terça-feira, 11 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / VIII(c) - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

VIII - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
     
     Entre as naturezas grosseiras e as naturezas ingênuas há de comum o não terem transições.

 — Então, Cosette — disse a Thenardier, com uma voz que queria tornar doce, mas que se compunha porém desse mel agro das mulheres más — não pegas na tua boneca?

     Cosette aventurou-se a sair do seu esconderijo.

— Anda cá, filha — tornou a Thenardier, com ar carinhoso — este senhor dá-te uma boneca, por consequência pega nela, que é tua.

     A criança, porém, contemplava a maravilhosa boneca com uma espécie de terror.
     O seu rosto estava ainda inundado de lágrimas, mas os seus olhos principiavam a encher-se, como o céu ao crepúsculo da manhã, dos clarões de uma estranha alegria. O que ela naquela ocasião experimentava era alguma coisa semelhante ao que sentiria, se repentinamente lhe dissessem: «Pequena, tu és a rainha de França».
     Parecia-lhe que se tocasse na boneca sairiam dela trovões, o que, até certo ponto, era verdadeiro, por isso que esperava que a Thenardier ralhasse e lhe batesse.
      Não obstante, a atração venceu-a. Aproximou-se por fim da boneca e murmurou, olhando timidamente para a Thenardier:

 — Posso pegar-lhe, senhora?

     Não há expressão que pudesse representar o seu aspecto, ao mesmo tempo desesperado, cheio de espanto e arrebatamento.

— Já te disse que é tua! — exclamou a Thenardier. — Uma vez que este senhor a ofereceu. 
— Deveras, senhor? — tornou Cosette. — É verdade? Aquela senhora é para mim?
 
     O desconhecido parecia ter os olhos cheios de lágrimas; parecia achar-se nesse estado de comoção em que se não fala para não se chorar. Portanto, limitou-se a fazer àquela criança um aceno afirmativo com a cabeça, colocando sobre a dela a mão da senhora.
      Cosette retirou a mão com presteza, como se a da boneca a escaldasse, e pôs-se a olhar para o chão. Somos obrigados a acrescentar que ela, naquela ocasião, estendia uma língua desmesuradamente grande. De repente voltou-se e pegou na boneca com arrebatamento.

— Hei de pôr lhe o nome de Catarina — disse ela.

     Foi um espetáculo momentâneo, porém sobremodo estranho, quando os andrajos de Cosette encontraram e abraçaram as fitas e as frescas cassas, cor-de-rosa daquela boneca.

— A senhora deixa-me pô-la em cima de uma cadeira? — tornou ela. 
— Põe, filha, põem-na onde quiseres — respondeu a Thenardier.

      Agora eram Eponina e Azelma que olhavam com inveja para Cosette.
     Cosette pôs a boneca, a quem dera o nome de Catarina, em cima de uma cadeira, depois sentou-se no chão diante dela, e ficou imóvel, sem dizer uma palavra, em atitude contemplativa.

 — Então, Cosette, não brincas? — disse-lhe o generoso hóspede. 
— Oh, eu estou a brincar! — respondeu a criança.

      Aquele desconhecido, que parecia uma visita que a Providência fazia a Cosette, era naquela ocasião a coisa que a Thenardier mais odiava no mundo. Todavia, não havia remédio senão constranger-se, conquanto as comoções porque passava fossem mais que as que ela podia suportar, por mais habituada que estivesse à dissimulação pela cópia que procurava fazer de seu marido em todas as suas ações. Apressou-se, pois, a mandar deitar as filhas, pedindo depois ao desconhecido licença para mandar deitar também Cosette que devia estar cansadinha de todo, acrescentou ela com ar maternal. Cosette foi deitar-se, portanto, levando Catarina nos braços.
     De vez em quando, a Thenardier ia até à outra extremidade da sala, onde estava o marido, para aliviar a alma, dizia, e trocava com ele algumas palavras, tanto mais furiosas, por isso que não ousava dizê-las em voz alta:

 — Maldito estafermo! Vir aqui dar-nos ordens! Quer agora ver brincar o mostrengo da rapariga e dar-lhe a boneca! Dar bonecas de quarenta francos a uma cadela que eu daria por quarenta soldos! Se se demora mais um instante, tratava-se por majestade como à duquesa de Berry. Isto tem lá pés, nem cabeça? Este velho misterioso está doido!
 — Porquê? Ora, é uma coisa muito simples — replicava o marido. — Se faz gosto disso... Tu gostas que a pequena trabalhe, ele gosta de a ver brincar. Está no seu direito. Um passageiro pode fazer o que quiser, uma vez que pague. Se o velho é algum filantropo, que te importa a isso? Se é um pateta, isso não é contigo. Que te importam essas coisas, uma vez que ele tem dinheiro?

