segunda-feira, 17 de março de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - c)

 em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(c)

continuando...

      Minha impressão de solidão cresceu ainda mais um instante após. Como houvesse confessado à minha avó que não me sentia bem, que achava que íamos ser obrigados a voltar a Paris, ela dissera, sem protestar, que sairia para fazer algumas compras úteis tanto se tivéssemos de partir como ficar (e que, a seguir, eu soube que me eram todas destinadas, pois Françoise levara consigo algumas coisas que me fariam falta); esperando-a, fora dar uma volta pelas ruas entulhadas de uma multidão que ali mantinha um calor de apartamento e onde ainda estavam abertos um salão de barbeiro e uma pastelaria, na qual os fregueses tomavam gelados diante da estátua de Duguay-Trouin. Ela me causou quase o mesmo prazer que sua imagem, no meio de uma revista ilustrada, pode trazer ao doente que a folheia na sala de espera de um cirurgião. Espantava-me que houvesse pessoas bem diferentes de mim para que, nesse passeio pela cidade, o gerente me pudesse tê-lo recomendado como distração, e também para que o local de suplício, que é uma nova morada, pudesse parecer a certas pessoas "um jardim de delícias", como dizia o prospecto do hotel, que podia estar exagerando mas se dirigia a toda uma clientela cujos gostos lisonjeava. É verdade que ele invocava, para que viessem ao Grande Hotel de Balbec, não apenas "o tratamento requintado" e o "panorama feérico dos jardins do cassino", mas ainda os "decretos de Sua Majestade a Moda, que não se pode violar impunemente sem se passar por um idiota, coisa a que nenhum homem bem-educado desejaria se expor".
      A necessidade que eu sentia de minha avó aumentara pelo receio de lhe haver causado uma desilusão. Ela devia estar desanimada, achando que, se eu não suportava esse cansaço, era de desesperar que qualquer viagem me fizesse bem. Decidi entrar para esperá-la; o gerente veio pessoalmente apertar um botão: e um personagem, ainda meu desconhecido, a quem chamavam lift (e, no ponto mais alto do hotel, lá onde ficaria o lanternim de uma igreja normanda, estava instalado como um fotógrafo por trás de seus vidros ou um organista em sua câmara), pôs-se a descer na minha direção com a agilidade de um esquilo doméstico, industrioso e cativo. Depois, deslizando de novo ao longo de uma pilastra, arrastou-me consigo para o domo da nave comercial. A cada andar, dos dois lados de pequenas escadas de comunicação, desdobravam-se em leque escuras galerias, nas quais, carregando um travesseiro, passava uma camareira. Aplicava ao seu rosto, que o crepúsculo me tornava indeciso, a máscara de minhas fantasias mais apaixonadas; lia no seu olhar voltado para mim o horror do meu nada. Entretanto, para dissipar, no decurso da subida interminável, a angústia mortal que experimentei em atravessar em silêncio o mistério daquele claro-escuro sem poesia, iluminado apenas por uma fileira vertical de vidraças, formada pela superposição do water-closet de cada andar, dirigi a palavra ao jovem organista, artesão de viagem e companheiro de minha prisão, o qual continuava a manusear os respectivos tubos de seu instrumento. Desculpei-me por ocupar tanto espaço e lhe dar tanto trabalho, e perguntei-lhe se não o incomodava no exercício de uma arte, a respeito, para lisonjear o virtuoso, fiz mais do que manifestar a minha curiosidade confessei-lhe minha predileção. Mas ele não me respondeu, fosse por estar diante de minhas palavras, atenção ao trabalho, preocupação com a etiqueta, respeito ao lugar, receio do perigo, preguiça de inteligência ou ordem do gerente. Talvez não haja nada que nos dê mais fortemente a impressão da realidade daquilo que nos é exterior como a mudança de posição de uma pessoa em reter a nós, mesmo que seja uma pessoa insignificante, antes e depois de a ter conhecido. Eu era o mesmo homem que, no fim da tarde, tomara o trenzinho em Balbec, trazia comigo a mesma alma. Porém nessa alma, no lugar onde, àquelas horas, havia a impossibilidade de imaginar o gerente, o Palácio, o seu pessoal; vaga e temerosa espera do momento da chegada, encontravam-se agora as rugas extirpadas do rosto do gerente cosmopolita (na realidade natural e monegasco, embora fosse como dizia, pois empregava sempre expressões que julgava distintas, sem perceber que eram viciosas, de originalidade romeno gesto para chamar o lift, o próprio lift, toda uma galeria de personagens saídos daquela caixa de Pandora que era o Grande Hotel, inegáveis, irremovíveis como tudo que está realizado, esterilizantes. Mas pelo menos esta mudança da qual não tomara parte, provava me que ocorrera algo exterior a mim desprovido de interesse que fosse em si mesmo; eu estava como o viajante tendo o sol à sua frente ao iniciar uma caminhada, percebe as horas quando o vê por detrás. Morto de cansaço, sentia febre; bem que deitaria, mas não tinha nada do que era necessário para isso. Desejaria pelo menos estender-me um momento na cama, mas para que, se não poderia encontrar descanso para