em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(c)
continuando...
Minha impressão de solidão cresceu ainda mais um instante após. Como houvesse confessado à minha avó que não me sentia bem, que achava que íamos ser obrigados a voltar a Paris, ela dissera, sem protestar, que sairia para fazer algumas compras úteis tanto se tivéssemos de partir como ficar (e que, a seguir, eu soube que me eram todas destinadas, pois Françoise levara consigo algumas coisas que me fariam falta); esperando-a, fora dar uma volta pelas ruas entulhadas de uma multidão que ali mantinha um calor de apartamento e onde ainda estavam abertos um salão de barbeiro e uma pastelaria, na qual os fregueses tomavam gelados diante da estátua de Duguay-Trouin. Ela me causou quase o mesmo prazer que sua imagem, no meio de uma revista ilustrada, pode trazer ao doente que a folheia na sala de espera de um cirurgião. Espantava-me que houvesse pessoas bem diferentes de mim para que, nesse passeio pela cidade, o gerente me pudesse tê-lo recomendado como distração, e também para que o local de suplício, que é uma nova morada, pudesse parecer a certas pessoas "um jardim de delícias", como dizia o prospecto do hotel, que podia estar exagerando mas se dirigia a toda uma clientela cujos gostos lisonjeava. É verdade que ele invocava, para que viessem ao Grande Hotel de Balbec, não apenas "o tratamento requintado" e o "panorama feérico dos jardins do cassino", mas ainda os "decretos de Sua Majestade a Moda, que não se pode violar impunemente sem se passar por um idiota, coisa a que nenhum homem bem-educado desejaria se expor".
A necessidade que eu sentia de minha avó aumentara pelo receio de lhe haver causado
uma desilusão. Ela devia estar desanimada, achando que, se eu não suportava esse cansaço, era
de desesperar que qualquer viagem me fizesse bem. Decidi entrar para esperá-la; o gerente veio
pessoalmente apertar um botão: e um personagem, ainda meu desconhecido, a quem chamavam
lift (e, no ponto mais alto do hotel, lá onde ficaria o lanternim de uma igreja normanda, estava
instalado como um fotógrafo por trás de seus vidros ou um organista em sua câmara), pôs-se a
descer na minha direção com a agilidade de um esquilo doméstico, industrioso e cativo. Depois,
deslizando de novo ao longo de uma pilastra, arrastou-me consigo para o domo da nave
comercial. A cada andar, dos dois lados de pequenas escadas de comunicação, desdobravam-se
em leque escuras galerias, nas quais, carregando um travesseiro, passava uma camareira.
Aplicava ao seu rosto, que o crepúsculo me tornava indeciso, a máscara de minhas fantasias mais
apaixonadas; lia no seu olhar voltado para mim o horror do meu nada. Entretanto, para dissipar,
no decurso da subida interminável, a angústia mortal que experimentei em atravessar em silêncio
o mistério daquele claro-escuro sem poesia, iluminado apenas por uma fileira vertical de vidraças,
formada pela superposição do water-closet de cada andar, dirigi a palavra ao jovem organista,
artesão de viagem e companheiro de minha prisão, o qual continuava a manusear os respectivos
tubos de seu instrumento. Desculpei-me por ocupar tanto espaço e lhe dar tanto trabalho, e
perguntei-lhe se não o incomodava no exercício de uma arte, a respeito, para lisonjear o virtuoso,
fiz mais do que manifestar a minha curiosidade confessei-lhe minha predileção. Mas ele não me
respondeu, fosse por estar diante de minhas palavras, atenção ao trabalho, preocupação com a
etiqueta, respeito ao lugar, receio do perigo, preguiça de inteligência ou ordem do gerente. Talvez
não haja nada que nos dê mais fortemente a impressão da realidade daquilo que nos é exterior
como a mudança de posição de uma pessoa em reter a nós, mesmo que seja uma pessoa
