segunda-feira, 31 de março de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (5c) - Liébediev anuiu

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
5.

continuando...

     Liébediev anuiu:

- Realmente você está interessado demais na sua pessoa.
- Não estou forçando ninguém a escutar, permitam que lhes diga, senhores. Quem não quiser ouvir pode ir embora.
- Hum! Está mandando a gente embora da casa do outro! comentou Rogójin de modo perfeitamente audível. 
- E se nos levantássemos e fôssemos embora? - propôs Ferdichtchénko, de repente, bem alto. Ele não tinha ousado falar até agora.

     Ippolít baixou os olhos e prontamente agarrou o manuscrito. Mas no mesmo segundo ergueu a cabeça de novo e disse olhando fixamente para Ferdichtchénko, com olhos flamejantes e duas nódoas de sangue nas faces:

 - Tu me detestas, eu sei.

     Houve risadas, mas não de todos. Ippolít enrubesceu ainda mais; e então Míchkin interveio:

- Ippolít, dobre o seu manuscrito e entregue-mo. Vá deitar-se no meu quarto. Conversaremos antes de dormir ou conversaremos amanhã. Mas sob a condição de que nunca mais abra essas folhas. Está feito?

     Ippolít o encarou demonstrando nitidamente um assombro incontido.

- Impossível. Senhores, aqui está uma situação estúpida na qual não sei como deva me comportar! - exclamou, tornando-se cada vez mais febrilmente excitado - Não vou interromper mais a minha leitura. Portanto, se alguém não quer me ouvir, que se vá. 

     Tomou apressadamente um gole da água do copo, fincou os cotovelos sobre a mesa para amparar o rosto e esconder os olhos, e continuou a ler, passando-lhe logo o vexame.

