terça-feira, 18 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / X - Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

X - Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior
     
     Segundo o seu costume, a Thenardier deixara o marido, sem se intrometer naquele negócio, de que aguardava sucessos de estrondo. Quando Cosette e o homem partiram, Thenardier deixou passar um grande quarto de hora, após o qual chamou a mulher de parte e mostrou-lhe os mil e quinhentos francos.

— Ora! Que grande coisa!

     Era a primeira vez, desde o dia em que principiaram a viver juntos, que ela ousava criticar um ato do marido.
     O tiro acertou no alvo.

— Realmente, tens razão! — disse ele. — Sou um imbecil! Deixa-me cá ver o chapéu.

      E, dobrando as três notas, meteu-as no bolso e saiu a toda a pressa, mas enganou-se e tomou primeiro pela direita. Como, porém, alguns vizinhos, a quem perguntou, o orientassem sobre o caminho que levava a Cotovia e o homem do casacão, dizendo-lhe que os tinham visto caminhar na direção de Livry, Thenardier seguiu a indicação que eles lhe deram, caminhando com ligeireza e falando consigo próprio.

— Aquele homem é um milhão vestido de amarelo e eu sou um grande animal! Ele primeiro deu vinte soldos depois cinco francos, depois cinquenta francos, depois mil e quinhentos, e sempre com a mesma facilidade. Por consequência, daria quinze mil, se lhes pedissem, mas eu vou já pilhá-lo.

      E depois aquela trouxa de roupa, já de antemão preparada para a pequena, tudo isto era singular; aqui anda grande mistério. Ora quem tem seguro um mistério e o deixa fugir. Os segredos dos ricos são esponjas cheias de ouro, que se devem espremer o mais que for possível, porque sempre deitam alguma coisa. Todos estes pensamentos lhe redemoinhavam no cérebro e ele concluía sempre, dizendo: «Sempre sou muito burro!»
     Quando se sai de Montfermeil e se transpõe o cotovelo formado pela estrada que vai para Livry, vê-se estender esta até muito longe pela planície. Thenardier pois, ao chegar aí, calculou que devia avistar o homem e a pequena, e por isso olhou até onde lhe alcançava a vista, mas não viu nada. Perguntou outra vez; pois tudo isto lhe fazia perder tempo. Disseram-lhe algumas pessoas que o homem e a criança em cuja busca andava se tinham encaminhado para o bosque para o lado de Gagny.
      Os dois viandantes levavam-lhe alguma dianteira, porém uma criança anda devagar e ele caminhava depressa, e, além disso, conhecia aqueles sítios aos palmos.
     De repente, Thenardier parou e pôs-se a bater na testa, como quem esqueceu o essencial e está disposto a voltar atrás.

 — E eu que não trouxe a espingarda! — disse ele consigo.

     Thenardier era dessas naturezas duplas que às vezes passam pelo meio de nós sem darmos fé delas e que desaparecem sem ser conhecidas, porque o destino não as mostrou senão por uma face. A sorte de muitos homens é viver assim meio submergidos. Numa situação serena e simples, Thenardier possuía tudo o que era necessário para fazer não diremos para ser do que está convencionado chamar-se um negociante honrado, um homem capaz. Ao mesmo tempo, porém, dadas certas circunstâncias, revolvendo-lhe certos abalos o fundo da natureza, ele possuía tudo o que era necessário para ser um celerado. Era um lojista com laivos de monstro.
     Após uma hesitação de alguns instantes, o estalajadeiro disse consigo:

 — Ora! Estava bem servido. Enquanto eu ia e vinha, punham-se-me eles ao fresco.

      E continuou o seu caminho com presteza, quase com ar de confiança e com a sagacidade da raposa que fareja um bando de perdizes.
     Com efeito, depois que transpôs os lagos e atravessou obliquamente a grande clareira que fica à direita — da alameda de Bellevue, ao chegar ao estendal de verdura que quase circunda a colina, cobrindo a abóbada do an go aqueduto da abadia de Chelles, avistou por cima de um silvado um chapéu, sobre o qual já tantas conjecturas levantara. Era o chapéu do homem. Como o silvado era baixo, Thenardier conheceu que o homem e Cosette estavam ali sentados. Não se via a criança por causa da sua pequenez, mas descobria-se a cabeça da boneca.
      Thenardier não se enganava. O homem sentara-se ali para deixar Cosette descansar um bocado. O taberneiro afastou as silvas e apareceu subitamente aos olhos dos viandantes em cuja procura vinha.

 — Mil perdões e desculpas, senhor — disse ele todo esbaforido — mas aqui tem o seu dinheiro.

      E, ao dizer isto, apresentava ao desconhecido as três notas.
      O homem olhou para ele e disse-lhe:

 — Que quer dizer isso?

      Thenardier respondeu respeitosamente:

 — Senhor, o que quer dizer é que torno a levar Cosette comigo.

      A criança estremeceu e cingiu-se muito ao seu protetor.
     Quanto a este respondeu, cravando os seus nos olhos de Thenardier:

— Tornar a levar Cosette?

     — Sim, senhor, torno-a a levar. Eu lhe conto; refleti e vi que não tinha feito bem em fazer o que fiz, por que, enfim, eu não tenho direito para lhe ceder a criança. Senhor, saiba que eu sou um homem de bem. Ora a pequena não me pertence, pertence à mãe. Quem me confiou foi a mãe e por isso não a posso entregar a mais ninguém senão à mãe. O senhor dirá: «Mas a mãe morreu». Bem, nesse caso não posso dar a criança senão a uma pessoa que me trouxesse um escrito assinado por ela em como eu devo entregar a criança a essa tal pessoa. Isto é claro.
 
