Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo VII
A Diplomacia da Bruzundanga
O ideal de todo e qualquer natural da Bruzundanga é viver fora do país. Pode-se dizer que todos
anseiam por isso; e, como Robinson, vivem nas praias e nos morros, à espera do navio que os venha
buscar.
Para eles, a Bruzundanga é tida como país de exílio ou mais do que isso: como uma ilha de
Juan Fernández, onde os humanos perdem a fala, por não terem com quem conversar e não poderem
entender o que dizem os pássaros, os animais silvestres e mesmo as cabras semisselvagens.
Um dos meios de que a nobreza doutoral lança mão para safar-se do país, é obter empregos
diplomáticos ou consulares, em falta destes os de adidos e “encostados” às legações e consulados.
Convém notar que, quando digo que a ânsia geral é viver fora do país, excetuo os ativos,
aqueles que sugam dos ministérios subvenções, propinas, percentagens e obtêm concessões, privilégios,
etc. Este demoram-se pouco fora dele e, seja governo o partido radical, seja governo o partido conservador,
esteja o erário cheio, esteja ele vazio, sabem sempre obter fartos e abundantes recursos monetários de
um modo de que só eles têm o segredo.. Estes senhores gostam muito da Bruzundanga e são ferozes
patriotas.
Mas, como lhes contava, os nobres doutores tratam logo de representar o país em terras
estranhas.
Não fazem questão de lugar. Seja no Turquestão ou na Groenlândia, eles aceitam os cargos
diplomáticos.
A um, perguntei:
— Mas tu vais mesmo para o Anam?
— Por que não? Não há lá mulheres?
O sonho do jovem diplomático não é ser Talleyrand*; é ser Don Juan para uso externo.
Ia até bastante satisfeito, disse-me em seguida, porquanto, lá, não se distinguindo bem a mulher
anamita do homem, devia acontecer surpresas bem agradáveis com semelhante “engano d’arma ledo
e cego”.
A sua aprendizagem para o ofício é simples. Além do corriqueiro francês e os usos da sociedade,
os aspirantes a diplomatas começam nos passeios e reuniões da capital da República a ensaiar o uso de
roupas, mais ou menos à última moda. Não esquecem nem o modo chic de atar os cordões dos sapatos,
nem o jeito ultra fashionable de agarrar a bengala; estudam os modos apurados de cumprimentar, de
sorrir; e, quando se os vê na rua, descobrindo-se para aqui, chapéu tirado da cabeça até à calçada para
ali, balouçando a cabeça, lembramo-nos logo dos cavalos do Cabo de coupé de casamento rico.
Outra cousa que um recomendável aspirante a diplomata deve possuir, são títulos literários. Não
é possível que um milhar de candidatos, pois sempre os há nesse número, tenham todos talento literário,
mas a maior parte deles não se atrapalham com a falta.
Os mais escrupulosos escrevem uns mofinos artigos e tomam logo uns ares de Shakespeare;
alguns publicam livros estafantes e solicitam dos críticos honrosas referências; outros, quando já
empregados no ministério, mandam os contínuos copiar velhos ofícios dos arquivos, colam as cópias
com goma-arábica em folhas de papel, mandam a cousa para a Tipografia Nacional do país, põem um
título pomposo na cousa, são aclamados historiadores, sábios, cientistas e logram conseguir boas
nomeações.
Houve um até que não teve escrúpulo em copiar grandes trechos do Carlos Magno e os doze
pares de França, para ter um soberbo título intelectual, capaz de fazê-lo secretário de legação, como
ainda o é atualmente.
O mais notável caso de acesso na “carreira” foi o que obteve o adido à Secretaria de Estrangeiros
Horlando. Em um jantar de luxo, houve uma disputa entre dous convidados sobre uma qualidade de
peixe que viera à mesa. Um dizia que era garoupa; o outro que era bijupirá. Não houve meio de
concordarem. Horlando foi chamado para árbitro. Levou amostras para casa. Mandou tirar fotografias,
fez que desenhassem estampas elucidativas, escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu que
não era nem garoupa, nem bijupirá, mas cação. O seu trabalho foi tido como um modelo da mais pura
erudição culinária e o moço foi logo encarregado de negócios na Guatemala. É hoje considerado como
um dos luzeiros da diplomacia da Bruzundanga.
Cada mandachuva novo traz sempre em mente aumentar o número de legações, de modo que
não há país no mundo em que a Bruzundanga não tenha um batalhão de representantes. Muitos desses
países não mantêm, com a curiosa república que venho descrevendo, relações de espécie alguma; mas,
como é preciso mandar alguns filhos de “figurões” para o estrangeiro, a munificência dos poderes
públicos não trepida em criar nelas legações dispendiosas. Há lá até quem reze para que certos países se
desmanchem e surjam da separação novos independentes, permitindo o aumento de legações.