esse conjunto de sensações que, para cada um de nós, é o seu consciente, senão seu corpo material, e se os objetos desconhecidos que o vêm, forçando-o a colocar suas sensações em permanente estado de latente, teriam mantido o meu olhar, meu ouvido, todos os meus sentidos, posição tão reduzida e incômoda (mesmo se tivesse esticado as pernas) de cardeal La Balue na gaiola onde não podia estar de pé nem sentado. Em atenção que põe os objetos num quarto, e o hábito que os retira, abriu para nós. Espaço era o que não havia para mim no meu quarto de Balbec, pois estava cheio de coisas que não me conheciam e viram o olhar desconfiado que lhes lancei e, sem levar em conta a minha existência, participaram que eu lhes desarrumava a sua rotina; ouvia o pêndulo, ao passo que em casa eu só ouvia por alguns segundos na semana, e apenas quando saía de uma profunda meditação continuou sem se interromper um único instante, fazendo em língua estranha considerações que deviam ser pouco elogiosas a meu respeito, pois as grandes cortinas roxas a escutavam sem responder, mas na atitude análoga à das pessoas que dão de ombros para mostrar que a vista de um terceiro as irrita. Davam àquele quarto tão alto um caráter quase histórico que o poderia tornar apropriado ao assassinato do duque de Guise e, mais tarde, a uma visita de turistas conduzidos por um guia da agência Cookmas de modo algum ao meu sono. Sentia-me atormentado pela presença de pequenas estantes envidraçadas, ao longo das paredes, mas sobretudo por um grande espelho com pés, atravessado no meio do quarto e antes de cuja partida achava eu que para mim não haveria sossego possível. A todo instante erguia os olhos a que os objetos do meu quarto em Paris não incomodavam mais que minhas próprias pupilas, pois não eram mais que anexos de meus órgãos, uma ampliação de mim mesmo para o teto soerguido daquele belvedere situado no cimo do hotel e que minha avó escolhera para mim; e até mesmo nessa região mais íntima do que aquela que vemos e ouvimos, nessa região em que sentimos a qualidade dos odores, era quase no interior de mim mesmo que o cheiro do vetiver vinha impelir sua ofensiva até minhas últimas defesas, assédio a que eu opunha, não sem cansaço, a resposta inútil e incessante de uma fungação alarmada. Já não tendo universo nem quarto, só corpo ameaçado pelos inimigos que me cercavam, e invadido até os ossos pela febre, estava sozinho e tinha vontade de morrer. Então minha avó entrou; e, para a expansão de meu coração reprimido, abriram-se logo espaços infinitos.
     Ela vestia um chambre de tergal, que punha em casa sempre que um de nós estava doente (pois assim sentia-se mais à vontade, dizia, atribuindo sempre motivos egoístas ao que fazia), e que servia para nos cuidar, para nos velar, era o seu traje de criada e de enfermeira, seu hábito de religiosa. Mas, ao passo que os cuidados destas, a bondade que têm, o mérito que lhes reconhecem e a gratidão que lhes devem, aumentam ainda mais a impressão que a gente tem de ser, para elas, uma outra pessoa, de sentir-se só, de guardar para si o peso dos pensamentos, de seu próprio desejo de viver, eu sabia, quando estava com minha avó, que, por maior que fosse o meu desgosto, seria acolhido com piedade ainda mais ampla; que tudo o que era meu, minhas preocupações, meu desejo, seria, em minha avó, apoiado num desejo de conservação e acréscimo de minha própria vida, aliás mais forte que o que eu mesmo tinha. E meus pensamentos se prolongavam nela sem sofrer desvio porque passavam do meu espírito para o dela sem mudar de ambiente, de pessoa. Como alguém que deseja dar o nó à gravata diante de um espelho - compreender que a ponta que vê não está colocada, em relação a ele, no lado para onde dirige a mão, ou como um cão que persegue no solo a sombra de um inseto -, enganado pela aparência do corpo como o somos no mundo que não percebemos diretamente as almas, lancei-me nos braços de minha avó! Ergui os lábios para o seu rosto, como se assim cedesse àquele imenso abraço que ela me abria. Quando estava assim, com a boca unida às suas faces, à sua havia ali algo tão benéfico, tão nutriente, que mantinha a imobilidade, a tranquila avidez de uma criança que mama. Depois contemplava, sem cansar, seu grande rosto desenhado como bela nuvem ardente e calma, por trás do qual sentia-se irradiar a ternura. E, aquilo que ainda recebia, por mais debilmente que fosse, um pouco de suas reações, tudo o que ainda podia ser desse modo dito a ela, ficava logo tão espiritual tão santificado, que com minhas palmas eu alisava seus lindos cabelos, que se faziam grisalhos, com tanto respeito, precaução e doçura, como se neles acariciando a sua bondade. Ela sentia tanto prazer em toda mágoa que era igual a mágoa à mim; num momento de imobilidade e de calma para os membros fatigados, algo tão delicioso que, tendo visto que ela queria ajudar me deitar e tirar os sapatos, quando fiz menção de impedi-la e de começar a me deitar sozinho, ela reteve com olhar súplice as minhas mãos que tocavam os primeiros botões de minha roupa e das botinas.