insignificante, antes e depois de a ter conhecido. Eu era o mesmo homem que, no fim da tarde,
tomara o trenzinho em Balbec, trazia comigo a mesma alma. Porém nessa alma, no lugar onde,
àquelas horas, havia a impossibilidade de imaginar o gerente, o Palácio, o seu pessoal; vaga e
temerosa espera do momento da chegada, encontravam-se agora as rugas extirpadas do rosto do
gerente cosmopolita (na realidade natural e monegasco, embora fosse como dizia, pois
empregava sempre expressões que julgava distintas, sem perceber que eram viciosas, de
originalidade romeno gesto para chamar o lift, o próprio lift, toda uma galeria de personagens
saídos daquela caixa de Pandora que era o Grande Hotel, inegáveis, irremovíveis como tudo que
está realizado, esterilizantes. Mas pelo menos esta mudança da qual não tomara parte, provava
me que ocorrera algo exterior a mim desprovido de interesse que fosse em si mesmo; eu estava
como o viajante tendo o sol à sua frente ao iniciar uma caminhada, percebe as horas quando o vê
por detrás. Morto de cansaço, sentia febre; bem que deitaria, mas não tinha nada do que era
necessário para isso. Desejaria pelo menos estender-me um momento na cama, mas para que,
se não poderia encontrar descanso para esse conjunto de sensações que, para cada um de nós,
é o seu consciente, senão seu corpo material, e se os objetos desconhecidos que o vêm,
forçando-o a colocar suas sensações em permanente estado de latente, teriam mantido o meu
olhar, meu ouvido, todos os meus sentidos, posição tão reduzida e incômoda (mesmo se tivesse
esticado as pernas) de cardeal La Balue na gaiola onde não podia estar de pé nem sentado. Em
atenção que põe os objetos num quarto, e o hábito que os retira, abriu para nós. Espaço era o que
não havia para mim no meu quarto de Balbec, pois estava cheio de coisas que não me conheciam
e viram o olhar desconfiado que lhes lancei e, sem levar em conta a minha existência,
participaram que eu lhes desarrumava a sua rotina; ouvia o pêndulo, ao passo que em casa eu só
ouvia por alguns segundos na semana, e apenas quando saía de uma profunda meditação
continuou sem se interromper um único instante, fazendo em língua estranha considerações que
deviam ser pouco elogiosas a meu respeito, pois as grandes cortinas roxas a escutavam sem
responder, mas na atitude análoga à das pessoas que dão de ombros para mostrar que a vista de
um terceiro as irrita. Davam àquele quarto tão alto um caráter quase histórico que o poderia tornar
apropriado ao assassinato do duque de Guise e, mais tarde, a uma visita de turistas conduzidos
por um guia da agência Cookmas de modo algum ao meu sono. Sentia-me atormentado pela
presença de pequenas estantes envidraçadas, ao longo das paredes, mas sobretudo por um
grande espelho com pés, atravessado no meio do quarto e antes de cuja partida achava eu que
para mim não haveria sossego possível. A todo instante erguia os olhos a que os objetos do meu
quarto em Paris não incomodavam mais que minhas próprias pupilas, pois não eram mais que
anexos de meus órgãos, uma ampliação de mim mesmo para o teto soerguido daquele belvedere
situado no cimo do hotel e que minha avó escolhera para mim; e até mesmo nessa região mais
íntima do que aquela que vemos e ouvimos, nessa região em que sentimos a qualidade dos
odores, era quase no interior de mim mesmo que o cheiro do vetiver vinha impelir sua ofensiva até
minhas últimas defesas, assédio a que eu opunha, não sem cansaço, a resposta inútil e
incessante de uma fungação alarmada. Já não tendo universo nem quarto, só corpo ameaçado
pelos inimigos que me cercavam, e invadido até os ossos pela febre, estava sozinho e tinha
vontade de morrer. Então minha avó entrou; e, para a expansão de meu coração reprimido,
abriram-se logo espaços infinitos.