“A ideia, prosseguiu ele, de que não vale a pena viver poucas semanas começou a me vir seguramente há um mês, quando eu dispunha apenas desse mês para viver. Mas só passou a me obcecar, creio eu, há três dias atrás, quando passei aquela noite em Pávlovsk. A primeira vez que tal pensamento me arrebatou plenamente eu me achava na varanda do príncipe, na ocasião mesmo em que tentava uma experiência e um julgamento sobre a vida, ainda tolerando ver pessoas e árvores (não nego que me propus, a mim próprio, isso). Exatamente quando me excitei insistindo pelos direitos do ‘meu semelhante’ Burdóvskií, quando ainda sonhava que todos me abririam os braços para me acolher e me pedir perdão pelos erros do mundo e da vida, o mesmo estando eu disposto a fazer com todos! Resumindo, exatamente quando eu me comportei, mais do que nunca, como um rematado imbecil. E foi então que me assaltou esta minha ‘última convicção’. Admirei-me de ter podido viver seis meses sem que ela me tivesse vindo antes. Estava farto de saber que era um tuberculoso sem possibilidade de cura. Quanto a isso nunca procurei me enganar. Compreendia a minha situação, claramente. Mas a verdade é que quanto mais claramente a compreendia mais desejo tinha de que a minha vida se prolongasse. Agarrei-me à vida, queria viver apesar de tudo. Admitindo que eu percebia muito bem a nefanda e obscura fatalidade que estava para me esmagar como a um inseto e, ainda por cima, sem a menor culpa de minha parte, por que foi que, ainda assim, não me insurgi contra a minha involuntária passividade? Por que haveria de querer começar a viver deveras sabendo que estava no fim? Por que tentei isso antes e haveria de tentar então, sabendo que seria inútil optar fosse lá pelo que fosse? Pois se nem ler eu podia, tendo desistido dos livros! Que me adiantava ler, de que me valia aprender por seis meses? Quantas vezes a evidência dessa verificação não me fez jogar os livros para um lado? 
Sim, aquelas paredes de Meyer poderiam contar uma história. Muito poderia eu escrever sobre elas. Não há um pedaço daquelas paredes imundas que eu não tenha estudado. Raios as partam! E todavia ainda me são mais caras do que as árvores de Pávlovsk. Ou melhor: seriam, se tudo já agora não me fosse indiferente.
Lembro-me com que interesse voraz andei, nesse tempo, prestando atenção na vida de todos, coisa com que antes jamais me importara. Quando a doença me impossibilitava de sair, ficava a olhar para a rua, esperando, nervosamente, por entre maldições e pragas, a vinda de Kólia. Tudo, tudo eu esquadrinhava; não me escapulia a menor novidade, fato, palavra. Virei um tagarela, criticava toda gente! Não havia meios, por exemplo, de compreender como é que quem dispõe de tanta vida diante de si, longe estando a morte, não se torna rico (e com efeito ainda hoje não entendo isso!). Conheci um pobre diabo que (segundo me contaram) veio a morrer de fome. Lembro-me de que, ao saber disso, fiquei furioso: minha vontade era ressuscitá-lo, se eu tivesse tal dom, somente para o executar! As vezes, por aquele tempo, eu ficava um pouco melhor, uma semana ou outra, e me dava ao luxo de sair um pouco; mas as ruas me exasperavam a tal ponto que acabava me trancando dentro do quarto, de propósito, dias e dias seguidos, embora pudesse sair como qualquer outra pessoa. Não podia suportar a multidão apressada, barulhenta, preocupada, pensativa, impaciente, desfilando em duplo sentido, atropelando-me pelas calçadas. Por que essa taciturnidade, essa preocupação, esse alarido, esse eterno e teimoso rancor (pois a multidão tem rancor, tem rancor, tem rancor!)? De quem é a culpa se ela é miserável e não sabe como viver, embora tenha sessenta anos de vida pela frente? Por que foi que Zarnítzin se deixou morrer de fome se tinha sessenta anos de vida à sua disposição? Toda a gente mostra os seus andrajos, as suas mãos escalavradas e calosas e grita selvagemente: ‘Trabalhamos que nem bois de arado, somos pobres e famintos que nem cães, ao passo que tantos há por aí que não fazem nada e são ricos!’ (A eterna lamúria!) E por entre a turba que vai e vem desde manhã até à noite, eis que surgem sujeitos lerdos e ranhentos, como esse amanuense suplente, Iván Fomítch Súrikov, ‘fidalgo de nascença’. Que vive no meu quarteirão, em uma mansarda e que me farto de ver com os cotovelos coçados, os botões querendo cair, indo e vindo pelo bairro desempenhando tarefas insignificantes, levando e trazendo recados e sempre a se queixar! É pobre, não tem amigos. passa fome, morreu-lhe a mulher à míngua de remédios, o filhinho morreu enregelado em um inverno destes, a filha já moça é amásia não sei de quem.. Iván Fomítch Súríkov! Sempre a se lastimar, o estupor!... Oh! Nunca senti a menor, a mínima piedade por esses estúpidos e nem sinto agora, digo com orgulho! Por que não é ele um Rothschild? De quem é a culpa se ele não tem milhões como Rothschild, se não tem pilhas e pilhas de fredericos de ouro e de napoleões de ouro, tão altas como estas montanhas que se veem nas festas de carnaval? Pois se está vivo que raio faz ele com tamanho poder como é o da vida? É de quem a culpa se o estupor não compreende isso? 