- Oh, peço-te - disse ela. - É uma alegria tão grande para tua avó; principalmente, não deixes de bater na parede se tiveres necessidade de qualquer coisa esta noite; minha cama está pegada à tua e a divisória é bem fina. No instante que estiveres deitado, bate, para ver se podemos nos ouvir.

    E, de fato, naquela noite bati três pancadas que, na semana quando estive doente, renovei por alguns dias todas as manhãs, pois queria me dar leite bem cedo. Então, quando achava que ela já acordara - para que ela não esperasse e pudesse dormir de novo logo após-, arriscava três pancadas tímidas, fracamente, apesar de tudo bem distintas, pois se temia lhe interromper o sono no caso de me haver enganado e que ela já dormisse; não gostei que ela aguardasse ainda um apelo que não teria percebido a princípio e que eu não tinha mais coragem de renovar. E, mal eu dera as minhas batidas, ouvi três outras entonações diferentes, cheias de uma calma autoridade, repetidas duas vezes para maior clareza, e que significavam: "Não te inquietes, já escutei; daqui a um minuto estarei aí"; e logo depois minha avó chegava. Dizia-lhe que temera que ela não ouvisse ou pensasse que era um vizinho quem batia; ela ria:

- Confundir as batidas do meu queridinho com as de outros... milhões de distância a sua vovó as reconheceria! Achas então que existem outras no mundo tão bobas, tão nervosas, tão divididas entre o medo de me acordar e de não ser compreendido? Mas, mesmo que o meu ratinho se contentasse com uma parede, eu logo o reconheceria, sobretudo quando é tão querido e coitadinho é. Já fazia um momento que eu te ouvia hesitar, remexer na cama, e fazer todas as tuas manobras.

