Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo XI
Um Ministro
ESTAS “notas” sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar mais. Temo, ao escrevê-las tão longas
como as Histórias de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a imortalidade da obra do viajante
grego.
Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e as desprezar, os
contemporâneos do meu país podem achar nestas rápidas narrações de cousas de nação tão remota,
moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.
Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de mandachuva da Bruzundanga; agora, vou ver se
debuxo o de um ministro daquele país.
A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola; e, como o Brasil, pode-se
dizer que não tem agricultura.
O regime de propriedade agrícola lá, regime de latifúndios com toques feudais, faz que o
trabalhador agrícola seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde é expulso por
dá cá aquela palha, sem garantias de espécie alguma — situação mais agravada ainda pela sua ignorância,
pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela incapacidade e cupidez dos proprietários.
Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer cousa, indignos da função que a
obscura marcha das cousas depositou em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de formados, nisto ou
naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer sentimento de nobreza e
generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos de riqueza que o mais feroz taverneiro, pimpãos
e arrogantes, as suas fazendas ou usinas são governadas por eles, quando o são, com a dureza e os
processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de escravos.
Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência nos lugares em que têm as
suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política, fazem o que querem, são senhores de baraço e cutelo,
eles ou os seus prepostos.
O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas propriedades,
tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa
coberta com o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para o barão, desta ou daquela maneira.
Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso
asseverar que o trabalhador agrícola daquele país — esteja o café em alta, esteja em baixa, suba o
açúcar, desça o açúcar — há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é, dez tônios por dia, a seco, o que
quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e dous mil-réis, sem alimentação.
Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalha- dores agrícolas. A parte
povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as suas necessidades,
mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu suor, em breve deixam-se cair
em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos
contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.
Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos, e deputados, e senadores, e ministros,
logo que sentem o êxodo dos naturais, começam a berrar que há falta de braços. Publicam uns fascículos
desonestamente otimistas, onde há as maiores hipérboles laudatórias ao clima e à fertilidade da
Bruzundanga e atraem emigrantes incautos.
Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem “queimou os seus navios”, trabalham
vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias; mas já seus filhos não são assim. Logo
se enchem do mesmo desânimo que os seus patrícios mais antigos, na terra, e começam a cair naquele
marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com um grande apelo à embriaguez sexual,
das cantigas populares do país e cobre a roça da Bruzundanga de um sudário impalpável.
A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando em quando, a nacionalidade
dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles conseguem manter o fogo sagrado e ter trabalhadores
abnegados.
Tudo isto se dá porque o fazendeiro ou grande agricultor da Bruzundanga quer ter da sua cultura
lucros imensos que lhe proporcionem uma vida de fausto, a ele, aos filhos que estudam para doutor, às
filhas para casarem com a nobreza do país. O crédito agrícola é, por isso, até prejudicial à lavoura da
paradoxal república.
Em geral, vivem fora das propriedades, nas grandes cidades, sob o pretexto de educarem as filhas
e os filhos, mas com o secreto intuito de arranjar bons partidos matrimoniais para as meninas.
Foi entre semelhantes morubixabas que certo mandachuva escolheu um seu ministro da Agricultura.
Remontemos as origens desse cacique do açúcar, os piores da Bruzundanga, pois lidam em geral com
os naturais do pais que não têm a quem se queixar. Na província das Canas, houvera um turumbamba
mais ou menos oficialmente protegido por um manda-chuva, motivo esse que derrubou a oligarquia da
família dos Cravhos. Um usineiro muito rico da mesma província, Phrancisco Novilho Ben Kosta,
mais conhecido por Chico Caiana, tinha adiantado dinheiro e assoldadado gente para que o general
Tupinambá tomasse o lugar do soba-mor Cravho Ben Mathos. O general vitorioso ficou muito agradecido
ao Chico, e prometeu dar-lhe uma posição de destaque na política.
Chico era o tipo do grande agricultor da Bruzundanga: nada entendia de agricultura, mesmo
daquela que dizia exercer.
As canas que moía nos seus engenhos, eram plantadas por outros, a quem ele impunha o preço do
carro como bem entendia; e, no que toca à moagem e preparo do açúcar, aí já de indústria, ele nada ou
pouco conhecia.
Apesar de bacharel em direito, mal lia os jornais e o seu forte, em aritmética, era a conta de
juros, de cabeça. A sua usina era de fato dirigida por um francês boêmio, Ormesson, a quem chamavam
de doutor, apesar de ter ele unicamente um simples curso do Conservatoire des Arts et Métiers, de
Paris.
