Maria Firmina dos Reis
A Escrava
Mas o homem do azorrague não pareceu reparar nisso, e continuou:
— Doida... doida fingida, caro te há de custar.
Acreditei-o o senhor daquela mísera; mas empenhada em vê-lo desaparecer daquele lugar, disse-lhe:
— A noite se avizinha, e se a deixa ir mais longe, difícil lhe será
encontrá-la.
— Tem razão, minha senhora; eu parto imediatamente, – e cumprimentando-me rudemente, retrocedeu correndo a mesma estrada que lhe tinha
maliciosamente indicado.
Exalei um suspiro de alívio, ao vê-lo desaparecer na dobra do caminho.
O sol de todo sumia-se na orla cinzenta do horizonte, o vento paralisado
não agitava as franças dos anosos arvoredos, só o mar gemia ao longe da
costa, semelhando o arquejar monótono de um agonizante.
Ergui ao céu um voto de gratidão; e lembrei-me que era tempo de procurar minha desditosa protegida.
Ergui-me cônscia de que ninguém me observava, e acercava-me já da
moita de murta, quando um homem rompendo a espessura, apareceu ofegante, trêmulo e desvairado.
Confesso que semelhante aparição causou-me um terror imenso.
Lembrei-me dos criados, que eu tinha convocado a essa hora naquele lugar,
e que ainda não chegavam. Tive medo.
Parei instantemente, e fixei-o. Apesar do terror que me havia inspirado,
fixei-o resolutamente.
De repente, serenou o meu temor; olhei-o, e do medo, passei à consideração, ao interesse.
Era quase uma ofensa ao pudor fixar a vista sobre aquele infeliz, cujo
corpo seminu mostrava-se coberto de recentes cicatrizes; entretanto sua
fisionomia era franca, e agradável. O rosto negro, e descarnado; suposto
seu juvenil aspecto aljofarado de copioso suor, seus membros alquebrados
de cansaço, seus olhos rasgados, ora deferindo luz errante, e trêmula, agitada, e incerta traduzindo a excitação, e o terror, tinham um quê de
altamente interessante.
No fundo do coração daquele pobre rapaz, devia haver rasgos de amor,
e generosidade.
Cruzamos ele e eu as vistas, e ambos recuamos espavoridos. Eu, pelo
aspecto comovente e triste daquele infeliz, tão deserdado da sorte; ele, por
que seria?
Isto teve a duração de um segundo apenas: recobrei ânimo em presença de tanta miséria, e tanta humilhação, e este ânimo procurei de pronto
transmitir-lhe.
Longe de lhe ser hostil, o pobre negro compreendeu que eu ia talvez
minorar o rigor de sua sorte; parou instantaneamente, cruzou as mãos no peito,
e com voz súplice, murmurou algumas palavras que eu não pude entender.
Aquela atitude comovedora despertou-me compaixão; apesar do medo
que nos causa a presença dum calhambola, aproximei-me dele, e com voz,
que bem compreendeu ser protetora e amiga, disse-lhe:
— Quem és, filho? O que procuras?
— Ah! Minha senhora, – exclamou erguendo os olhos ao céu, – eu procuro minha mãe, que correu nesta direção, fugindo ao cruel feitor, que a
perseguia. Eu também agora sou um fugido: porque há uma hora deixei o
serviço para procurar minha pobre mãe, que além de doida está quase a
morrer. Não sei se ele a encontrou; e o que será dela. Ah! Minha mãe! É preciso que eu corra, a ver se acho antes que o feitor a encontre.
— Aquele homem é um tigre, minha senhora, é uma fera.
Ouvia-o, sem o interromper, tanto interesse me inspirava o mísero
escravo.
— Amanhã, – continuou ele, – hei de ser castigado; porque saí do
serviço, antes das seis horas, hei de ter trezentos açoites; mas minha mãe
morrerá se ele a encontrar. Estava no serviço, coitada! Minha mãe caiu, desfalecida; o feitor lhe impôs que trabalhasse, dando-lhe açoites; ela deitou a
correr gritando. Ele correu atrás. Eu corri também, corri até aqui porque foi
esta a direção que tomaram. Mas, onde está ela, onde estará ele?
— Escuta, – lhe tornei então, – tua mãe está salva, salvou-a o acaso; e
o feitor está agora bem longe daqui.
— Ah! Minha senhora, onde, onde está a minha mãe e quem a salvou?
— Segue-me, – disse eu – tua mãe está ali – e apontei para a moita
onde se refugiara.
— Minha mãe, – sem receio de ser ouvido, exclamou o filho – minha
mãe!...
Com efeito, ali com a fronte reclinada sobre um tronco decepado; e o
corpo distendido no chão, dormia um sono agitado a infeliz foragida.
— Minha mãe, – gritou-lhe ao ouvido curvando os joelhos em terra, e
tomando-a nos seus braços. — Minha mãe... sou Gabriel..
A esta exclamação de pungente angústia, a mísera pareceu despertar.
Olhou-a fixamente; mas não articulou um som.
— Ah! – redarguiu Gabriel, – ah! Minha senhora! Minha mãe morre!
Concheguei-me àquele grupo interessante a fim de prestar-lhe algum
serviço. Com efeito era tempo. Ela era presa dum ataque espasmódico.
Estava hirta e parecia prestes a exalar o derradeiro suspiro.
— Não, ela não morre deste ataque; mas é preciso prestar-lhe pronto
socorro, – disse-lhe.
— Diga, minha senhora, – tornou o rapaz na mais pungente ansiedade,
– que devo fazer?
Volte eu embora à fazenda, seja castigado com rigor; mas não quero,
não posso ver minha mãe morrer aqui, sem socorro algum.