Ela vestia um chambre de tergal, que punha em casa sempre que um de nós estava
doente (pois assim sentia-se mais à vontade, dizia, atribuindo sempre motivos egoístas ao que
fazia), e que servia para nos cuidar, para nos velar, era o seu traje de criada e de enfermeira, seu
hábito de religiosa. Mas, ao passo que os cuidados destas, a bondade que têm, o mérito que lhes
reconhecem e a gratidão que lhes devem, aumentam ainda mais a impressão que a gente tem de
ser, para elas, uma outra pessoa, de sentir-se só, de guardar para si o peso dos pensamentos, de
seu próprio desejo de viver, eu sabia, quando estava com minha avó, que, por maior que fosse o
meu desgosto, seria acolhido com piedade ainda mais ampla; que tudo o que era meu, minhas
preocupações, meu desejo, seria, em minha avó, apoiado num desejo de conservação e
acréscimo de minha própria vida, aliás mais forte que o que eu mesmo tinha. E meus
pensamentos se prolongavam nela sem sofrer desvio porque passavam do meu espírito para o
dela sem mudar de ambiente, de pessoa. Como alguém que deseja dar o nó à gravata diante de
um espelho - compreender que a ponta que vê não está colocada, em relação a ele, no lado para
onde dirige a mão, ou como um cão que persegue no solo a sombra de um inseto -, enganado
pela aparência do corpo como o somos no mundo que não percebemos diretamente as almas,
lancei-me nos braços de minha avó! Ergui os lábios para o seu rosto, como se assim cedesse
àquele imenso abraço que ela me abria. Quando estava assim, com a boca unida às suas faces, à
sua havia ali algo tão benéfico, tão nutriente, que mantinha a imobilidade, a tranquila avidez de
uma criança que mama. Depois contemplava, sem cansar, seu grande rosto desenhado como
bela nuvem ardente e calma, por trás do qual sentia-se irradiar a ternura. E, aquilo que ainda
recebia, por mais debilmente que fosse, um pouco de suas reações, tudo o que ainda podia ser
desse modo dito a ela, ficava logo tão espiritual tão santificado, que com minhas palmas eu
alisava seus lindos cabelos, que se faziam grisalhos, com tanto respeito, precaução e doçura,
como se neles acariciando a sua bondade. Ela sentia tanto prazer em toda mágoa que era igual a
mágoa à mim; num momento de imobilidade e de calma para os membros fatigados, algo tão
delicioso que, tendo visto que ela queria ajudar me deitar e tirar os sapatos, quando fiz menção de
impedi-la e de começar a me deitar sozinho, ela reteve com olhar súplice as minhas mãos que
tocavam os primeiros botões de minha roupa e das botinas.
- Oh, peço-te - disse ela. - É uma alegria tão grande para tua avó; principalmente, não
deixes de bater na parede se tiveres necessidade de qualquer coisa esta noite; minha cama está
pegada à tua e a divisória é bem fina. No instante que estiveres deitado, bate, para ver se
podemos nos ouvir.
E, de fato, naquela noite bati três pancadas que, na semana quando estive doente, renovei
por alguns dias todas as manhãs, pois queria me dar leite bem cedo. Então, quando achava que
ela já acordara - para que ela não esperasse e pudesse dormir de novo logo após-, arriscava três
pancadas tímidas, fracamente, apesar de tudo bem distintas, pois se temia lhe interromper o sono
no caso de me haver enganado e que ela já dormisse; não gostei que ela aguardasse ainda um
apelo que não teria percebido a princípio e que eu não tinha mais coragem de renovar. E, mal eu
dera as minhas batidas, ouvi três outras entonações diferentes, cheias de uma calma autoridade,
repetidas duas vezes para maior clareza, e que significavam: "Não te inquietes, já escutei; daqui a
um minuto estarei aí"; e logo depois minha avó chegava. Dizia-lhe que temera que ela não ouvisse ou pensasse que era um vizinho quem batia; ela ria:
- Confundir as batidas do meu queridinho com as de outros... milhões de distância a sua
vovó as reconheceria! Achas então que existem outras no mundo tão bobas, tão nervosas, tão
divididas entre o medo de me acordar e de não ser compreendido? Mas, mesmo que o meu
ratinho se contentasse com uma parede, eu logo o reconheceria, sobretudo quando é tão querido
e coitadinho é. Já fazia um momento que eu te ouvia hesitar, remexer na cama, e fazer todas as
tuas manobras.