Charles Ormesson, o tal francês, com o ser prático e hábil no ofício, era um extravagante
incorrigível; e, como tal, pouco exigente de dinheiro e facilmente explorável. Bebia desregradamente e
fazia do feroz doutor Chico Novilho gato e sapato. O doutor Novilho não o despedia, apesar de seus
pruridos disciplinadores até à tirania, por sordícia. Caiana nada entendia daqueles mistérios de fazer da
cana, açúcar; e, se fosse mexer nos aparelhos, nas turbinas, dosar o caldo, etc., etc., a cousa era capaz de
explodir como pólvora. Acrescia mais ainda que ele conseguia pagar a Ormesson o que bem entendia;
e, se quisesse substituí-lo, o outro talvez custasse mais caro. Aturava o francês e explorava-o. Conservando
Ormesson, reservava o seu autoritarismo para os outros pobres-diabos de empregados subalternos,
colonos e mais gente sob o seu guante.
Toda a manhã, em tempo de safra, inteiramente de branco, montado no “Quitute”, um cavalo
ruço-malhado, Caiana corria os canaviais; e, se se encontrava com um comboio de canas, nas usineiras
linhas Decauville, olhava a pequena locomotiva e sempre se lembrava de admoestar o foguista-maquinista:
— Olhe o manômetro que não está limpo.
Eis aí a sua agricultura, de que veio tirá-lo o braço forte do general Tupinambá. Vejamos como.
Ascendendo à governança da província das Canas, Tupinambá tratou logo de eleger senador da
Bruzundanga o seu forte esteio eleitoral, o doutor Chico Caiana. Arranjaram as atas e mandaram-nas, e mais ele, para a capital do país.
Quando saltou, era um gozo ver o Chico Caiana atravessar as ruas com um ostentoso chapéu
Panamá, terno de linho branco, botinas inteiriças de pelica amarela e açoiteira pendente do pulso
direito. Olhava tudo alvarmente; e, de quando em quando, ficava surpreendido de que ninguém o
conhecesse. O doutor Chico Caiana, da usina do Cambambu! Não conhecem? Que gente fútil!
O senado não o quis reconhecer; porém, mandachuva, que tinha a palavra empenhada com
Tupinambá, arranjou as cousas. Determinou que o ministro da Guerra fosse estudar na Europa
o fabrico dos mais modernos medicamentos alemães; transferiu o ministro da Agricultura para a pasta
da Guerra e nomeou Caiana para aquela outra.
Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma grande admiração.
— Onde está aqui agricultura?... Estes papéis... Isto não é prático!... Quero cousas práticas!...
Canaviais... Engenhos... Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!
Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou às cristas com os seus
subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade e ele gritava:
— Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero cousas práticas! Vou chamar o Félix,
o meu guarda-livros, lá do Cambambu, a minha usina. Conhece?
O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização para instalar um laboratório e
Caiana berrava:
— Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou mandar chamar o Nicodemo.
Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias de animais com sangria ou óleo de andaiaçu. Quero
cousas práticas! Práticas, está ouvindo?
Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao primeiro:
— Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de agricultura. Quero cousa
prática! Hein? Vê lá, se vais beber! Hein?
Ao guarda-livros, ele disse:
— Tome conta dessas cousas de papéis aí, que não pesco nada disso.
A Nicodemos, nada o doutor Chico recomendou, porque o alveitar não quis deixar as Canas.
O francês não bebeu e, dias depois, trouxe o projeto de transformar a chácara da secretaria em
campo agrícola.
— Amendoim! — exclamou o ministro.—Não dá nada! Se fosse cana... “Mindobi”, só para
preta velha vender torrado...
Ele não conhecia, não admitia outra cultura que não fosse a da cana-de-açúcar. Ormesson
convenceu-o e o ministro determinou o plantio aconselhado. Um dos diretores pediu autorização para
admitir trabalhadores.
— Trabalhadores! Ponha lá os escriturários, esses escreventes todos...
— Mas...
— Não tem mas, não tem nada! Quem não quiser, deixe o lugar, que eu arranjo outros mais
baratos.
Não houve remédio senão os oficiais da sua Secretaria de Estado irem puxar o rabo da enxada.
Houve, no ano seguinte, uma complicação internacional e o açúcar começou a ser procurado.
Chico Caiana não se importou mais com as cousas do ministério e aproveitou a posição para ganhar
dinheiro. Durante muito tempo, o mandachuva não o viu. O guarda-livros era quem lhe levava os atos
necessitados da assinatura presidencial.
Um dia o chefe do governo perguntou ao auxiliar do grande agricultor:
— Onde está o doutor Phrancisco Novilha?
— Está ocupado com cousas práticas.
continua na página 41...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
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Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo XI: Um Ministro
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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