Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda
X - Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior
Segundo o seu costume, a Thenardier deixara o marido, sem se intrometer naquele
negócio, de que aguardava sucessos de estrondo. Quando Cosette e o homem partiram,
Thenardier deixou passar um grande quarto de hora, após o qual chamou a mulher de
parte e mostrou-lhe os mil e quinhentos francos.
— Ora! Que grande coisa!
Era a primeira vez, desde o dia em que principiaram a viver juntos, que ela ousava
criticar um ato do marido.
O tiro acertou no alvo.
— Realmente, tens razão! — disse ele. — Sou um imbecil! Deixa-me cá ver o chapéu.
E, dobrando as três notas, meteu-as no bolso e saiu a toda a pressa, mas enganou-se
e tomou primeiro pela direita. Como, porém, alguns vizinhos, a quem perguntou, o
orientassem sobre o caminho que levava a Cotovia e o homem do casacão, dizendo-lhe
que os tinham visto caminhar na direção de Livry, Thenardier seguiu a indicação que
eles lhe deram, caminhando com ligeireza e falando consigo próprio.
— Aquele homem é um milhão vestido de amarelo e eu sou um grande animal! Ele
primeiro deu vinte soldos depois cinco francos, depois cinquenta francos, depois mil e
quinhentos, e sempre com a mesma facilidade. Por consequência, daria quinze mil, se
lhes pedissem, mas eu vou já pilhá-lo.
E depois aquela trouxa de roupa, já de antemão preparada para a pequena, tudo isto
era singular; aqui anda grande mistério. Ora quem tem seguro um mistério e o deixa
fugir. Os segredos dos ricos são esponjas cheias de ouro, que se devem espremer o mais
que for possível, porque sempre deitam alguma coisa. Todos estes pensamentos lhe
redemoinhavam no cérebro e ele concluía sempre, dizendo: «Sempre sou muito burro!»
Quando se sai de Montfermeil e se transpõe o cotovelo formado pela estrada que vai
para Livry, vê-se estender esta até muito longe pela planície. Thenardier pois, ao chegar
aí, calculou que devia avistar o homem e a pequena, e por isso olhou até onde lhe
alcançava a vista, mas não viu nada. Perguntou outra vez; pois tudo isto lhe fazia perder
tempo. Disseram-lhe algumas pessoas que o homem e a criança em cuja busca andava se
tinham encaminhado para o bosque para o lado de Gagny.
Os dois viandantes levavam-lhe alguma dianteira, porém uma criança anda devagar e
ele caminhava depressa, e, além disso, conhecia aqueles sítios aos palmos.
De repente, Thenardier parou e pôs-se a bater na testa, como quem esqueceu o
essencial e está disposto a voltar atrás.
— E eu que não trouxe a espingarda! — disse ele consigo.
Thenardier era dessas naturezas duplas que às vezes passam pelo meio de nós sem
darmos fé delas e que desaparecem sem ser conhecidas, porque o destino não as
mostrou senão por uma face. A sorte de muitos homens é viver assim meio submergidos.
Numa situação serena e simples, Thenardier possuía tudo o que era necessário para
fazer não diremos para ser do que está convencionado chamar-se um negociante
honrado, um homem capaz. Ao mesmo tempo, porém, dadas certas circunstâncias,
revolvendo-lhe certos abalos o fundo da natureza, ele possuía tudo o que era necessário
para ser um celerado. Era um lojista com laivos de monstro.
Após uma hesitação de alguns instantes, o estalajadeiro disse consigo:
— Ora! Estava bem servido. Enquanto eu ia e vinha, punham-se-me eles ao fresco.
E continuou o seu caminho com presteza, quase com ar de confiança e com a
sagacidade da raposa que fareja um bando de perdizes.
Com efeito, depois que transpôs os lagos e atravessou obliquamente a grande clareira
que fica à direita — da alameda de Bellevue, ao chegar ao estendal de verdura que
quase circunda a colina, cobrindo a abóbada do an go aqueduto da abadia de Chelles,
avistou por cima de um silvado um chapéu, sobre o qual já tantas conjecturas levantara.
Era o chapéu do homem. Como o silvado era baixo, Thenardier conheceu que o homem
e Cosette estavam ali sentados. Não se via a criança por causa da sua pequenez, mas
descobria-se a cabeça da boneca.
Thenardier não se enganava. O homem sentara-se ali para deixar Cosette descansar
um bocado. O taberneiro afastou as silvas e apareceu subitamente aos olhos dos
viandantes em cuja procura vinha.
— Mil perdões e desculpas, senhor — disse ele todo esbaforido — mas aqui tem o seu
dinheiro.
E, ao dizer isto, apresentava ao desconhecido as três notas.
O homem olhou para ele e disse-lhe:
— Que quer dizer isso?
Thenardier respondeu respeitosamente:
— Senhor, o que quer dizer é que torno a levar Cosette comigo.
A criança estremeceu e cingiu-se muito ao seu protetor.
Quanto a este respondeu, cravando os seus nos olhos de Thenardier:
— Tornar a levar Cosette?
— Sim, senhor, torno-a a levar. Eu lhe conto; refleti e vi que não tinha feito bem em
fazer o que fiz, por que, enfim, eu não tenho direito para lhe ceder a criança. Senhor,
saiba que eu sou um homem de bem. Ora a pequena não me pertence, pertence à mãe.
Quem me confiou foi a mãe e por isso não a posso entregar a mais ninguém senão à
mãe. O senhor dirá: «Mas a mãe morreu». Bem, nesse caso não posso dar a criança
senão a uma pessoa que me trouxesse um escrito assinado por ela em como eu devo
entregar a criança a essa tal pessoa. Isto é claro.
