Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo IX
Um Mandachuva
OS leitores que têm seguido estas rápidas notas sobre os usos e costumes, leis e superstições da República
da Bruzundanga, não devem ter esquecido que o seu presidente é chamado “mandachuva”, e oficialmente.
Já dei até algumas das exigências constitucionais que os candidatos têm de preencher, a fim de
ascenderem à curul presidencial daquele país, que fica próximo da ilha dos Lagartos, tão bem descrita
pelo meu concidadão Antônio José, que as fogueiras da Inquisição queimaram em Lisboa.
O que pretendo agora, nestas linhas, é fornecer aos leitores o tipo de um presidente da curiosa
república, infelizmente tão mal conhecida entre nós —cousa de lastimar, pois ela nos podia fornecer
modelos que nos levassem de vez a completo desastre. Il faut finir, pour recommencer... A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos disfarçada, um general mais ou
menos decorativo, o mandachuva é sempre escolhido entre os membros da nobreza doutoral; e, dentre
os doutores, a escolha recai sobre um advogado.
É justo, pois são os advogados ou bacharéis em direito que devem ter obrigação de conhecer a
barafunda de leis de toda a natureza, embora a arte de governar, segundo o critério dos que filosofam
sobre o Estado e o admitem necessário, não peça unicamente o seco conhecimento de textos de leis, de
artigos de códigos, de opiniões de praxistas e hermeneutas.
As leis são o esqueleto das sociedades, mas a feição de saúde ou doença destas, as suas necessidades
terapêuticas ou cirúrgicas, são dadas pelo prévio conhecimento e exame, no momento, do estado de
certas partes externas e dos seus órgãos vitais, que são o seu comércio, a sua indústria, as suas artes, os
sonhos do seu povo, os sofrimentos dele — toda essa parte mutável das comunhões humanas, cambiante
e fugidia, que só os fortes observadores, com grande inteligência, colhem em alguns instantes, sugerindo
os remédios eficazes e as providências adequadas, para tal ou qual caso.
Como dizia, porém, na Bruzundanga, em geral, o mandachuva é escolhido entre os advogados,
mas não julguem que ele venha dos mais notáveis, dos mais ilustrados, não: ele surge e é indicado
dentre os mais néscios e os mais medíocres. Quase sempre, é um leguleio da roça que, logo após a
formatura, isto é, desde os primeiros anos de sua mocidade até aos quarenta, quando o fizeram deputado
provincial, não teve outro ambiente que a sua cidadezinha de cinco a dez mil habitantes, mais outra
leitura que a dos jornais e livros comuns da profissão — indicadores, manuais, etc.; e outra convivência
que não a do boticário, do médico local, do professor público e de algum fazendeiro menos dorminhoco,
com os quais jogava o solo, ou mesmo o “truque” nos fundos da botica.
É este homem que assim viveu a parte melhor da vida, é este homem que só viu a vida de sua
pátria na pacatez de quase uma aldeia; é este homem que não conheceu senão a sua camada e que o seu
estulto orgulho de doutor da roça levou a ter sempre um desdém bonachão pelos inferiores; é este
homem que empregou vinte anos, ou pouco menos, a conversar com o boticário sobre as intrigas
políticas de seu lugarejo; é este homem cuja cultura artística se cifrou em dar corda no gramofone
familiar; é este homem cuja única habilidade se resume em contar anedotas; é um homem destes, meus
senhores, que depois de ser deputado provincial, geral, senador, presidente de província, vai ser o
mandachuva da Bruzundanga.
Hão de dizer que, passando por tão altos cargos que se exercem em grandes cidades, nas capitais,
o futuro mandachuva há de ter recebido outras impressões e ganhar, portanto, ideias mais amplas.
Naturalmente, ele há de adquirir algumas, mas não tantas que modifiquem a sua primitiva estrutura
mental.
Durante esse longo tempo em que ele passa como deputado, senador, isto e aquilo, o
esperançoso mandachuva é absorvido pelas intrigas políticas, pelo esforço de ajeitar os
correligionários, pelo trabalho de amaciar os influentes e os preponderantes, na política geral e regional.
A sua atividade espiritual limita-se a isto.
Os preponderantes e influentes têm todo o interesse em não fazer subir os inteligentes, os
ilustrados, os que entendem de qualquer cousa; e tratam logo de colocar em destaque um medíocre
razoável que tenha mais ambição de subsídios do que mesmo a vaidade do poder.
Além disso, eles têm que atender aos capatazes políticos das localidades das províncias; e, em
geral, estes últimos indicam, para os primeiros postos políticos, os seus filhos, os seus sobrinhos e de
preferência a estes: os seus genros.
A ternura de pai quer sempre dar essa satisfação à vaidade das filhas.