Ela entreabria as persianas; o sol já se instalara no anexo de hotel que formava uma
saliência, como um consertador de telhados que madruga e principia o seu trabalho, cumprindo-o
em silêncio para não despertar a cidade que ainda está dormindo, e cuja imobilidade ainda mais
ressalta a agilidade do operário. Dizia-me as horas, o tempo que faria, que não valia a pena eu ir
à janela, que havia névoa sobre o mar, se a padaria já estava aberta, qual era o carro que já se
ouvia rodar: insignificante ante o ato, desprezível introito do dia a que ninguém assiste; minúsculo
pedacinho de vida que era só de nós dois, que eu logo haveria de evocar de bom grado durante o
dia, diante de Françoise ou de estranhos, falando da névoa espessa das seis da manhã, com a
ostentação, não de um saber adquirido, mas de um sinal de afeto recebido somente por mim;
doce instante matinal que principiava como uma sinfonia pelo diálogo ritmado de minhas três
pancadinhas, às quais a divisória, toda penetrada de ternura e alegria, harmoniosa, imaterial,
cantando como os anjos, respondia com outras três pancadas, ardentemente aguardadas, duas
vezes repetidas, e nas quais a parede sabia transportar inteira a alma de minha avó, e a
promessa de sua vinda, com uma alegria de anunciação e uma fidelidade musical. Mas na
primeira noite da chegada, quando minha avó me deixou, recomecei a passar mal, como já
sofrera em Paris no momento de deixar a casa. Talvez esse meu medo de dormir num quarto
desconhecido - medo que tantos outros também têm -, não passe da forma humílima, obscura,
orgânica, quase inconsciente, da grande recusa desesperada oposta pelas coisas que constituem
o melhor da nossa vida presente à possibilidade de revistarmos mentalmente com a nossa
aceitação a fórmula de um futuro onde elas não mais apareçam; recusa que estava na base
daquele horror que tantas vezes me inspirara a ideia de que meus pais um dia haveriam de
morrer, que as necessidades da vida poderiam me obrigar a viver longe de Gilberte, ou
simplesmente a me fixar em definitivo numa terra onde nunca mais veria os meus amigos; recusa
que estava inclusive na base da dificuldade que sentia em pensar na minha própria morte ou
numa sobrevivência como a que Bergotte prometia aos homens em seus livros, na qual não
poderia carregar junto minhas próprias recordações, meus defeitos, meu caráter, que não se
resignavam à ideia de não existir mais e não desejavam para mim nem o Nada, nem uma
eternidade em que eles não existissem. Quando Swann me dissera em Paris, um dia em que me
sentia bastante real:
- Você deveria partir para aquelas deliciosas ilhas da Oceania; verá que não há de voltar
mais - tive vontade de responder:
- Mas então não veria mais a sua filha e viveria em meio a coisas e pessoas que ela nunca
viu. - e no entanto, a razão me dizia: ''- E que importa, visto que não sofrerás mais? Quando o Sr.
Swann diz que não voltarás, quer dizer que não quererias mais voltar, e, visto não quereres voltar,
é porque lá te sentirias feliz."
Pois minha razão sabia que o hábito de assumir agora a tarefa de me fazer amar aquela
casa desconhecida, espelho do lugar, o colorido das cortinas e de parar o pêndulo - se encarrega
também de nos tornar caros os companheiros que a princípio nos desagradava dar outro formato
aos rostos, de fazer simpático o som de uma voz, de modificar inclinações do coração. É claro
que essas amizades novas por lugares e pessoas são tecidas sobre o esquecimento das antigas;
mas justamente a minha, pensava que eu podia encarar sem terror a perspectiva de uma vida em
que ficaria para sempre separado de pessoas cuja lembrança me fugiria; e era como uma espécie
de consolo que oferecia ao meu coração a promessa de um esquecimento que, pelo contrário, me
deixava louco de desespero. E não é que o nosso coração não deva também experimentar, ao
consumar-se a separação, os efeitos acostumados pelo hábito; mas, até que isso aconteça,
continuará sofrendo. Temo no futuro em que não poderemos ver nem conversar com os entes
queridos, quais hoje tiramos a nossa mais profunda alegria, esse temor, longe de diminuir,
aumenta quando pensamos que, à dor de uma tal separação, se acrescentará; no momento nos
parece ainda mais cruel, de não mais sentirmos como permanecermos indiferentes; pois então o
nosso eu terá mudado; não ser mais o encanto de nossos pais, de nossa amante, de nossos
amigos, que deixa estar à nossa volta; nossa afeição por eles terá sido tão bem extirpada do
coração a qual hoje em dia se constitui parte tão importante, que poderiam alegrar com essa vida
separada deles, cuja ideia hoje nos causa horror; será uma verdadeira morte de nós mesmos, é
verdade que morte seguida de ressurreição, mas num eu diverso e que não pode inspirar afeto às
partes antigas, condenadas a morrer. São elas até as mais débeis, como o obscuro das
dimensões, à atmosfera de um quarto as que se assustam e reprovam; rebeliões em que se pode
ver uma forma secreta, parcial, tangível e verdadeira resistência à morte, da longa resistência
desesperada e cotidiana à morte refratária e sucessiva tal como se insere em todos os momentos
da nossa vida; ficando pedaços de nós a cada instante e fazendo que sobre a carne morta se
multipliquem células novas. Para um temperamento nervoso como o meu nos quais os
intermediários nervos, cumpriam mal suas funções, não restando o passo, até à consciência, das
queixas dos mais humildes elementos do que vai desaparecer; ao contrário deixando-as chegar
claras, exaustivas, inumeráveis e dolorosas; o angustioso alarme que eu experimentava sob
aquele teto desaparecido e alto demais era apenas o protesto de uma amizade que sobrevivia em
por um teto baixo e familiar. Sem dúvida essa amizade desapareceria, tendo seu posto em outra
parte; então a morte e, depois, uma nova vida teriam nome de Hábito, cumprindo sua dupla obra;
mas até o seu aniquilamento da afeição sofreria, principalmente naquela primeira noite, colocada
em piedade num futuro já realizado, onde não mais havia lugar para ela, se revoltava, torturando
me com os gritos de suas lamentações cada vez que meus olhares, não podendo se desviar
daquilo que a fazia sofrer, tentavam pousar no teto inacessível.