— Sossega, – disse-lhe, vendo assomar ao morro, donde observavam tudo
que acabo de narrar, os meus criados, que me procuravam; – espera, disse-lhe:
Vou fazer transportar tua mãe, à minha casa, e lhe farei tornar à vida.
— Diga, minha senhora, ordene.
— Não moro presentemente longe daqui. Sabes a distância que vai
daqui à praia? Estou nos banhos salgados.
— Sei, sim, senhora, é muito perto. Que devo então fazer?
— Tu, e estes homens – os criados acabavam de chegar – vão transportá-la
imediatamente à minha morada, e lá procurarei reanimá-la.
— Oh! Minha senhora, que bondade! – foi só o que disse e, ato contínuo,
tomou nos braços a pobre mãe, ainda entregue ao seu dorido paroxismo, disse:
— Minha senhora, eu só levaria minha mãe ao fim do mundo.
Senti-me tocada de veneração em presença daquele amor filial, tão singelamente manifestado
.
— Sigamos então, – tornei eu.
Gabriel caminhava tão apressadamente que eu mal podia acompanhá-lo.
Em menos de quinze minutos transpúnhamos o umbral da casinha, que
há dois dias apenas eu habitava.
Eu bem conhecia a gravidade do meu ato: recebia em meu lar dois
escravos foragidos, e escravos talvez de algum poderoso senhor; era
expor-me à vindita da lei; mas em primeiro lugar o meu dever, e o meu dever
era socorrer aqueles infelizes.
Sim, a vindita da lei; lei que infelizmente ainda perdura, lei que garante
ao forte o direito abusivo, e execrando de oprimir o fraco.
Mas, deixar de prestar auxílio àqueles desgraçados, tão abandonados,
tão perseguidos, que nem para a agonia derradeira, nem para transpor esse
tremendo portal da Eternidade, tinham sossego, ou tranquilidade! Não.
Tomei com coragem a responsabilidade do meu ato: a humanidade me
impunha esse santo dever.
Fiz deitar a moribunda em uma cama, fiz abrir as portas todas para que a
ventilação se fizesse livre, e boa, e prestei-lhe os serviços, que o caso urgia,
e com tanta vantagem, que em pouco recuperou os sentidos.
Olhou em torno de si, como que espantada do que via, e tornou a fechar
os olhos.
— Minha mãe!... Minha mãe, – de novo exclamou o filho.
Ao som daquela voz chorosa, e tão grata, ela ergueu a cabeça, distendeu
os braços, e, com voz débil, murmurou:
— Carlos!... Urbano...
— Não, minha mãe sou Gabriel.
— Gabriel, – tornou ela, com voz estridente. – É noite, e eles para onde
foram?
— De quem fala ela? – interroguei Gabriel, que limpava as lágrimas na
coberta da cama de sua mãe.
— É doida, minha senhora; fala de meus irmãos Carlos e Urbano, crianças
de oito anos, que meu senhor vendeu para o Rio de Janeiro. Desde esse dia
ela endoideceu.
— Horror! – exclamei com indignação e dor. Pobre mãe!
— Só lhe resto eu, – continuou soluçando – só eu... só eu!...
Entretanto, a enferma pouco e pouco recobrava as forças, a vida, e a
razão. Fenômenos da morte, por assim dizer: é luta imponente, embora da
natureza, com o extermínio.
— Gabriel? Gabriel? – És tu?
— É noite. Eu morro... E o serviço? E o feitor?
— Estás em segurança, pobre mulher, disse-lhe, – tu e teu filho estão
sob a minha proteção. Descansa, aqui ninguém lhes tocará com um dedo.
Como não devem ignorar, eu já me havia constituído então membro da
sociedade abolicionista da nossa província, e da do Rio de Janeiro. Expedi de
pronto um próprio à capital.
Então ela fixou-me, e em seus olhos brilhou lucidez, esperança, e
gratidão.
Sorriu-se e murmurou.
— Inda há neste mundo quem se compadeça de um escravo?
— Há muita alma compassiva, – retorqui-lhe, – que se condói do sofrimento de seu irmão.
Naquela hora quase suprema, a infeliz exclamou com voz distinta:
— Não sabe, minha senhora, eu morro, sem ver mais meus filhos!
Meu senhor os vendeu... eram tão pequenos... eram gêmeos. Carlos, Urbano...
Tenho a vista tão fraca... é a morte que chega. Não tenho pena de
morrer, tenho pena de deixar meus filhos... meus pobres filhos!... Aqueles
que me arrancaram destes braços... Este que também é escravo!...
E os soluços da mãe confundiram-se por muito tempo com os soluços
do filho.
Era uma cena tocante e lastimosa, que despedaçava o coração.
Ah! Maldição sobre a opressão! Maldição sobre o escravocrata!
Cheguei-lhe aos lábios o calmante que a ia sustendo, e ordenei a Gabriel
fosse tomar algum alimento. Era preciso separá-los.
— Quem é vossemecê, minha senhora, que tão boa é para mim, e para
meu filho? Nunca encontrei em vida um branco que se compadecesse de mim;
creio que Deus me perdoa os meus pecados, e que já começo a ver seus anjos.
— E quem é esse senhor tão mau, esse senhor que te mata?
— Então, minha senhora, não conhece o senhor Tavares, do Cajuí?
— Não, – tornei-lhe com convicção, – estou aqui apenas há dois dias,
tudo me é estranho; não o conheço. É bom que colha algumas informações
dele: Gabriel mas dará.
— Gabriel! – disse ela – não. Eu mesma. Ainda posso falar.
E começou:
— Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas de cor fusca. Era
livre, minha mãe era escrava.
continua na página 172...
A escrava - Mas o homem do azorrague
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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