sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (f)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica



A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A
MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL


MANIPULAÇÃO


Outra característica da teoria da ação antidialógica é a manipulação das massas oprimidas. Como a anterior, a manipulação é instrumento da conquista, em torno de que todas as dimensões da teoria da ação antidialógica vão girando.

Através da manipulação, as elites dominadoras vão tentando conformar as massas populares a seus objetivos. E, quanto mais imaturas, politicamente, estejam elas (rurais ou urbanas) tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder.

A manipulação se faz por toda a série de mitos a que nos referimos. Entre eles, mais este: o modelo que a burguesia se faz de si mesma às massas com possibilidade de sua ascensão. Para isto, porém, é preciso que as massas aceitem sua palavra.

Muitas vezes esta manipulação, dentro de certas condições históricas especiais, se verifica através de pactos entre as classes dominantes e as massas dominadas. Pactos que poderiam dar a impressão, numa apreciação ingênua, de um diálogo entre elas.

Na verdade, estes pactos não são diálogo porque, na profundidade de seu objetivo, está inscrito o interesse inequívoco da elite dominadora. Os pactos, em última análise, são meios de que se servem os dominadores, para realizar suas finalidades. [1]


[1] Os pactos só são válidos para as classes populares – e neste caso já, não são pactos – quando as finalidades da aço a ser desenvolvida ou que já se realiza estão na órbita de sua decisão.

O apoio das massas populares à chamada “burguesia nacional” para a defesa do duvidoso capital nacional foi um destes pactos, de que sempre resulta, cedo ou tarde, o esmagamento das massas.

E os pactos somente se dão quando estas, mesmo ingênuas, emergem no processo histórico e, com sua emersão, ameaçam as elites dominantes.

Basta a sua presença no processo, não mais como puras espectadoras, mas com os primeiros sinais de sua agressividade, para que as elites dominadoras, assustadas com essa presença incômoda, dupliquem as táticas de manejo.

A manipulação se impõe nestas fases como instrumento fundamental para a manutenção da dominação.

Antes da emersão das massas, não há propriamente manipulação, mas o esmagamento total dos dominados. Na sua imersão quase absoluta, não se faz necessária a manipulação.

Esta, na teoria antidialógica da ação, é uma resposta que o opressor tem de dar às novas condições concretas do processo histórico.

A manipulação aparece como uma necessidade imperiosa das elites dominadoras, com o fim de, através dela, conseguir um tipo inautêntico de “organização”, com que evite o seu contrário, que é a verdadeira organização das massas populares emersas e emergindo [2].


[2] Na "organizado" que resulta do ato manipulador, as massas populares, meros objetos dirigidos, se acomodam às finalidades dos manipuladores enquanto na organização verdadeira, em que os indivíduos são sujeitos do ato de organizar- se, as finalidades não são impostas por uma elite. No primeiro caso, a “organização” é meio de massificação; no segundo, de libertação.

Estas , inquietas ao emergir, têm duas possibilidades: ou são manipuladas pelas elites para manter a dominação ou se organizam verdadeiramente para sua libertação. É óbvio, então, que a verdadeira organização não possa ser estimulada pelos dominadores. Isto é tarefa da liderança revolucionária.

Acontece, porém, que grandes frações destas massas populares, já agora constituindo um proletariado urbano, sobretudo nos centros mais industrializados do país, ainda que revelando uma ou outra inquietação ameaçadora, carentes, contudo, de uma consciência revolucionária, se veem a 'si mesmas como privilegiadas.

A manipulação, com toda a sua série de engodos e promessas, encontra aí, quase sempre, um bom terreno para vingar.

O antídoto a esta manipulação está na organização criticamente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Na problematização da realidade nacional e da própria manipulação.

Bem razão tem Weffort [3] quando diz: “Toda política de esquerda se apoia nas massas populares e depende de sua consciência. Se vier a confundi-la, perderá as raízes, pairará no ar à espera da queda inevitável, ainda quando possa ter, como no caso brasileiro, a ilusão de fazer a revolução pelo simples giro à volta do poder”, e, esquecendo -se dos seus encontros com as massas para o esforço de organização, perdem-se num “diálogo” impossível com as elites dominadoras. Daí que também terminem manipuladas por estas elites de que resulta cair, não raramente, num jogo puramente de cúpula, que chamam de realismo...


[3] Francisco Weffort, “Política de Massas”, in Política e Revolução Social no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 187.

A manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem.

Se as massas associam à sua emersão, à sua presença no processo histórico, um pensar critico sobre este mesmo processo, sobre sua realidade, então sua ameaça se concretiza na revolução.

Chame -se a este pensar certo de “consciência revolucionária” ou de “consciência de classe”, é indispensável à revolução, que não se faz sem ele.

As elites dominadoras sabem tão bem disto que, em certos níveis seus, até instintivamente, usam todos os meios, mesmo a violência física, para proibir que as massas pensem.

Têm uma profunda intuição da força criticizante do diálogo. Enquanto que, para alguns representantes da liderança revolucionária, o diálogo com as massas lhes dá a impressão de ser um quefazer “burguês e reacionário”, para os burgueses, o diálogo entre as massas e a liderança revolucionária é uma real ameaça, que há de ser evitada.