     Ela entreabria as persianas; o sol já se instalara no anexo de hotel que formava uma saliência, como um consertador de telhados que madruga e principia o seu trabalho, cumprindo-o em silêncio para não despertar a cidade que ainda está dormindo, e cuja imobilidade ainda mais ressalta a agilidade do operário. Dizia-me as horas, o tempo que faria, que não valia a pena eu ir à janela, que havia névoa sobre o mar, se a padaria já estava aberta, qual era o carro que já se ouvia rodar: insignificante ante o ato, desprezível introito do dia a que ninguém assiste; minúsculo pedacinho de vida que era só de nós dois, que eu logo haveria de evocar de bom grado durante o dia, diante de Françoise ou de estranhos, falando da névoa espessa das seis da manhã, com a ostentação, não de um saber adquirido, mas de um sinal de afeto recebido somente por mim; doce instante matinal que principiava como uma sinfonia pelo diálogo ritmado de minhas três pancadinhas, às quais a divisória, toda penetrada de ternura e alegria, harmoniosa, imaterial, cantando como os anjos, respondia com outras três pancadas, ardentemente aguardadas, duas vezes repetidas, e nas quais a parede sabia transportar inteira a alma de minha avó, e a promessa de sua vinda, com uma alegria de anunciação e uma fidelidade musical. Mas na primeira noite da chegada, quando minha avó me deixou, recomecei a passar mal, como já sofrera em Paris no momento de deixar a casa. Talvez esse meu medo de dormir num quarto desconhecido - medo que tantos outros também têm -, não passe da forma humílima, obscura, orgânica, quase inconsciente, da grande recusa desesperada oposta pelas coisas que constituem o melhor da nossa vida presente à possibilidade de revistarmos mentalmente com a nossa aceitação a fórmula de um futuro onde elas não mais apareçam; recusa que estava na base daquele horror que tantas vezes me inspirara a ideia de que meus pais um dia haveriam de morrer, que as necessidades da vida poderiam me obrigar a viver longe de Gilberte, ou simplesmente a me fixar em definitivo numa terra onde nunca mais veria os meus amigos; recusa que estava inclusive na base da dificuldade que sentia em pensar na minha própria morte ou numa sobrevivência como a que Bergotte prometia aos homens em seus livros, na qual não poderia carregar junto minhas próprias recordações, meus defeitos, meu caráter, que não se resignavam à ideia de não existir mais e não desejavam para mim nem o Nada, nem uma eternidade em que eles não existissem. Quando Swann me dissera em Paris, um dia em que me sentia bastante real:

- Você deveria partir para aquelas deliciosas ilhas da Oceania; verá que não há de voltar mais - tive vontade de responder:
- Mas então não veria mais a sua filha e viveria em meio a coisas e pessoas que ela nunca viu. - e no entanto, a razão me dizia: ''- E que importa, visto que não sofrerás mais? Quando o Sr. Swann diz que não voltarás, quer dizer que não quererias mais voltar, e, visto não quereres voltar, é porque lá te sentirias feliz."