      O homem, em vez de responder, meteu a mão no bolso e Thenardier, ao ver tornar a aparecer a carteira das notas, sentiu um estremecimento de alegria.

«Bem!» disse ele consigo. «Sentido, que o homem vai-me querer corromper!»

      Antes de abrir a carteira, o viajante circunvagou a vista para todos os lados, como se receasse ser visto naquela operação. O lugar estava completamente deserto. Não havia vivalma nem no bosque, nem em toda a extensão do vale. O homem abriu pois a carteira e tirou dela não o punhado de notas que Thenardier esperava, mas um simples papelinho, que desembrulhou e apresentou aberto ao estalajadeiro, acrescentando:

 — Tem muita razão. Leia.

     Thenardier pegou no papel e leu:

Montreuil-sur-mer, 25 de Março de 1823 
Senhor Thenardier 
Fará favor de entregar Cosette ao portador desta. 
A importância de que fala ser-lhe-á integralmente paga. 
Sou com a maior consideração, etc. 
Fantine.

 — Conhece essa assinatura? — tornou o homem.

      A assinatura era efetivamente de Fantine e Thenardier conheceu-a. Não havia que replicar. O estalajadeiro sentiu dois violentos despeitos: o de renunciar à corrupção que esperava e o de ser derrotado.
     O homem acrescentou:

 — Pode guardar esse papel para sua defesa.
 
     Thenardier submeteu-se em boa ordem, porém não sem resmungar por entre dentes:

— A assinatura está bem imitada. Mas, enfim, vá lá.

      Depois tentou um esforço desesperado.

— Está bem, senhor — disse ele — uma vez que o senhor é o portador. Mas quero que me paguem o que ainda falta, o que não é assim tão pouco.

      O homem pôs-se de pé e disse, sacudindo aos piparotes o pó que lhe cobria a manga do casacão:

 — Senhor Thenardier, a mãe desta criança julgava dever-lhe, em Janeiro, cento e vinte francos, porém em Fevereiro você mandou-lhe uma conta de quinhentos, dos quais recebeu trezentos em fins de Fevereiro e no princípio de Março recebeu mais outros trezentos. Desde então até agora têm decorrido nove meses que, a quinze francos por mês, como se ajustou, perfaz cento e trinta e cinco francos. Ora, tinha recebido cem francos de mais; restam, por consequência, trinta e cinco, que é quanto se lhe deve, e eu dei-lhe há pouco mil e quinhentos.

     Thenardier experimentou o que experimentam os lobos quando se sentem mordidos e agarrados pelos dentes de ferro da armadilha em que caíram.

 «Que diabo de homem este!» disse ele consigo.

      Fez então o que faz o lobo deu uma sacudidela à ratoeira para se desprender. A audácia já uma vez lhe tinha produzido bom resultado.

— Senhor de quem não sei o nome — disse ele resolutamente e pondo desta feita os modos respeitosos de parte — ou me dá mil escudos ou eu torno a levar a pequena comigo.

      O desconhecido, porém, disse tranquilamente para a criança:

— Vamos embora, Cosette.

     Em seguida deu-lhe a mão esquerda e com a direita apanhou o cajado do chão.
     Thenardier notou a grossura do pau e a solidão do lugar e julgou conveniente não pôr embargos à partida dos dois.
     O homem meteu-se pelo bosque com a pequena, deixando o taberneiro imóvel e aturdido, e enquanto se afastavam, ele contemplava-lhe a largura dos ombros, um tanto arqueados e a desmesurada grandeza dos punhos.
     Depois, voltando os olhos para si mesmo, via os seus braços débeis e as suas magras mãos.

 «Sempre é preciso ser muito bruto», dizia ele consigo, «para não ter trazido a espingarda, sabendo eu que vinha à caça».

      O estalajadeiro, porém, nem assim julgou dever abandonar a presa.

 «Espera, que eu também agora vou ver para onde ele vai!»

      E principiou a segui-los a distância. Ficavam-lhe nas mãos duas coisas uma ironia, o sujo bocado de papel com a assinatura de Fantine, e uma consolação, os mil e quinhentos francos.
     O homem conduzia Cosette na direção de Livry e Bondy, caminhando lentamente, com a cabeça curvada, numa atitude de reflexão e tristeza. Auxiliado pela luz do sol, que penetrava livremente no bosque por entre as árvores, que o inverno despojava da folha, Thenardier não os perdia de vista, conquanto lhes fosse de longe no encalço. De vez em quando, o homem voltava-se, a ver se alguém o seguia. De súbito, avistou Thenardier e embrenhou-se com Cosette numa moita cerrada de árvores, por entre a qual podiam desaparecer ambos aos olhos de Thenardier.

 — Diacho! — disse este e apertou mais o passo.

     Como a espessura da moita o obrigara a aproximar-se mais deles, Thenardier, vendo que o homem, ao chegar ao mais fechado da moita, se voltava para trás, tentou esconder-se entre os ramos, porém, apesar dos esforços, não pôde conseguir que o homem o não avistasse. Este, porém, depois de olhar para ele com ar inquieto, abanou a cabeça e continuou o seu caminho. O estalajadeiro tornou de novo a segui-los por espaço de duzentos ou trezentos passos. De súbito, o homem voltou-se outra vez e avistou o estalajadeiro. Desta feita, porém, olhou para ele com tão sombria expressão no olhar, que Thenardier julgou «inútil» ir mais adiante e voltou para trás.

continua na página 329...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - X - Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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