     Linguagem e raciocínio de estalajadeiro, duas coisas, das quais nenhuma admitia réplica.
     O homem encostara-se à mesa e retomara a sua atitude meditativa. Os outros viajantes, dos quais uns, eram bufarinheiros, outros carreteiros, tinham-se afastado todos e já não cantavam. Contemplavam-no a distância com uma espécie de temor respeitoso. Aquele sujeito tão pobremente vestido, que tirava do bolso rodas traseiras com tanta facilidade; e que prodigalizava bonecas gigantescas a sujas raparigas de tamancos, era decerto um velho magnânimo, mas temível.
      Decorreram algumas horas. A missa do galo acabara, a ceia terminara, os bebedores haviam saído, a estalagem estava fechada, a sala inferior ficara deserta, a fogueira apagara-se, mas o hóspede permanecia ainda no mesmo lugar e na mesma postura. De tempos a tempos, mudava o cotovelo sobre que se apoiava, eis tudo; quanto a falar, porém, desde que Cosette saíra, não tornara a dizer uma palavra, Na sala apenas se achavam os estalajadeiros, que tinham ficado por conveniência e por curiosidade.

 — Queres tu ver que o homem quer passar aqui a noite? — murmurou a Thenardier por entre dentes.

      Ao darem, porém, duas horas da manhã, declarou-se vencida e disse para o marido:

— Eu vou deitar-me. Tu faz o que quiseres.

     O marido sentou-se à esquina de uma mesa, acendeu uma vela e pôs-se a ler o Correio Francês.
      Passou assim uma boa hora. O digno estalajadeiro tinha já lido o Correio Francês pelo menos três vezes, desde a data do número até ao nome da tipografia, porém o viajante não se mexia.
      Thenardier moveu-se, tossiu, escarrou, assoou-se, fez barulho com a cadeira, porém nenhum movimento da parte do homem.

— Estará a dormir? — disse ele consigo.

     O homem não dormia, mas nada o podia despertar.
     Por fim, Thenardier rou o seu barrete, aproximou-se cautelosamente e aventurou-se a dizer:

 — O senhor não quer ir descansar?

      «Não quer ir deitar-se» parecera-lhe excessivo e familiar. Descansar cheirava a luxo e era uma frase respeitosa. Aquelas palavras tinham a misteriosa e admirável propriedade de alargar ao outro dia pela manhã a cifra do rol das despesas. Um quarto onde o passageiro se deita custa vinte soldos; um quarto onde repousa vinte francos.

 — Ah, é verdade! — disse o desconhecido. — Tem razão. Onde é a cavalariça?
 — Ora, senhor! — disse Thenardier, sorrindo. — Eu vou conduzi-lo.

     Pegou em seguida no castiçal, enquanto o hóspede pegava na bengala e na trouxa, e conduziu-o ao primeiro andar, que apresentava certo esplendor, todo mobilado de acaju e ornado com uma bela cama e cortinas vermelhas de algodão.

 — O que vem a ser isto? — perguntou o viajante. 
— É o nosso quarto de noivado — respondeu o estalajadeiro — mas eu e minha mulher dormimos noutro. Não se entra aqui senão três ou quatro vezes por ano. 
— Antes queria ir para a cavalariça — disse o homem secamente.

     Thenardier fingiu não ter ouvido a pouco obsequiosa reflexão. Em seguida acendeu duas velas de cera que, ainda por encetar, estavam sobre o fogão, onde depois acendeu também excelente lume. Sobre o fogão e debaixo de uma redoma, estava uma grinalda de fio de prata e flores de laranjeira.

— E isto, o que é? — tornou o desconhecido. 
— É a grinalda do noivado de minha mulher.