 Oh! Agora já não me importo mais, não me resta tempo nem mesmo para me irritar. Mas então, repito, naquele tempo, ah!... eu me crispava no meu travesseiro, mordia com raiva a orla da minha colcha! E que devaneios, que sonhos, que projetos! Que vontade que me vinha de me ver solto na rua, apenas com os meus dezoito anos, sem roupa, sem teto, completamente abandonado e só, sem trabalho, sem quarto, sem uma côdea de pão, sem um conhecido único, sem parentes de qualquer espécie, largado em uma grande cidade, sentindo fome, desdenhado (quanto mais, melhor!) mas com saúde, pois então haveria de mostrar a todos...
- Que é que eu poderia mostrar...?
Oh, sem dúvida cuidam que ignoro quanto me humilhei a mim próprio, conforme se depreende desta minha “Explicação”. Decerto, um por um, todos me olham como um choramingas que não sabe nada da vida, e esquecem que ainda tenho somente dezoito anos, e que viver do modo por que vivi durante esses seis meses significa o mesmo que já estar com os cabelos grisalhos! Pois riam e digam que isso tudo não passa de contos de fadas. De fato a mim mesmo outra coisa não fiz senão contar histórias da carochinha, enchendo noites a fio com esses contos fantasmagóricos. Ainda hoje não os esqueci. Mas hei de porventura contá-los agora que o tempo das histórias de fadas já acabou, mesmo para mim? Ora, contá-los a quem? Distraía-me com eles porque já tinha visto perfeitamente que me era vedado até mesmo aprender a gramática grega, como me deu na veneta certa vez. ‘Morrerei sem sequer haver chegado à sintaxe’, pensei, logo na primeira página, e joguei o livro para baixo da mesa. Lá ainda deve estar ele, pois proibi Matrióna de o pegar do chão. 
Qualquer pessoa, em cujas mãos esta minha ‘Explicação’ vier a cair, acabará, caso tenha paciência bastante para lhe lançar os olhos, por me considerar como um sujeito maluco, um garoto de escola ou, mais provavelmente ainda, como um homem condenado à morte, propenso por isso a acreditar que todos os demais pensam pouco, pouquíssimo da vida e que não fazem senão dissipá-la à toa, vivendo assaz preguiçosamente, apaticamente, nenhum deles sequer merecendo vivê-la. Bem, protesto contra o meu leitor, pois se equivocou; e esta minha convicção não é de forma alguma uma consequência de estar eu condenado à morte. Pergunte-se a essa gente, pergunte-se o que essa gente toda entende por felicidade. Fique o mundo sabendo que Colombo foi feliz não quando descobriu a América, mas sim quando a estava por descobrir. Em verdade afirmo que o trecho mais alto da sua felicidade foram aqueles três dias antes da descoberta do Novo Mundo, quando a equipagem amotinada e desiludida esteve a ponto de aproar de volta para a Europa. Não era o Novo Mundo que importava, mesmo que de tão real lhe caísse ombros abaixo.  
Colombo morreu sem quase o haver visto direito, e sem saber ao certo o que havia descoberto. É a vida que vale, que importa, a vida e nada mais, o processo, a maneira de descobrir, a tarefa perpétua e imorredoura. E não a descoberta em si, absolutamente. Mas que adianta estar aqui a falar! Decerto o que aqui estou dizendo ou escrevendo não passa de um lugar-comum e me hão de tomar como um colegial desenvolvendo o tema da composição de sabatina. ‘O nascer do sol’. Ou, no máximo, dirão talvez que de fato alguma coisa tinha eu a dizer mas que não soube me ‘explicar’. Acrescentarei, todavia, que sempre no fundo de cada novo pensamento humano, de cada pensamento de gênio ou mesmo de cada pensamento que emerge do cérebro como altíssima centelha, alguma coisa há que não pode ser comunicada aos outros, mesmo que fossem precisos volumes e mais volumes a respeito e que se levasse mais de trinta e cinco anos a querer explicar; alguma coisa que não sai do cérebro, que não pode emergir, que aí fica para sempre intata e incomunicável. Morre-se com ela, sem poder participá-la a quem quer que seja. E todavia bem pode ser que essa seja a ideia mais importante entre todas. Se também eu falhei ao querer transmitir tudo quanto me andou atormentando nestes últimos seis meses, ainda assim cumpre ficar entendido que para chegar a esta minha ‘última convicção’ paguei demasiado caro. Eis o que achei necessário antepor de forma bem explícita à minha ‘Explicação’ e isso por motivos que me concernem”.

O Idiota: Terceira Parte (5c) - Liébediev anuiu
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