Mas na manhã seguinte! - Depois que um criado veio me acordar e me trouxe água
quente; enquanto me aprontava e tentava em vão encontrar na sala as coisas de que necessitava,
e de onde tirava, em desordem, somente as peças que para nada serviam, que alegria senti ao
pensar no prazer do almoço e do passeio; ao ver pela janela, em todas as vitrinas das estantes,
como pelas vigias de um camarote de navio; o mar límpido, sem sombras, embora metade de sua
superfície, delimitada por linha delgada e móvel, estivesse ensombrecida; ao seguir com os olhos
as ondas que se arremessavam uma após outra como saltadores num trampolim! Em todos os
instantes, tendo na mão a toalha tesa e engomada, na qual estava escrito o nome do hotel e com
a qual fazia inúteis esforços para me secar, voltava para junto da janela a fim de lançar ainda um
olhar àquele vasto circo resplandecente e montanhoso; aos nevados cumes de suas ondas de
esmeralda aqui e ali polida e translúcida; que, com plácida violência e aspecto leonino, deixavam
erguer-se e cair as suas rampas, às quais o sol acrescentava um sorriso sem rosto. Janela à qual,
a seguir, eu deveria me pôr todas as manhãs como à portinhola de uma diligência onde
adormecesse um viajante, para ver se durante a noite se aproximou ou se afastou uma desejada
cordilheira - aqui as colinas do mar que, antes de voltar em nossa direção a passo de dança,
podem recuar para tão longe que muitas vezes eu só avistava ao fim de uma longa distância as
suas primeiras ondulações, numa transparência longínqua, vaporosa e azulada; como as geleiras
que se vêem no fundo dos quadros dos primitivos toscanos. De outras vezes, era bem perto de
mim que o sol ria sobre essas ondas; de um verde tão macio como o que mantém nas campinas
alpestres (nas montanhas onde o sol aparece aqui e ali como um gigante que descesse
alegremente, por vertentes e saltos desiguais) mais a líquida mobilidade da luz do que a umidade
do solo. De resto, nessa brecha que a praia e as ondas abrem no meio do mundo, para que nela
penetre e se acumule a luz, é sobretudo a própria luz, de acordo com a direção de onde provém e
que seguimos com o olhar, que desloca e situa as ondulações do mar.
A diversidade de iluminação também modifica a orientação de um lugar, e nos oferece
novos objetivos; dando-nos o desejo de atingi-los, não menos que o faria um trajeto longa e
efetivamente percorrido em viagem. Quando, pela manhã, o sol vinha por detrás do hotel, abrindo
à minha frente as praias iluminadas até os primeiros contrafortes do mar, era como se me
mostrasse uma outra vertente da cordilheira; convidando-me a fazer, pelo caminho turbilhonante
de seus raios, uma viagem imóvel e variada pelos mais belos sítios da paisagem acidentada das
horas. Desde a primeira manhã, o sol me indicava ao longe, com um dedo risonho, os cimos
azulados do Mar que não têm nome em nenhuma carta geográfica, até que, extasiado com aquele
sublime passeio à superfície rumorosa e caótica de suas cristas, vinha se abrigar do vento em
meu quarto, refestelando-se na cama derramando suas riquezas na pia molhada, na mala aberta,
onde, por seu esplendor e luxo deslocado, aumentava ainda mais a impressão de desordem.