     O hóspede lançou para a grinalda uns olhos que pareciam dizer: «Houve tempo em que um tal monstro foi virgem!»
      E, no fim de tudo, Thenardier mentira. Quando arrendara a casinhota para estabelecer a baiuca, achara aquele quarto assim guarnecido, comprara a mobília e fizera um alborque com a grinalda de flor de laranjeira, julgando que um tal objeto produziria em sua esposa certa sombra graciosa, dando à casa aquilo a que os ingleses chamam respeitabilidade.
     Quando o hóspede se voltou, o estalajadeiro tinha desaparecido. 
     Thenardier eclipsara-se discretamente, sem ousar dar as boas noites, não querendo tratar com cordialidade pouco respeitosa um homem a quem tencionava, no dia seguinte, esfolar soberanamente.
      O estalajadeiro foi para o seu quarto. Sua mulher estava deitada, mas não dormia. Quando ouviu os passos do marido, voltou-se e disse-lhe:

— Já sabes que amanhã pespego com a Cosette no andar da rua.

     Thenardier respondeu friamente:

— Como andas depressa!

     O hóspede, pela sua parte, pusera a um canto a bengala e a trouxa.
      Depois do estalajadeiro se retirar, sentou-se numa cadeira e conservou-se por algum tempo pensa vo. Em seguida descalçou os sapatos, pegou numa das luzes, apagou a outra e abriu a porta do quarto, olhando em volta de si como quem procura alguma coisa. Atravessou um corredor e chegou à escada. Ali ouviu um ligeiro ruído que se assemelhava à respiração de uma criança. Deixou-se conduzir por este ruído e chegou a uma espécie de concavidade triangular pra cada sob a escada, ou, para melhor dizer, formada por ela. Esta barraca não era mais do que o vão da escada. Neste lugar, entre toda a espécie de cacos e de cestos velhos, no meio de lixo e de enormes teias de aranha, havia uma cama, se se pode chamar cama a uma enxerga toda esburacada, deixando cair a palha por todos os lados, e uma manta por cujos buracos se via a enxerga. Lençóis não tinha e estava estendida no sobrado. Nesta cama dormia Cosette.
     O homem aproximou-se e contemplou-a.
     Cosette dormia profundamente e estava toda vestida. De Inverno não se despia para sentir menos frio.
      Estava abraçada com a boneca, cujos olhos abertos brilhavam na escuridão. A pobre criança soltava de vez em quando um grande suspiro, como se estivesse para acordar, e apertava a boneca contra si, quase convulsivamente. Ao lado da cama não estava senão um dos seus tamancos.
     Por detrás do cubículo de Cose e havia uma porta aberta, deixando ver um quarto bastante grande, mas sem luz. O hóspede entrou nele. Ao fundo, além duma porta de vidraça, viam-se duas caminhas iguais, muito bem arranjadas e com roupa muito branca. Eram as de Eponina e Azelma. Por detrás delas mal se via um berço muito ordinário, sem cortinas, onde dormia o pequenito que tanto chorara toda a noite.
     O desconhecido conjecturou que aquele quarto devia comunicar com o dos Thenardier.
     Dispunha-se já a retirar-se quando se lhe deparou a chaminé; uma destas vastas chaminés de estalagem onde há sempre algum brasido, mas que fazem frio a quem as vê. Naquela não havia lume nem mesmo cinza.
     O que atraiu a atenção do desconhecido foram dois sapatinhos de criança, de feitio elegante, e desiguais em tamanho. O homem recordou-se do gracioso e imemorial costume das crianças deixarem na chaminé o sapatinho, na noite de Natal, para ali receber nas trevas algum brilhante presente da sua boa fada. Eponine e Azelma não tinham faltado ao costume e haviam posto cada uma um sapato na chaminé. O hóspede curvou-se sobre os sapatos.
      A fada, isto é, a mãe, tinha já feito a sua visita, de sorte que se via luzir em cada um dos sapatos uma moeda de dez soldos completamente nova.
     O homem endireitou-se e ia já retirar-se, quando descobriu no fundo, e como escondido, um outro objeto. Aproximou-se novamente e viu que era um tamanco grosseiro, muito velho, todo coberto de cinza e lama seca. Era o tamanco de Cosette.
     Esta com a enternecedora confiança das crianças que pode ser sempre iludida, sem nunca desanimar, pusera também na chaminé o seu tamanco.
     É sublime e suave coisa a esperança de uma criança que não conheceu nunca senão a desesperação.
     Dentro do tamanco não havia coisa alguma.
     O desconhecido meteu os dedos no bolso do colete, curvou-se, e deitou no tamanco de Cosette um luís de oiro.
    Em seguida dirigiu-se para o seu quarto nos bicos dos pés.

continua na página 320...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - VIII(c) - Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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