Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda
VIII - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
Entre as naturezas grosseiras e as naturezas ingênuas há de comum o não terem
transições.
— Então, Cosette — disse a Thenardier, com uma voz que queria tornar doce, mas
que se compunha porém desse mel agro das mulheres más — não pegas na tua boneca?
Cosette aventurou-se a sair do seu esconderijo.
— Anda cá, filha — tornou a Thenardier, com ar carinhoso — este senhor dá-te uma
boneca, por consequência pega nela, que é tua.
A criança, porém, contemplava a maravilhosa boneca com uma espécie de terror.
O seu rosto estava ainda inundado de lágrimas, mas os seus olhos principiavam a
encher-se, como o céu ao crepúsculo da manhã, dos clarões de uma estranha alegria. O
que ela naquela ocasião experimentava era alguma coisa semelhante ao que sentiria, se
repentinamente lhe dissessem: «Pequena, tu és a rainha de França».
Parecia-lhe que se tocasse na boneca sairiam dela trovões, o que, até certo ponto, era
verdadeiro, por isso que esperava que a Thenardier ralhasse e lhe batesse.
Não obstante, a atração venceu-a. Aproximou-se por fim da boneca e murmurou,
olhando timidamente para a Thenardier:
— Posso pegar-lhe, senhora?
Não há expressão que pudesse representar o seu aspecto, ao mesmo tempo
desesperado, cheio de espanto e arrebatamento.
— Já te disse que é tua! — exclamou a Thenardier. — Uma vez que este senhor a ofereceu.
— Deveras, senhor? — tornou Cosette. — É verdade? Aquela senhora é para mim?
O desconhecido parecia ter os olhos cheios de lágrimas; parecia achar-se nesse estado
de comoção em que se não fala para não se chorar. Portanto, limitou-se a fazer àquela
criança um aceno afirmativo com a cabeça, colocando sobre a dela a mão da senhora.
Cosette retirou a mão com presteza, como se a da boneca a escaldasse, e pôs-se a
olhar para o chão. Somos obrigados a acrescentar que ela, naquela ocasião, estendia
uma língua desmesuradamente grande. De repente voltou-se e pegou na boneca com
arrebatamento.
— Hei de pôr lhe o nome de Catarina — disse ela.
Foi um espetáculo momentâneo, porém sobremodo estranho, quando os andrajos
de Cosette encontraram e abraçaram as fitas e as frescas cassas, cor-de-rosa daquela
boneca.
— A senhora deixa-me pô-la em cima de uma cadeira? — tornou ela.
— Põe, filha, põem-na onde quiseres — respondeu a Thenardier.
Agora eram Eponina e Azelma que olhavam com inveja para Cosette.
Cosette pôs a boneca, a quem dera o nome de Catarina, em cima de uma cadeira,
depois sentou-se no chão diante dela, e ficou imóvel, sem dizer uma palavra, em atitude
contemplativa.
— Então, Cosette, não brincas? — disse-lhe o generoso hóspede.
— Oh, eu estou a brincar! — respondeu a criança.
Aquele desconhecido, que parecia uma visita que a Providência fazia a Cosette, era
naquela ocasião a coisa que a Thenardier mais odiava no mundo. Todavia, não havia
remédio senão constranger-se, conquanto as comoções porque passava fossem mais que
as que ela podia suportar, por mais habituada que estivesse à dissimulação pela cópia
que procurava fazer de seu marido em todas as suas ações. Apressou-se, pois, a mandar
deitar as filhas, pedindo depois ao desconhecido licença para mandar deitar também
Cosette que devia estar cansadinha de todo, acrescentou ela com ar maternal. Cosette
foi deitar-se, portanto, levando Catarina nos braços.
De vez em quando, a Thenardier ia até à outra extremidade da sala, onde estava o
marido, para aliviar a alma, dizia, e trocava com ele algumas palavras, tanto mais
furiosas, por isso que não ousava dizê-las em voz alta:
— Maldito estafermo! Vir aqui dar-nos ordens! Quer agora ver brincar o mostrengo da
rapariga e dar-lhe a boneca! Dar bonecas de quarenta francos a uma cadela que eu daria
por quarenta soldos! Se se demora mais um instante, tratava-se por majestade como à
duquesa de Berry. Isto tem lá pés, nem cabeça? Este velho misterioso está doido!
— Porquê? Ora, é uma coisa muito simples — replicava o marido. — Se faz gosto
disso... Tu gostas que a pequena trabalhe, ele gosta de a ver brincar. Está no seu direito.