Infelizmente, uma hora depois, na grande sala de jantar, enquanto almoça; de um limão cortado,
espalhávamos algumas gotas de ouro sobre dois peixes dos quais logo deixaram em nossos
pratos a armação de suas espinhas; como uma pena e sonora como uma cítara pareceu cruel à
minha avó que pudéssemos receber o vivificante sopro do vento marinho por causa da vidraça
transparente mas fechada que, como uma vitrina, nos separava da praia, mas enquadrava tão
perfeitamente o céu que o seu azul parecia as cordas e suas nuvens brancas, um defeito do vidro.
Convencido de que estava "sentado no molhe" ou no interior do boudoir, de que nos fala
Baudelaire, perguntava - "sol raiando sobre o mar", do poeta, não seria aquele bem diverso do
dos da tarde, simples e superficiais como setas douradas e trêmulas que naquele momento
queimava o mar como um topázio, fazia-o fermentar, tornava-o louro - sol como a cerveja,
espumante como o leite, enquanto, por alguns instantes, - ele passeava aqui e ali grandes
sombras azuis, obra sem dúvida de um deus que parecia se divertir em deslocá-las,
movimentando um espelho no céu. Infelizmente não só pelo aspecto é que a sala de jantar de
Balbec diferia da de Combray, para as casas fronteiras, uma sala sem ornatos, porém repleta de
sol verde água de uma piscina, onde, a poucos metros de distância, a maré cheia e a claridade do
dia elevavam, como diante de uma cidade celestial, uma indestrutível muralha de ouro e
esmeralda. Em Combray, como todos nos conheciam, ninguém se preocupava com ninguém. E
na vida de banhos de mar ninguém conhece banhos. Eu era ainda muito jovem e sensível para ter
renunciado ao prazer de agradar as pessoas e possuí-las. Não tinha essa mais nobre indiferença
que sentir homem mundano em relação às pessoas que ali almoçavam, nem quanto aos rapazes
e moças que passavam pelo molhe; e sofria ante a ideia de que não pudesse fazer excursões
com eles; a menos que minha avó, desprezando as convenções, e só preocupada com a minha
saúde, lhes fosse pedir que me aceitassem como companheiro de passeios, coisa humilhante
para mim. Uns se dirigiam para o chalé desconhecido; outros saíam de raquete em punho para
um campo de, outros, ainda, montavam cavalos cujos cascos me pisavam o coração. Eu os
olhava com uma curiosidade apaixonada, envoltos naquela ofuscante claridade; onde se
modificam todas as proporções sociais; seguia todos os seus movimentos, através da
transparência daquele enorme vão envidraçado, que deixava passar a luz. Mas ela interceptava o
vento, o que era um defeito na opinião de minha avó que, não podendo suportar a ideia de que eu
perdesse o benefício de uma ar, abriu furtivamente uma das vidraças, fazendo ao mesmo tempo
voar cardápios, os jornais, os véus e bonés das pessoas que estavam almoçando; mas ela
própria, animada com aquele sopro divino, permanecia calma e sorridente como santa Blandina,
no meio dos impropérios que, aumentando minha impressão de tristeza e isolamento, reuniam
contra nós todos os turistas desdenhosos, despenteados, furiosos. Um certo número dos
hóspedes do hotel se compunha de personalidades eminentes dos principais departamentos
daquela porção da França, o que, em Balbec, dava à população, que nesse tipo de hotéis de
grande luxo costuma ser banalmente rica e cosmopolita, um caráter regional bastante acentuado;
eram o primeiro magistrado de Caen, o presidente da Ordem dos Advogados de Cherburgo, um
respeitável tabelião de Le Mans, que, durante as férias, partindo de pontos onde haviam estado
dispersos o ano inteiro como atiradores de guerrilha, ou peões do jogo de damas, vinham se
concentrar neste hotel. Mandavam reservar sempre os mesmos quartos e, com as esposas que
tinham pretensões aristocráticas, formavam um pequeno grupo ao qual se ajuntavam um grande
advogado e um grande médico de Paris, que no dia da partida lhes diziam:
- Ah, é verdade, vocês não tomam o mesmo trem que nós. São privilegiados, estarão de
volta em casa para o almoço.
- Como, privilegiados? Vocês que moram na capital, Paris, a grande cidade, enquanto eu
resido numa cabeça de comarca de cem mil almas, na verdade cento e dois mil pelo último
recenseamento; mas o que é isso diante de vocês, que contam com os dois milhões e meio de
Paris, e que logo terão de volta o asfalto e todo o esplendor do mundo parisiense!
continua na página 110...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - c)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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