O futuro chefe do governo da Bruzundanga começa a sua carreira política pela mão do
sogro; e, relacionando-se com os bonzos de sua província, se é esperto e apoucado de inteligência
e saber, faz-se ainda mais; na maioria dos casos, porém, não é preciso tanto. Os caides ficam logo
contentes com ele. Mandam-no para a câmara geral; e, durante a primeira legislatura,
encarregam-no de comprar ceroulas, pares de meias, espingardas de dous canos, óculos de grau tanto,
de ir às repartições ver tal requerimento, de empenhar-se pelos exames dos nhonhôs, etc...
Quando acaba a legislatura, o Messias anunciado para salvar a Bruzundanga é possuidor de
todo esse acervo de serviços ao partido. É reeleito. A sua lealdade e o seu natural prestativo indicam-no
logo para leader da bancada, senão da Câmara. Ei-lo em evidência. Os jornalistas, grandes e pequenos,
não o deixam, elogiam-no, dão-lhe o retrato nas folhas, fazem pilhérias a respeito do homem; e ele
autoriza a publicação de atos oficiais do governo de sua província, cujas contas o erário departamental
paga generosamente aos seus jornais e revistas.
Os calenders provincianos estão cada vez mais contentes com ele e o nosso homem já economizou,
sobre subsídios, mais do que a mulher trouxe para a sociedade conjugal.
É um homem metódico, pontual nos pagamentos, não gasta dinheiro em cousas inúteis, como
seja em livros.
Uma noite ou outra, vai ao Teatro Lírico, mas logo se aborrece, não só ele como a futura Mme.
Mandachuva. Preferia, madame, estar a dormir naquela hora, e ele a jogar solo na botica, antes do que
permanecerem ali, apertados nos vestuários, a ouvir umas cantorias em língua que não entendem. Que
saudades do gramofone! Para ele, há secas piores...
Ainda a música ele suporta um tanto, mas as tais exposições de pintura, as sessões de academias...
Irra! Que estafa!
Foge de ir a elas; e todo o seu medo é vir a ser presidente da Bruzundanga, pois será obrigado a
comparecer a tais festas.
A sua leitura continua a ser os jornais, porém não pega mais nos manuais, nos indicadores de
legislação.
As necessidades artísticas de sua natureza se cifram no gramofone doméstico e nos cinemas
urbanos ou do arrabalde em que reside. Faz coleção dos programas destes últimos e, com eles, organiza
a sua opulenta biblioteca literária.
À proporção que sobe, mostra-se mais carola; não falta à missa, aos sermões, comunga, confessa-se
e os padres e irmãs de caridade têm-no já por aliado. Ah! Quem o visse contar certas anedotas sobre
padres, jogando o “truque”, nos fundos da botica de sua terra!... História antiga! O homem, hoje, é
sinceramente católico, e tanto assim que acompanha procissões de opa ou balandrau.
A ascensão dele a senador até coincidiu com a sua eleição para irmão fabriqueiro da Santíssima
Irmandade de Santo Afonso de Ligório e também com a de definidor da Santíssima e Venerável Irmandade
de Santo Onofre.
As cousas vão assim marchando; e ele, sempre calado, deixa-se ficar, rodando a manivela do
gramofone e do seu moinho de rezas.
Há uma complicação na escolha do governador da província das Jazi- das, onde ele nasceu. Os
caides não se entendem e o seu nome é apontado como conciliador, escolhido e eleito. Aborrece-se um
pouco, pois já estava habituado com a capital do país, e muito gostava dela, apesar de mal a conhecer.
Toma posse, entretanto. Surge, ao meio do seu governo regional, não entre os caides, mas na comunhão
dos emires que governam o país, um desaguisado, com o problema da sucessão do mandachuva, cujo
tempo está a acabar. O nosso homem não se define. Continua a dar corda no seu enorme e fanhoso
gramofone e a rodar a manivela do seu moinho de rezas. Os padres, que são seus aliados, não o
abandonam; e nos bastidores, por intermédio das mulheres dos políticos, insinuam-lhe o nome para o
alto cargo de mandachuva. Ei-lo eleito, toma posse do cargo e do alcatifado palácio que a nação lhe dá
para residência.
O seu primeiro cuidado, e também da mulher, é fechar diversos aposentos para diminuir o
número de serviçais, de modo a fazer economias na verba de representação.
O cargo dá-lhe certos incômodos, mas muitas vantagens: não paga selo nas cartas, não paga
bonde, trem, nem teatros, onde continua a quase não ir. O que o aborrece, sobretudo, são as audiências
públicas — uma importunação para esse parente de São Luís. Mais o amolam que lhe dão fadiga. Ao
sair de uma delas, diz à mulher:
— Que povo aborrecido!
— Mas que tem você com o povo? — pergunta Mme. Mandachuva, a Egéria conjugal.
Para distrair-se, o esclarecido mandachuva compra um bom gramofone e instala no palácio
um cinema.
É conveniente lembrar que, nesse mesmo palácio, ao tempo em que a Bruzundanga era império,
executores famosos no mundo inteiro tinham tocado obras-primas musicais, no violino e no piano.
Houve progresso...
Eis aí um mandachuva perfeito.
continua na página 36...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
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Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo IX: Um Mandachuva
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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