O homem, em vez de responder, meteu a mão no bolso e Thenardier, ao ver tornar a
aparecer a carteira das notas, sentiu um estremecimento de alegria.
«Bem!» disse ele consigo. «Sentido, que o homem vai-me querer corromper!»
Antes de abrir a carteira, o viajante circunvagou a vista para todos os lados, como se
receasse ser visto naquela operação. O lugar estava completamente deserto. Não havia
vivalma nem no bosque, nem em toda a extensão do vale. O homem abriu pois a carteira
e tirou dela não o punhado de notas que Thenardier esperava, mas um simples
papelinho, que desembrulhou e apresentou aberto ao estalajadeiro, acrescentando:
— Tem muita razão. Leia.
Thenardier pegou no papel e leu:
Montreuil-sur-mer, 25 de Março de 1823Senhor ThenardierFará favor de entregar Cosette ao portador desta.A importância de que fala ser-lhe-á integralmente paga.Sou com a maior consideração, etc.Fantine.
— Conhece essa assinatura? — tornou o homem.
A assinatura era efetivamente de Fantine e Thenardier conheceu-a. Não havia que
replicar. O estalajadeiro sentiu dois violentos despeitos: o de renunciar à corrupção que
esperava e o de ser derrotado.
O homem acrescentou:
— Pode guardar esse papel para sua defesa.
Thenardier submeteu-se em boa ordem, porém não sem resmungar por entre dentes:
— A assinatura está bem imitada. Mas, enfim, vá lá.
Depois tentou um esforço desesperado.
— Está bem, senhor — disse ele — uma vez que o senhor é o portador. Mas quero
que me paguem o que ainda falta, o que não é assim tão pouco.
O homem pôs-se de pé e disse, sacudindo aos piparotes o pó que lhe cobria a manga
do casacão:
— Senhor Thenardier, a mãe desta criança julgava dever-lhe, em Janeiro, cento e vinte
francos, porém em Fevereiro você mandou-lhe uma conta de quinhentos, dos quais
recebeu trezentos em fins de Fevereiro e no princípio de Março recebeu mais outros
trezentos. Desde então até agora têm decorrido nove meses que, a quinze francos por
mês, como se ajustou, perfaz cento e trinta e cinco francos. Ora, tinha recebido cem
francos de mais; restam, por consequência, trinta e cinco, que é quanto se lhe deve, e eu
dei-lhe há pouco mil e quinhentos.
Thenardier experimentou o que experimentam os lobos quando se sentem mordidos
e agarrados pelos dentes de ferro da armadilha em que caíram.
«Que diabo de homem este!» disse ele consigo.
Fez então o que faz o lobo deu uma sacudidela à ratoeira para se desprender. A
audácia já uma vez lhe tinha produzido bom resultado.
— Senhor de quem não sei o nome — disse ele resolutamente e pondo desta feita os
modos respeitosos de parte — ou me dá mil escudos ou eu torno a levar a pequena
comigo.
O desconhecido, porém, disse tranquilamente para a criança:
— Vamos embora, Cosette.
Em seguida deu-lhe a mão esquerda e com a direita apanhou o cajado do chão.
Thenardier notou a grossura do pau e a solidão do lugar e julgou conveniente não pôr
embargos à partida dos dois.
O homem meteu-se pelo bosque com a pequena, deixando o taberneiro imóvel e
aturdido, e enquanto se afastavam, ele contemplava-lhe a largura dos ombros, um tanto
arqueados e a desmesurada grandeza dos punhos.
Depois, voltando os olhos para si mesmo, via os seus braços débeis e as suas magras
mãos.
«Sempre é preciso ser muito bruto», dizia ele consigo, «para não ter trazido a
espingarda, sabendo eu que vinha à caça».
O estalajadeiro, porém, nem assim julgou dever abandonar a presa.
«Espera, que eu também agora vou ver para onde ele vai!»
E principiou a segui-los a distância. Ficavam-lhe nas mãos duas coisas uma ironia, o
sujo bocado de papel com a assinatura de Fantine, e uma consolação, os mil e
quinhentos francos.
O homem conduzia Cosette na direção de Livry e Bondy, caminhando lentamente,
com a cabeça curvada, numa atitude de reflexão e tristeza. Auxiliado pela luz do sol, que
penetrava livremente no bosque por entre as árvores, que o inverno despojava da folha,
Thenardier não os perdia de vista, conquanto lhes fosse de longe no encalço. De vez em
quando, o homem voltava-se, a ver se alguém o seguia. De súbito, avistou Thenardier e
embrenhou-se com Cosette numa moita cerrada de árvores, por entre a qual podiam
desaparecer ambos aos olhos de Thenardier.
— Diacho! — disse este e apertou mais o passo.
Como a espessura da moita o obrigara a aproximar-se mais deles, Thenardier, vendo
que o homem, ao chegar ao mais fechado da moita, se voltava para trás, tentou
esconder-se entre os ramos, porém, apesar dos esforços, não pôde conseguir que o
homem o não avistasse. Este, porém, depois de olhar para ele com ar inquieto, abanou a
cabeça e continuou o seu caminho. O estalajadeiro tornou de novo a segui-los por
espaço de duzentos ou trezentos passos. De súbito, o homem voltou-se outra vez e
avistou o estalajadeiro. Desta feita, porém, olhou para ele com tão sombria expressão
no olhar, que Thenardier julgou «inútil» ir mais adiante e voltou para trás.
continua na página 329...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VII — Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - X - Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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