     Pois minha razão sabia que o hábito de assumir agora a tarefa de me fazer amar aquela casa desconhecida, espelho do lugar, o colorido das cortinas e de parar o pêndulo - se encarrega também de nos tornar caros os companheiros que a princípio nos desagradava dar outro formato aos rostos, de fazer simpático o som de uma voz, de modificar inclinações do coração. É claro que essas amizades novas por lugares e pessoas são tecidas sobre o esquecimento das antigas; mas justamente a minha, pensava que eu podia encarar sem terror a perspectiva de uma vida em que ficaria para sempre separado de pessoas cuja lembrança me fugiria; e era como uma espécie de consolo que oferecia ao meu coração a promessa de um esquecimento que, pelo contrário, me deixava louco de desespero. E não é que o nosso coração não deva também experimentar, ao consumar-se a separação, os efeitos acostumados pelo hábito; mas, até que isso aconteça, continuará sofrendo. Temo no futuro em que não poderemos ver nem conversar com os entes queridos, quais hoje tiramos a nossa mais profunda alegria, esse temor, longe de diminuir, aumenta quando pensamos que, à dor de uma tal separação, se acrescentará; no momento nos parece ainda mais cruel, de não mais sentirmos como permanecermos indiferentes; pois então o nosso eu terá mudado; não ser mais o encanto de nossos pais, de nossa amante, de nossos amigos, que deixa estar à nossa volta; nossa afeição por eles terá sido tão bem extirpada do coração a qual hoje em dia se constitui parte tão importante, que poderiam alegrar com essa vida separada deles, cuja ideia hoje nos causa horror; será uma verdadeira morte de nós mesmos, é verdade que morte seguida de ressurreição, mas num eu diverso e que não pode inspirar afeto às partes antigas, condenadas a morrer. São elas até as mais débeis, como o obscuro das dimensões, à atmosfera de um quarto as que se assustam e reprovam; rebeliões em que se pode ver uma forma secreta, parcial, tangível e verdadeira resistência à morte, da longa resistência desesperada e cotidiana à morte refratária e sucessiva tal como se insere em todos os momentos da nossa vida; ficando pedaços de nós a cada instante e fazendo que sobre a carne morta se multipliquem células novas. Para um temperamento nervoso como o meu nos quais os intermediários nervos, cumpriam mal suas funções, não restando o passo, até à consciência, das queixas dos mais humildes elementos do que vai desaparecer; ao contrário deixando-as chegar claras, exaustivas, inumeráveis e dolorosas; o angustioso alarme que eu experimentava sob aquele teto desaparecido e alto demais era apenas o protesto de uma amizade que sobrevivia em por um teto baixo e familiar. Sem dúvida essa amizade desapareceria, tendo seu posto em outra parte; então a morte e, depois, uma nova vida teriam nome de Hábito, cumprindo sua dupla obra; mas até o seu aniquilamento da afeição sofreria, principalmente naquela primeira noite, colocada em piedade num futuro já realizado, onde não mais havia lugar para ela, se revoltava, torturando me com os gritos de suas lamentações cada vez que meus olhares, não podendo se desviar daquilo que a fazia sofrer, tentavam pousar no teto inacessível.
      Mas na manhã seguinte! - Depois que um criado veio me acordar e me trouxe água quente; enquanto me aprontava e tentava em vão encontrar na sala as coisas de que necessitava, e de onde tirava, em desordem, somente as peças que para nada serviam, que alegria senti ao pensar no prazer do almoço e do passeio; ao ver pela janela, em todas as vitrinas das estantes, como pelas vigias de um camarote de navio; o mar límpido, sem sombras, embora metade de sua superfície, delimitada por linha delgada e móvel, estivesse ensombrecida; ao seguir com os olhos as ondas que se arremessavam uma após outra como saltadores num trampolim! Em todos os instantes, tendo na mão a toalha tesa e engomada, na qual estava escrito o nome do hotel e com a qual fazia inúteis esforços para me secar, voltava para junto da janela a fim de lançar ainda um olhar àquele vasto circo resplandecente e montanhoso; aos nevados cumes de suas ondas de esmeralda aqui e ali polida e translúcida; que, com plácida violência e aspecto leonino, deixavam erguer-se e cair as suas rampas, às quais o sol acrescentava um sorriso sem rosto. Janela à qual, a seguir, eu deveria me pôr todas as manhãs como à portinhola de uma diligência onde adormecesse um viajante, para ver se durante a noite se aproximou ou se afastou uma desejada cordilheira - aqui as colinas do mar que, antes de voltar em nossa direção a passo de dança, podem recuar para tão longe que muitas vezes eu só avistava ao fim de uma longa distância as suas primeiras ondulações, numa transparência longínqua, vaporosa e azulada; como as geleiras que se vêem no fundo dos quadros dos primitivos toscanos. De outras vezes, era bem perto de mim que o sol ria sobre essas ondas; de um verde tão macio como o que mantém nas campinas alpestres (nas montanhas onde o sol aparece aqui e ali como um gigante que descesse alegremente, por vertentes e saltos desiguais) mais a líquida mobilidade da luz do que a umidade do solo. De resto, nessa brecha que a praia e as ondas abrem no meio do mundo, para que nela penetre e se acumule a luz, é sobretudo a própria luz, de acordo com a direção de onde provém e que seguimos com o olhar, que desloca e situa as ondulações do mar.