Insistindo as elites dominadoras na manipulação, vão inoculando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal.

Esta manipulação se faz ora diretamente por estas elites, ora indiretamente, através dos lideres populistas. Estes líderes, como salienta Weffort, medeiam as relações entre as elites oligárquicas e as massas populares.

Daí que o populismo se constitua, como estilo de aço política, exatamente quando se instala o processo de emersão das massas em que elas passam a reivindicar sua participação, mesmo que ingenuamente.

O líder populista, que emerge neste processo, é também um ser ambíguo. Precisamente porque fica entre as massas e as oligarquias dominantes, ele é como se fosse um ser anfíbio. Vive na “terra” e na “água”.

Seu estar entre oligarquias dominadoras e massas lhe deixa marcas das duas.

Enquanto populista, porém, na medida em que simplesmente manipula em lugar de lutar pela verdadeira organização popular, este tipo de líder em pouco ou em quase nada serve à revolução.

Somente quando o líder populista supera o seu caráter ambíguo e a natureza dual de sua aço e opta decididamente pelas massas, deixando assim de ser populista, renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolucionário de organização. Neste momento, em lugar de mediador entre massas e elites, é contradição destas, o que leva as elites a arregimentar- se para freá-lo tão rapidamente quanto possam.

É interessante observar a dramaticidade com que Vargas falou às massas obreiras, num primeiro de maio de sua última etapa de governo, conclamando-as a unir-se.

“Quero dizer- vos, todavia (afirmou Vargas no célebre discurso) que a obra gigantesca de renovação que o meu governo está, começando a empreender, não pode ser levada a bom termo sem o apoio dos trabalhadores e a sua cooperação quotidiana e decidida”. Após referir-se aos primeiros noventa dias de seu governo, ao que chamava “de um balanço' das dificuldades e dos obstáculos que, daqui e dali, se estão levando contra a ação governamental”, dizia em linguagem diretíssima ao povo o quanto lhe calava “na alma o desamparo, a miséria, a carestia de vida, os salários baixos... os desesperos dos desvalidos da fortuna e as reivindicações do povo que vive na esperança de melhores dias”.

Em seguida, seu apelo se vai fazendo mais dramático e objetivo: “Venho dizer que, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementos concretos de aço imediata para a defesa da economia do povo. É preciso pois, que o povo se organize, não só para defender seus próprios interesses, mas também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à, realização dos seus propósitos”. E prossegue: “Preciso de vossa união, preciso de que vos organizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e coeso aa lado do governo para que este possa dispor de toda a força de que necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso de vossa união para que possa lutar contra os sabotadores, para que não fique prisioneiro dos interesses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses do povo.” E, com a mesma ênfase : “Chegou, por isto mesmo, a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni -vos todos nos vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. Na hora presente nenhum governo poderá subsistir ou dispor de força suficiente para as suas realizações sociais se não contar com o apoio das organizações operárias”. [4]


[4] Getúlio Vargas, discurso pronunciado no Estádio C. R. Vasco da Gama em 1.º de maio de 1951. In: O Governo Trabalhista no Brasil, Livraria José Olímpio Editora, pp. 322, 323, 324. (Os grifos são nossos).

Ao apelar veementemente às massas para que se organizassem, para que se unissem na reivindicação de seus direitos e ao dizer- lhes, com a autoridade de Chefe de Estado, dos obstáculos, dos freios, das dificuldades inúmeras para realçar um governo com elas, foi indo, daí em diante, o seu governo, aos trancos e barrancos, até o desfecho trágico de agosto de 1954.

Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de governo, uma inclinação tão ostensiva à organização das massas populares, consequentemente ligada a uma série de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses nacionais, possivelmente as elites reacionárias não tivessem chegado ao extremo a que chegaram.

Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, ainda que discretamente, das massas populares, não mais como exclusivo mediador das oligarquias, se estas dispõem de força para freá-la.

Enquanto a ação do líder se mantenha no domínio das formas paternalistas e sua extensão assistencialista, pode haver divergências acidentais entre ele e grupos oligárquicos feridos em seus interesses, dificilmente, porém, diferenças profundas.

É que estas formas assistencialistas, como instrumento da manipulação, servem à conquista. Funcionam como anestésico. Distraem as massas populares quanto às causas verdadeiras de seus problemas, bem como quanto à solução concreta destes problemas. Fracionam as massas populares em grupos de indivíduos com a esperança de receber mais.

Há, contudo, em toda esta assistencialização manipuladora, um monumento de positividade.

É que os grupos assistidos vão sempre querendo indefinidamente mais e os indivíduos não assistidos, vendo o exemplo dos que o são, passam a inquietar-se por serem assistidos também.

E, como não podem as elites dominadoras assistencializar a todos, terminam por aumentar a inquietação das massas.

A liderança revolucionária deveria aproveitar a contradição da manipulação, problematizando-a às massas populares, com o objetivo de sua organização.



continua página 086...



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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (g)


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© Paulo Freire, 1970
Capa
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Revisão
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 



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