Os rapazes, que vão para elas, saem do país muito bons rapazinhos, às vezes mesmo mais ricos
de influência que de dinheiro; quando, porém, de lá voltam, só porque viram o emir de Afganistão ou o
sultão de Baçora, acreditam-se da melhor nobreza... certamente muçulmana.
Os seus modos são outros, os seus gestos estudados, pisam à última moda do centro da Ásia
e encetam a conversa sobre qualquer cousa, começando sempre assim:
— Estava eu em Cabul, quando a mulher do ministro russo...
Cabul soa aí como se fosse Paris, Londres ou Roma e os seus auditores consentem em admitir
que a capital de Afganistão seja mesmo um depósito de elegâncias superiores.
Pelo simples fato de terem palmilhado terras estranhas e terem visto naturalmente algumas
obras-primas, os diplomatas da Bruzundanga se julgam todos eles artistas, literatos, homens finos,
gentlemen.
Não pensem que eles publiquem obras maravilhosas, profundas de pensamentos, densas
de ideias; não é isso bem o que publicam.
Afora um ou outro que não se veste pelo figurino da maioria, o que eles publicam são sonetos
bem rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos, lambidinhos, cantando as espécies de joias e adereços
que se encontram nas montras dos ourives.
A isto, eles batizam, por conta própria, de aristocracia da arte, arte superior, arte das delicadezas
impalpáveis.
Publicam esses catálogos de ourivesaria, quando não são de modistas e alfaiates, em edições
luxuosas; e, imediatamente, apresentam-se candidatos à Academia de Letras da Bruzundanga.
Houve tempo em que ela os aceitava sem detença; mas, ultimamente, devido à sua
senilidade precoce, desprezou-os e só vai aceitando os taumaturgos da cidade.
Não há médico milagreiro e afreguesado que não entre para ela e pretira os diplomatas.
Nem sempre foi assim a diplomacia da Bruzundanga. Mesmo de- pois de lá se ter
proclamado a República, os seus diplomatas não tinham o recheio de ridículo que atualmente têm.
Eram simples homens como quaisquer, sem pretensões do que não eram, sem fumaças
de aristocracia, nada casquilhos, nem arrogantes.
Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente, o
Visconde de Pancôme, que fizeram ministro dos Estrangeiros, e ele transformou tudo.
Empossado no ministério, a primeira cousa que fez foi acabar com as leis e regulamentos
que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na Bruzundanga;
e vinha a sua popularidade do fato de ter obtido do rei da Inglaterra a comenda de Jarreteira para
o mandachuva e seus ministros, assim como o Tosão de Ouro da Espanha para os generais e almirantes.
Todos os senhores hão de se admirar que tal cousa tenha feito o homem popular. É que os
bruzundanguenses babam-se inteiramente por esse negócio de condecorações e comendas; e, embora
cada qual não tivesse recebido uma, eles se julgavam honrados pelo fato do mandachuva, do ministro,
dos generais e almirantes terem recebido condecorações tão famosas no mundo inteiro.
São assim como nós que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado
ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de
nós tenha de seu nem os sete palmos de terra para deitarmos o cadáver.
O visconde, exaltado no ministério, tendo por lei a sua vontade, baseado na popularidade, fez o
que entendeu e a sua preocupação máxima foi dar à representação externa da Bruzundanga um brilho
de beleza masculina, cujo cânon ele guardava secretamente para si. Daí veio essa total modificação no
espírito da representação exterior do país e não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado
que ele não nomeasse para esta ou aquela legação.
O seu sucessor seguiu-lhe logo as pegadas, não só neste ponto como em outros mais.
O Visconde de Pancôme era de fato um escritor; o novo ministro não o era absolutamente, mas
como substituiu aquele, julgou-se no direito de o ser também e também membro da Academia de
Letras, como tinha sido o seu predecessor.
Publicou em papelão um discurso, impresso em letras garrafais, con- seguindo assim organizar
um volume e foi daí em diante igual ao antecessor em tudo.
Não há mal algum que seja assim a diplomacia daquelas paragens. A Bruzundanga é um país de
terceira ordem e a sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita.
E, se os maridos e pais da Bruzundanga têm que andar cheios de cuidados, é melhor que tais
zelos fiquem ao cargo dos estrangeiros. A diplomacia do país tem a sua utilidade...
continua na página 30...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo VII: A Diplomacia da Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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