     A diversidade de iluminação também modifica a orientação de um lugar, e nos oferece novos objetivos; dando-nos o desejo de atingi-los, não menos que o faria um trajeto longa e efetivamente percorrido em viagem. Quando, pela manhã, o sol vinha por detrás do hotel, abrindo à minha frente as praias iluminadas até os primeiros contrafortes do mar, era como se me mostrasse uma outra vertente da cordilheira; convidando-me a fazer, pelo caminho turbilhonante de seus raios, uma viagem imóvel e variada pelos mais belos sítios da paisagem acidentada das horas. Desde a primeira manhã, o sol me indicava ao longe, com um dedo risonho, os cimos azulados do Mar que não têm nome em nenhuma carta geográfica, até que, extasiado com aquele sublime passeio à superfície rumorosa e caótica de suas cristas, vinha se abrigar do vento em meu quarto, refestelando-se na cama derramando suas riquezas na pia molhada, na mala aberta, onde, por seu esplendor e luxo deslocado, aumentava ainda mais a impressão de desordem. Infelizmente, uma hora depois, na grande sala de jantar, enquanto almoça; de um limão cortado, espalhávamos algumas gotas de ouro sobre dois peixes dos quais logo deixaram em nossos pratos a armação de suas espinhas; como uma pena e sonora como uma cítara pareceu cruel à minha avó que pudéssemos receber o vivificante sopro do vento marinho por causa da vidraça transparente mas fechada que, como uma vitrina, nos separava da praia, mas enquadrava tão perfeitamente o céu que o seu azul parecia as cordas e suas nuvens brancas, um defeito do vidro. Convencido de que estava "sentado no molhe" ou no interior do boudoir, de que nos fala Baudelaire, perguntava - "sol raiando sobre o mar", do poeta, não seria aquele bem diverso do dos da tarde, simples e superficiais como setas douradas e trêmulas que naquele momento queimava o mar como um topázio, fazia-o fermentar, tornava-o louro - sol como a cerveja, espumante como o leite, enquanto, por alguns instantes, - ele passeava aqui e ali grandes sombras azuis, obra sem dúvida de um deus que parecia se divertir em deslocá-las, movimentando um espelho no céu. Infelizmente não só pelo aspecto é que a sala de jantar de Balbec diferia da de Combray, para as casas fronteiras, uma sala sem ornatos, porém repleta de sol verde água de uma piscina, onde, a poucos metros de distância, a maré cheia e a claridade do dia elevavam, como diante de uma cidade celestial, uma indestrutível muralha de ouro e esmeralda. Em Combray, como todos nos conheciam, ninguém se preocupava com ninguém. E na vida de banhos de mar ninguém conhece banhos. Eu era ainda muito jovem e sensível para ter renunciado ao prazer de agradar as pessoas e possuí-las. Não tinha essa mais nobre indiferença que sentir homem mundano em relação às pessoas que ali almoçavam, nem quanto aos rapazes e moças que passavam pelo molhe; e sofria ante a ideia de que não pudesse fazer excursões com eles; a menos que minha avó, desprezando as convenções, e só preocupada com a minha saúde, lhes fosse pedir que me aceitassem como companheiro de passeios, coisa humilhante para mim. Uns se dirigiam para o chalé desconhecido; outros saíam de raquete em punho para um campo de, outros, ainda, montavam cavalos cujos cascos me pisavam o coração. Eu os olhava com uma curiosidade apaixonada, envoltos naquela ofuscante claridade; onde se modificam todas as proporções sociais; seguia todos os seus movimentos, através da transparência daquele enorme vão envidraçado, que deixava passar a luz. Mas ela interceptava o vento, o que era um defeito na opinião de minha avó que, não podendo suportar a ideia de que eu perdesse o benefício de uma ar, abriu furtivamente uma das vidraças, fazendo ao mesmo tempo voar cardápios, os jornais, os véus e bonés das pessoas que estavam almoçando; mas ela própria, animada com aquele sopro divino, permanecia calma e sorridente como santa Blandina, no meio dos impropérios que, aumentando minha impressão de tristeza e isolamento, reuniam contra nós todos os turistas desdenhosos, despenteados, furiosos. Um certo número dos hóspedes do hotel se compunha de personalidades eminentes dos principais departamentos daquela porção da França, o que, em Balbec, dava à população, que nesse tipo de hotéis de grande luxo costuma ser banalmente rica e cosmopolita, um caráter regional bastante acentuado; eram o primeiro magistrado de Caen, o presidente da Ordem dos Advogados de Cherburgo, um respeitável tabelião de Le Mans, que, durante as férias, partindo de pontos onde haviam estado dispersos o ano inteiro como atiradores de guerrilha, ou peões do jogo de damas, vinham se concentrar neste hotel. Mandavam reservar sempre os mesmos quartos e, com as esposas que tinham pretensões aristocráticas, formavam um pequeno grupo ao qual se ajuntavam um grande advogado e um grande médico de Paris, que no dia da partida lhes diziam:

- Ah, é verdade, vocês não tomam o mesmo trem que nós. São privilegiados, estarão de volta em casa para o almoço.
- Como, privilegiados? Vocês que moram na capital, Paris, a grande cidade, enquanto eu resido numa cabeça de comarca de cem mil almas, na verdade cento e dois mil pelo último recenseamento; mas o que é isso diante de vocês, que contam com os dois milhões e meio de Paris, e que logo terão de volta o asfalto e todo o esplendor do mundo parisiense!

Nenhum comentário:

Postar um comentário