Um passageiro pode fazer o que quiser, uma vez que pague. Se o velho é algum
filantropo, que te importa a isso? Se é um pateta, isso não é contigo. Que te importam
essas coisas, uma vez que ele tem dinheiro?
Linguagem e raciocínio de estalajadeiro, duas coisas, das quais nenhuma admitia
réplica.
O homem encostara-se à mesa e retomara a sua atitude meditativa. Os outros
viajantes, dos quais uns, eram bufarinheiros, outros carreteiros, tinham-se afastado
todos e já não cantavam. Contemplavam-no a distância com uma espécie de temor
respeitoso. Aquele sujeito tão pobremente vestido, que tirava do bolso rodas traseiras
com tanta facilidade; e que prodigalizava bonecas gigantescas a sujas raparigas de
tamancos, era decerto um velho magnânimo, mas temível.
Decorreram algumas horas. A missa do galo acabara, a ceia terminara, os bebedores
haviam saído, a estalagem estava fechada, a sala inferior ficara deserta, a fogueira
apagara-se, mas o hóspede permanecia ainda no mesmo lugar e na mesma postura. De
tempos a tempos, mudava o cotovelo sobre que se apoiava, eis tudo; quanto a falar,
porém, desde que Cosette saíra, não tornara a dizer uma palavra, Na sala apenas se
achavam os estalajadeiros, que tinham ficado por conveniência e por curiosidade.
— Queres tu ver que o homem quer passar aqui a noite? — murmurou a Thenardier
por entre dentes.
Ao darem, porém, duas horas da manhã, declarou-se vencida e disse para o marido:
— Eu vou deitar-me. Tu faz o que quiseres.
O marido sentou-se à esquina de uma mesa, acendeu uma vela e pôs-se a ler o Correio
Francês.
Passou assim uma boa hora. O digno estalajadeiro tinha já lido o Correio Francês pelo
menos três vezes, desde a data do número até ao nome da tipografia, porém o viajante
não se mexia.
Thenardier moveu-se, tossiu, escarrou, assoou-se, fez barulho com a cadeira, porém
nenhum movimento da parte do homem.
— Estará a dormir? — disse ele consigo.
O homem não dormia, mas nada o podia despertar.
Por fim, Thenardier rou o seu barrete, aproximou-se cautelosamente e aventurou-se
a dizer:
— O senhor não quer ir descansar?
«Não quer ir deitar-se» parecera-lhe excessivo e familiar. Descansar cheirava a luxo e
era uma frase respeitosa. Aquelas palavras tinham a misteriosa e admirável propriedade
de alargar ao outro dia pela manhã a cifra do rol das despesas. Um quarto onde o
passageiro se deita custa vinte soldos; um quarto onde repousa vinte francos.
— Ah, é verdade! — disse o desconhecido. — Tem razão. Onde é a cavalariça?
— Ora, senhor! — disse Thenardier, sorrindo. — Eu vou conduzi-lo.
Pegou em seguida no castiçal, enquanto o hóspede pegava na bengala e na trouxa, e
conduziu-o ao primeiro andar, que apresentava certo esplendor, todo mobilado de acaju
e ornado com uma bela cama e cortinas vermelhas de algodão.
— O que vem a ser isto? — perguntou o viajante.
— É o nosso quarto de noivado — respondeu o estalajadeiro — mas eu e minha
mulher dormimos noutro. Não se entra aqui senão três ou quatro vezes por ano.
— Antes queria ir para a cavalariça — disse o homem secamente.
Thenardier fingiu não ter ouvido a pouco obsequiosa reflexão. Em seguida acendeu
duas velas de cera que, ainda por encetar, estavam sobre o fogão, onde depois acendeu
também excelente lume. Sobre o fogão e debaixo de uma redoma, estava uma grinalda
de fio de prata e flores de laranjeira.
— E isto, o que é? — tornou o desconhecido.
— É a grinalda do noivado de minha mulher.
O hóspede lançou para a grinalda uns olhos que pareciam dizer: «Houve tempo em
que um tal monstro foi virgem!»
E, no fim de tudo, Thenardier mentira. Quando arrendara a casinhota para
estabelecer a baiuca, achara aquele quarto assim guarnecido, comprara a mobília e
fizera um alborque com a grinalda de flor de laranjeira, julgando que um tal objeto
produziria em sua esposa certa sombra graciosa, dando à casa aquilo a que os ingleses
chamam respeitabilidade.
