedução! - exclamou Liébediev.
Observando-se que o tal indivíduo poupou os leigos, isto é, os seculares, não se
chegando a computar um leigo para sessenta eclesiásticos, que é que se infere?
Infere-se, deduz-se uma verificação terrível, uma assertiva histórica, uma
informação estatística, enfim um desses fatos que permitem tirar da história uma
ilação bastante eloquente por parte de quem tem espírito crítico. Sim, pois daí se
depreende com exatidão matemática que os eclesiásticos viviam sessenta vezes
mais felizes e com mais conforto do que o resto da humanidade daquele período.
E quem nos diz a nós que de fato não eram sessenta vezes mais gordos?...
- Exagero... Exagero seu, Liébediev. - e todos riram.
- Concordo que seja uma conjetura emanada de um dado histórico: mas a que
nos quer você levar com ela? - perguntou o príncipe, intervindo de novo. (Falava
com tamanha gravidade, sem absolutamente zombar ou troçar de Liébediev, de
quem todos riam, que as suas palavras e modos, justamente por contrastarem
com o tom dos demais, acabavam por assumir um efeito cômico. Todos estavam
na iminência de rir também dele, circunstância que ele não percebeu.)
Evguénii Pávlovitch inclinou-se e disse:
- Ora, príncipe! Não vê que esse sujeito é
um louco varrido? Ainda agora mesmo me contaram que lhe deu na telha
advogar, fazer Libelos e defesas judiciais, tirar carta de rábula. Estou esperando
um remate funambulesco!
Enquanto isso Liébediev aumentava de timbre,
estentoricamente:
- Ao que eu quero chegar? Não foi a pergunta que me
fizeram? Respondo de chofre: quero e vou chegar a formidáveis deduções. Mas,
antes de mais nada, passemos a analisar a situação psicológica e legal do
criminoso. Estamos vendo que o criminoso, ou - como hei de chamá-lo? - que o
meu cliente, a despeito da impossibilidade de achar qualquer outro comestível,
muitas vezes, no decorrer da sua interessante e atribulada carreira, evidenciou
sinais de um desejo de arrependimento e de querer evitar, isto é, poupar o clero.
Isto nos é claramente
patenteado pelos autos! Convém a esta altura relembrar que ele, afinal de
contas, deu cabo de cinco ou seis crianças - um número relativamente
insignificante conquanto enorme sob outros pontos de vista sentimentais. É
evidente por conseguinte que, atormentado por terríveis problemas de
consciência (pois o meu cliente é um homem religioso e de consciência, como
provarei mais adiante) e para ressarcir o seu pecado tanto quanto lhe fosse
possível, trocou a sua dieta, o seu regime clerical pelo laico, ou secular, se bem
me estou fazendo entender. Que o tivesse feito por mera experiência é calúnia
que não se lhe pode fazer. Absolutamente não se tendo tratado de uma variação
gastronômica, já que o número de seis é indubitavelmente insignificante. Por que
somente seis? Por que não trinta? (A metade padres, a metade leigos.) Mas, se
nem experiência foi e sim apenas uma “variação” despertada simplesmente pelo
desespero e medo do sacrilégio, e para não ofender a igreja, então o número seis
se torna perfeitamente Inteligível; pois seis tentativas de apaziguar os rebates da
consciência são mais do que bastantes, já que tais tentativas não foram vãs. E.
em primeiro lugar, na minha opinião uma criança é uma coisa demasiado
pequenina - isto é, insuficiente, e portanto ele precisaria de três ou cinco vezes
mais crianças, ou rebentos laicos, para o mesmo período de tempo em um
eclesiástico. E, por conseguinte, o pecado, embora menor, por um lado, seria
maior por outro, não em qualidade, mas em quantidade. Mercê de tais
considerações, senhores, me vejo eu entrando pelos sentimentos adentro de um
criminoso do século XII. Quanto a mim, homem do século XIX, eu teria
arrazoado diferentemente, concedam que lhes diga; e, por conseguinte, não acho
que seja preciso se estarem arreganhando diante de mim, senhores, e nem é este
o momento propício, general, para o senhor também se arreganhar. Em segundo
lugar, uma criança, no meu modo de pensar, é uma coisinha insuficientemente
nutritiva e talvez doce demais e enjoativa; portanto o apetite do meu cliente não
ficaria satisfeito, muito embora ficassem os rebates da consciência.
E agora como conclusão, senhores, o final; nele repousa a solução de uma das
maiores questões daquela e desta idade. O criminoso acaba indo dar informações
contra si ao clero! E acaba entregando-se às autoridades. E então pasmamos ante
as torturas, que, naquela época, o esperavam - a roda, o pelourinho e o fogo.
Quem o induziu a ir dar queixas de si mesmo? Por que não parou ele,
simplesmente, nos sessenta, e não guardou segredo até o seu último suspiro? Por
que simplesmente não deixar o clero em paz viver em penitência, como eremita?
Por que, afinal de contas, não entrar ele próprio para um mosteiro? Seria
uma solução.
