Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo III
A Outra Nobreza da Bruzundanga
NO artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da nobiliarquia da
República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e
interessante.
A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é firmada na vaga
superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores
têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos
pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar
pouco e ganhar muito.
Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo
governo, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos
pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.
A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em cousa alguma; não é firmada em lei ou
costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, carta, diploma, lei ou o que
seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular
instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.
Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, Ricardo Silva
da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos
oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor, julga o seu nome
muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre. Muda o nome e passa a chamar-se:
Ricardo Silva de la Concepción. Publica o anúncio no Jornal do Comércio local e está o homem mais
satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por lá, encontra por toda a parte príncipes, duques, condes,
marqueses da Birmânia, do Afeganistão e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres e titulares
e eu não sou nada disso.
Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim de A. Carrillo, —
nos Cavalheiros do Amor, por exemplo — um título espanhol qualquer. Suponhamos que seja: Príncipe
de Luna y Ortega. O homem diz lá consigo: “Eu me chamo Concepción, esse nome é espanhol, não há
dúvida que eu sou nobre”; e conclui logo que é descendente do tal Príncipe de Luna y Ortega. Manda
fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba convencido de que é mesmo príncipe, e convencendo
os seus amigos da sua prosápia elevada.
Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra, aconteceu uma anedota
engraçada.
Ele se chamava assim como Ferreira, ou cousa que o valha. Fez uma viagem à Europa e voltou
príncipe não sei de quê.
Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas e entregues a antigos servidores.
Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo arrimado a um bastão que escorava a sua grande velhice.
Falou ao homem, ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem ensinara a armar laços e
arapucas.
O novel príncipe formalizou-se e disse: — Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?
— Quá o quê, nhonhô! Vancê não pode sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô, cumo é?
O recente nobre, ci-devant Ferreira, estomagou-se e não quis mais conversas com aquele velho
decrépito que tinha da nobreza idéias tão caducas. Não lhe deu mais trela.
Essa improvisação de títulos se dá pelas formas as mais estranhas.
Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejara muito para arranjar alguns cobres, foi um dia
para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no bolso. Fora das vistas paternas e sentindo
longe a hipocrisia da Bruzundanga, meteu-se em todas as pândegas que lhe passou pela cabeça.
Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café cantante, uma delas
deu na telha de tratá-lo de marquês. Era senhor marquês para aqui; senhor marquês para ali.
O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência da dama, ele
perguntou ingenuamente:
— Mas eu sou marquês?
— É — disse a dama galante.
— Como?
— Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte francos e os nomes de seus pais, que já lhe
dou a prova.
Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore genealógica, donde se
concluía que descendia dos marqueses de Livreville. À vista de tão poderoso documento, o cidadão
que partira da Bruzundanga simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (é uma hipótese), voltou da
estranja com o altissonante título de Marquês de Libreville. O pai continuou a chamar-se Chavantes;
ele, porém, era marquês. O’ manes de d’Hozier!
Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra no- breza. São condes ou
duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a
ser conhecidos por dous nomes —cousa que é quase verificada entre os malfeitores e outros conhecidos
da polícia.
Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se fez república,
e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo regime monárquico, com
uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas,
do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo “nobreza”, mas taffetas.
No país, esses titulares de palpite não têm importância alguma na massa popular. Os do povo
respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina Sidonia de
última hora; a élite, porém, a nata, — essa sim! — tem por eles o respeito que se devia aos antigos
nobres.
O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá II, d’Africa.
A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos são berrados
nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d’Alba, que,
por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga, que desejava a incorporação
do proletário à sociedade moderna.
Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado estudo. Eles
têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem
invectivas de profeta judaico; mas, quase sempre, o riso bonachão de Rabelais.
O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para elas ainda é
bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France: com ironia e piedade.
continua na página 20...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo III: A Outra Nobreza da Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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