Quando o hóspede se voltou, o estalajadeiro tinha desaparecido.
Thenardier eclipsara-se discretamente, sem ousar dar as boas noites, não querendo
tratar com cordialidade pouco respeitosa um homem a quem tencionava, no dia
seguinte, esfolar soberanamente.
O estalajadeiro foi para o seu quarto. Sua mulher estava deitada, mas não dormia.
Quando ouviu os passos do marido, voltou-se e disse-lhe:
— Já sabes que amanhã pespego com a Cosette no andar da rua.
Thenardier respondeu friamente:
— Como andas depressa!
O hóspede, pela sua parte, pusera a um canto a bengala e a trouxa.
Depois do estalajadeiro se retirar, sentou-se numa cadeira e conservou-se por algum
tempo pensa vo. Em seguida descalçou os sapatos, pegou numa das luzes, apagou a
outra e abriu a porta do quarto, olhando em volta de si como quem procura alguma
coisa. Atravessou um corredor e chegou à escada. Ali ouviu um ligeiro ruído que se
assemelhava à respiração de uma criança. Deixou-se conduzir por este ruído e chegou a
uma espécie de concavidade triangular pra cada sob a escada, ou, para melhor dizer,
formada por ela. Esta barraca não era mais do que o vão da escada. Neste lugar, entre
toda a espécie de cacos e de cestos velhos, no meio de lixo e de enormes teias de
aranha, havia uma cama, se se pode chamar cama a uma enxerga toda esburacada,
deixando cair a palha por todos os lados, e uma manta por cujos buracos se via a
enxerga. Lençóis não tinha e estava estendida no sobrado. Nesta cama dormia Cosette.
O homem aproximou-se e contemplou-a.
Cosette dormia profundamente e estava toda vestida. De Inverno não se despia para
sentir menos frio.
Estava abraçada com a boneca, cujos olhos abertos brilhavam na escuridão. A pobre
criança soltava de vez em quando um grande suspiro, como se estivesse para acordar, e
apertava a boneca contra si, quase convulsivamente. Ao lado da cama não estava senão
um dos seus tamancos.
Por detrás do cubículo de Cose e havia uma porta aberta, deixando ver um quarto
bastante grande, mas sem luz. O hóspede entrou nele. Ao fundo, além duma porta de
vidraça, viam-se duas caminhas iguais, muito bem arranjadas e com roupa muito branca.
Eram as de Eponina e Azelma. Por detrás delas mal se via um berço muito ordinário, sem
cortinas, onde dormia o pequenito que tanto chorara toda a noite.
O desconhecido conjecturou que aquele quarto devia comunicar com o dos
Thenardier.
Dispunha-se já a retirar-se quando se lhe deparou a chaminé; uma destas vastas
chaminés de estalagem onde há sempre algum brasido, mas que fazem frio a quem as
vê. Naquela não havia lume nem mesmo cinza.
O que atraiu a atenção do desconhecido foram dois sapatinhos de criança, de feitio
elegante, e desiguais em tamanho. O homem recordou-se do gracioso e imemorial
costume das crianças deixarem na chaminé o sapatinho, na noite de Natal, para ali
receber nas trevas algum brilhante presente da sua boa fada. Eponine e Azelma não
tinham faltado ao costume e haviam posto cada uma um sapato na chaminé.
O hóspede curvou-se sobre os sapatos.
A fada, isto é, a mãe, tinha já feito a sua visita, de sorte que se via luzir em cada um
dos sapatos uma moeda de dez soldos completamente nova.
O homem endireitou-se e ia já retirar-se, quando descobriu no fundo, e como
escondido, um outro objeto. Aproximou-se novamente e viu que era um tamanco
grosseiro, muito velho, todo coberto de cinza e lama seca. Era o tamanco de Cosette.
Esta com a enternecedora confiança das crianças que pode ser sempre iludida, sem
nunca desanimar, pusera também na chaminé o seu tamanco.
É sublime e suave coisa a esperança de uma criança que não conheceu nunca senão a
desesperação.
Dentro do tamanco não havia coisa alguma.
O desconhecido meteu os dedos no bolso do colete, curvou-se, e deitou no tamanco
de Cosette um luís de oiro.
Em seguida dirigiu-se para o seu quarto nos bicos dos pés.
continua na página 320...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VII — Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VIII(c) - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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