É que deve ter havido algo mais forte do que o pelourinho e do que o fogo, mais
forte até do que o seu costume de vinte anos! Deve ter havido uma ideia mais
forte do que qualquer miséria, calamidade, tortura, praga, lepra, e todo esse
inferno sem o qual a humanidade inteira não suportaria o mundo e a vida, ideia
que reuniu todos os homens, que lhes guiou o coração, e que fez frutificar as
“fontes da vida”. Mostrem-me algo que seja igual a essa força, nesta nossa era
de vícios e de estradas de ferro... Eu deveria dizer de navios e de trem, mas digo
vícios e estradas de ferro, porque estou bêbado, mas sou sincero. Mostrem- me
qualquer ideia que ligue a humanidade de hoje e que tenha o poder dessa outra
naqueles séculos. E ousem dizer-me que as “fontes da vida” não se
enfraqueceram e não se conspurcaram debaixo da “estrela”, debaixo das teias
em que os homens estão enrodilhados. E nem me venham querer assustar, com a
prosperidade, a saúde, a diminuição da carestia e a rapidez dos meios de
comunicação.
Há mais saúde, mas há menos vigor, não há mais ideia sólida; tudo se tornou
mais mole, tudo é dúctil, todo o mundo é maleável! Todos nós, todos nós estamos
ficando mais moles... Mas, quanto a isso, basta. Este ainda não é o ponto. O ponto,
honrado príncipe, é se não nos devíamos aprontar para a ceia que está sendo
preparada para as nossas visitas?
Liébediev tinha levado os seus ouvintes a um
verdadeiro estado de indignação. (Deve-se acentuar que rolhas lhe foram
arremessadas incessantemente todo o tempo.) Mas essa inesperada referência
à ceia logo conciliou todos os seus antagonistas. Ele chamou essa conclusão de
“galharda conclusão jurídica”. Risadas bem-humoradas ecoaram outra vez; as
visitas ficaram mais alegres, e todos se ergueram de ao pé da mesa, para
desentorpecer as pernas e caminhar pela varanda. Apenas Keller não gostou do
discurso de Liébediev e estava tenebroso.
- Ele ataca o progresso e gaba o carolismo do século XII. Está se pavoneando;
não há sinceridade nenhuma no que disse. E como foi que ele conseguiu, por
exemplo, vir para esta casa aqui? Ora aí está uma coisa que eu queria que ele me
explicasse! - disse alto, tomando cada qual e todos como testemunhas.
- Eu sim, eu conheci um intérprete de mão-cheia do Apocalipse. - pôs-se a dizer
o general, lá em um canto, a um outro grupo de ouvintes, entre os quais Ptítsin
cujos botões segurava, distraidamente. - O falecido Grigórii
Semiónovitch Burmístrov. Esse sim, fazia o coração da gente se abrasar.
Primeiro punha os óculos, e abria um grande livro encadernado em couro negro;
tinha uma barba incomensurável e duas medalhas em reconhecimento às duas
munificentes caridades. Começava devagar e em tom severo. Os generais se
inclinavam diante dele e as senhoras caíam em faniquitos. Ao passo que este
camarada aqui concluiu com uma ceia! Isto é o cúmulo!
Ptítsin escutou o
general, sorriu e foi à cata do chapéu, como se quisesse ir embora; mas ou ficou
sem disposição para isso, ou se esqueceu.
Gánia já antes de todos se levantarem
tinha acabado de beber e afastado o copo. Uma sombra de tristeza lhe envolvia o
rosto, agora. Depois que todos abandonaram a mesa, ele se dirigiu para perto de
Rogójin e se sentou ao seu lado. Dir-se-ia que ambos estavam na mais amistosa
das relações. Rogójin, que antes fizera menção, repetidamente, de se levantar e
ir embora, permanecia sentado, quieto e de cabeça pendida. Era como se
também ele tivesse esquecido sua decisão tantas vezes ensaiada. Não bebera
sequer uma gota de vinho, a noite inteira, e conservava um ar muito taciturno. De
vez em quando erguia os olhos e contemplava ora um, ora outro. Estaria ele à
espera de alguma coisa de grande importância, a ponto de no seu foro íntimo ter
resolvido aguardar? O príncipe não bebera ao todo mais do que umas duas ou três
taças de champanha que apenas o tinham conseguido tornar um tanto jovial. Ao
sair de perto da mesa deu com o olhar de Evguénii Pávlovitch e então se lembrou
da conversa que deviam ter a sós e lhe sorriu cordialmente Em resposta,
Evguénii Pávlovitch lhe fez um gesto, mostrando Ippolít em quem se pusera a
prestar atenção. O rapaz dormia estirado no sofá.
- Diga-me uma coisa, príncipe:
por que motivo se teria este rapaz instalado aqui na sua casa? Aposto como veio
com alguma intenção má - disse de chofre, com uma tal implicância e
demonstrando tamanha antipatia, que Míchkin, surpreendido não pôde deixar de
redarguir:
- Reparei, ou pelo menos me pareceu, que se preocupou demasiado
Com ele, esta noite, Evguénii Pávlovitch. Não é verdade?
- E acrescente mesmo
que dada a minha situação por causa de meu tio não me faltariam motivos para
preocupações muito outras que não esta. Na verdade, nem eu mesmo me explico
a razão pela qual esse rosto antipático atraiu a minha atenção a noite inteira.
- Tem um rosto bonito...
Nisto Evguénii Pávlovitch puxou o príncipe pelo braço, exclamando:
- Veja!
Veja!...
O príncipe, todavia, olhou, mas foi para Radómskii, com admiração ainda
maior.
continua página 343...
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O Idiota: Terceira Parte (4c) - O ponto prová-lo-á
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