sábado, 26 de outubro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo VI: O Ensino na Bruzundanga

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo VI

O Ensino na Bruzundanga

     JÁ vos falei na nobreza doutoral desse país; é lógico, portanto, que vos fale do ensino que é ministrado nas suas escolas, donde se origina essa nobreza. Há diversas espécies de escolas mantidas pelo governo geral, pelos governos provinciais e por particulares. Estas últimas são chamadas livres e as outras oficiais, mas todas elas são equiparadas entre si e os seus diplomas se equivalem. Os meninos ou rapazes, que se destinam a elas, não têm medo absolutamente das dificuldades que o curso de qualquer delas possa apresentar. Do que eles têm medo, é dos exames preliminares. De forma que os filhos dos poderosos fazem os pais desdobrar bancas de exames, pôr em certas mesas pessoas suas, conseguindo aprovar os pequenos em aritmética sem que ao menos saibam somar frações, outros em francês sem que possam traduzir o mais fácil autor. Com tais manobras, conseguem sair-se da alhada e lá vão, cinco ou seis anos depois, ocupar gordas sinecuras com a sua importância de “doutor”.
     Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó.
     Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram: “Sou formado! Está falando com um homem formado!” Ou senão quando alguém lhes diz:

— “Fulano é inteligente, ilustrado...”, acode o homenzinho logo:

— É formado?

— Não.

— Não.

     Raciocina ele muito bem. Em tal terra, quem não arranja um título como ele obteve o seu, deve ser muito burro, naturalmente.
     Há outros, espertos e menos poderosos, que empregam o seguinte truc. Sabem, por exemplo, que, na província das Jazidas, os exames de matemática elementar são mais fáceis. Que fazem eles? Inscrevem-se nos exames de lá, partem e voltam com as certidões de aprovação.
     Continuam eles nessas manobras durante o curso superior. Em tal escola são mais fáceis os exames de tais matérias. Lá vão eles para a tal escola, frequentam o ano, decoram os pontos, prestam ato e, logo aprovados, voltam correndo para a escola ou faculdade mais famosa, a fim de receberem o grau. O ensino superior fascina todos na Bruzundanga. Os seus títulos, como sabeis, dão tantos privilégios, tantas regalias, que pobres e ricos correm para ele. Mas só são três espécies que suscitam esse entusiasmo: o de médico, o de advogado e o de engenheiro.
     Houve quem pensasse em torná-los mais caros, a fim de evitar a pletora de doutores. Seria um erro, pois daria o monopólio aos ricos e afastaria as verdadeiras vocações. De resto, é sabido que os lentes das escolas daquele país são todos relacionados, têm negócios com os potentados financeiros e industriais do país e quase nunca lhes reprovam os filhos.
     Extinguir-se as escolas seria um absurdo, pois seria entregar esse ensino a seitas religiosas, que tomariam conta dele, mantendo-lhe o prestígio na opinião e na sociedade.
     Apesar de não ser da Bruzundanga, eu me interesso muito por ela, pois lá passei uma grande parte da minha meninice e mocidade.
     Meditei muito sobre os seus problemas e creio que achei o remédio para esse mal que é o seu ensino. Vou explicar-me sucintamente.
     O Estado da Bruzundanga, de acordo com a sua carta constitucional, declararia livre o exercício de qualquer profissão, extinguindo todo e qualquer privilégio de diploma.
     Feito isso, declararia também extintas as atuais faculdades e escolas que ele mantém.
     Substituiria o atual ensino seriado, reminiscência da Idade Média, onde, no trivium, se misturava a gramática com a dialética e, no quadri vium, a astronomia e a geometria com a música, pelo ensino isolado de matérias, professadas pelos atuais lentes, com os seus preparadores e laboratórios.
     Quem quisesse estudar medicina, frequentaria as cadeiras necessárias à especialidade a que se destinasse, evitando as disciplinas que julgasse inúteis.
     Aquele que tivesse vocação para engenheiro de estrada de ferro, não precisava estar perdendo tempo estudando hidráulica. Frequentaria tão-somente as cadeiras de que precisasse, tanto mais que há engenheiros que precisam saber disciplinas que até bem pouco só se exigiam dos médicos, tais como os sanitários; médicos — os higienistas — que têm de atender a dados de construção, etc.; e advogados a estudos de medicina legal.
     Cada qual organizaria o programa do seu curso, de acordo com a especialidade da profissão liberal que quisesse exercer, com toda a honestidade e sem as escoras de privilégio ou diploma todo poderoso.
     Semelhante forma de ensino, evitando o diploma e os seus privilégios, extinguiria a nobreza doutoral; e daria aos jovens da Bruzundanga mais honestidade no estudo, mais segurança nas profissões que fossem exercer, com a força que vem da concorrência entre homens de valor e inteligência nas carreiras que seguem.
     Eu não suponho, não tenho a ilusão que alguém tome a sério semelhante ideia.
     Mas desejava bem que os da Bruzundanga a tomassem, para que mais tarde não tenham que se arrepender.
     A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante, e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este curto diálogo:

— Mas T. foi reprovado?

— Foi.

— Como? Pois se é filho do doutor F.?

     Os pais mesmo têm essa ideia; as mães também; as irmãs da mesma forma, de modo a só desejarem casar-se com os doutores. Estes vão ocupar os melhores lugares, as gordas sinecuras, pois o povo admite isto e o tem achado justo até agora. Há algumas famílias que são de verdadeiros Polignacs doutorais. Ao lado, porém, delas vai se formando outra corrente, mais ativa, mais consciente da injustiça que sofre, mais inteligente, que, pouco a pouco, há de tirar do povo a ilusão doutoral.
     É bom não termos que ver, na minha querida Bruzundanga, aquela cena que a nobreza de sangue provocou, e Taine, no começo da sua grande obra Origens da França Contemporânea, descreve em poucas e eloquentes palavras. Eu as traduzo:

“Na noite de 14 para 15 de julho de 1789, o Duque de Larochefou- caud-Liancourt fez despertar Luís XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha.

— É. uma revolta? diz o rei.

— Sire, respondeu o duque, — é uma revolução”.

Os Bruzundangas - Capítulo VI: O Ensino na Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo VII: A Diplomacia da Bruzundanga
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

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