Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo V
As Riquezas da Bruzundanga
QUANDO abrimos qualquer compêndio de geografia da Bruzundanga; quando se lê qualquer
poema patriótico desse pais, ficamos com a convicção de que essa nação é a mais rica da terra.
“A Bruzundanga, diz um livro do grande sábio Volkate Ben Volkate, possui nas entranhas do seu
solo todos os minerais da terra.
“A província das Jazidas tem ouro, diamantes; a dos Bois, carvão de pedra e turfa; a dos Cocos,
diamantes, ouro, mármore, safiras, esmeraldas; a dos Bambus, cobre, estanho e ferro. No reino mineral,
nada pede o nosso país aos outros. Assim também no vegetal, em que é sobremodo rica a nossa
maravilhosa terra.
“A borracha, continua ele, pode ser extraída de várias árvores que crescem na nossa opulenta
nação; o algodoeiro é quase nativo; o cacau pode ser colhido duas vezes por ano; a cana-de-açúcar
nasce espontaneamente; o café, que é a sua principal riqueza, dá quase sem cuidado algum e assim
todas as plantas úteis nascem na nossa Bruzundanga com facilidade e rapidez, proporcionando ao
estrangeiro a sensação de que ela é o verdadeiro paraíso terrestre”.
Nesse tom, todos os escritores, tanto os mais calmos e independentes como os de encomenda,
cantam a formosa terra da Bruzundanga.
Os seus acidentes naturais, as suas montanhas, os seus rios, os seus portos são também assim
decantados. Os seus rios são os mais longos e profundos do mundo; os seus portos, os mais fáceis ao
acesso de grandes navios e os mais abrigados, etc., etc.
Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com a realidade dos fatos há
de achar estranho tanto entusiasmo.
A Bruzundanga tem carvão, mas não queima o seu nas fornalhas de suas locomotivas. Compra-o
à Inglaterra, que o vende por bom preço. Quando se pergunta aos sábios do país porque isto se dá, eles
fazem um relatório deste tamanho e nada dizem. Falam em calorias, em teor de enxofre, em escórias,
em grelhas, em fornalhas, em carvão americano, em briquettes, em camadas e nada explicam de todo.
Os do povo, porém, concluem logo que o tal carvão de pedra da Bruzundanga não serve para fornalhas,
mas, com certeza, pode ser aproveitado como material de construção, por ser de pedra.
O que se dá,com o carvão, dá-se com as outras riquezas da Bruzundanga. Elas existem, mas
ninguém as conhece. O ouro, por exemplo, é tido como uma das fortunas da Bruzundanga, mas lá não
corre uma moeda desse metal. Mesmo, nas montras dos cambistas, as que vemos são estrangeiras.
Podem ser turcas, abexins, chinas, gregas, mas do pais não há nenhuma. Contudo, todos afirmam que o
país é a pátria do ouro.
O povo da Bruzundanga é doce e crente, mais supersticioso do que crente, e entre as suas
superstições está esta do ouro. Ele nunca o viu, ele nunca sentiu o seu brilho fascinador; mas todo o
bruzundanguense está certo de que possui no seu quintal um filão de ouro.
Com o café dá-se uma cousa interessante. O café é tido como uma das maiores riquezas do país;
entretanto é uma das maiores pobrezas. Sabem por quê? Porque o café é o maior “mordedor” das
finanças da Bruzundanga.
Eu me explico. O café, ou antes, a cultura do café é a base da oligarquia política que domina
a nação. A sua árvore é cultivada em grandes latifúndios pertencentes a essa gente, que, em geral,
mal os conhece, deixando-os entregues a administradores, senhores, nessas vastas terras, de baraço e
cutelo, distribuindo soberanamente justiça, só não cunhando moeda, porque, desde séculos, tal cousa é
privilégio do Rei.
Os proprietários dos latifúndios vivem nas cidades, gastando à larga, levando vida de nababos e
com fumaças de aristocratas. Quando o café não lhes dá o bastante para as suas imponências e as da
família, começam a clamar que o país vai à garra; que é preciso salvar a lavoura; que o café é a base da
vida econômica do país; e — zás — arranjam meios e modos do governo central decretar um empréstimo
de milhões para valorizar o produto.
Curiosos economistas que pretendem elevar o valor de uma merca- doria cuja oferta excede
às necessidades da procura. Mais sábios, parece, são os donos de armarinho que dizem vender barato
para vender muito...
Arranjando o empréstimo, está a cousa acabada. Eles, os oligarcas, nadam em ouro durante cinco
anos, todo o país paga os juros e o povo fica mais escorchado de impostos e vexações fiscais. Passam-se
os anos, o café não dá o bastante para o luxo dos doges, dogaresas e dogarinhas da baga rubra, e logo
eles tratam de arranjar uma nova valorização.
A manobra da “valorização” consiste em fazer que o governo compre o café por um preço que
seja vantajoso aos interessados e o retenha em depósito; mas, acontece que os interessados são, em
geral, governo ou parentes dele, de modo que os interessados fixam para eles mesmos o preço da
venda, preço que lhes dê fartos lucros, sem se incomodar que “o café” venha a ser, senão a pobreza, ao
menos a fonte da pobreza da Bruzundanga, com os tais empréstimos para as valorizações.
Além disto, o café esgota as terras, torna-as maninhas, de modo que regiões do país, que foram
opulentas pela sua cultura, em menos de meio século ficaram estéreis e sáfaras.
Sobre a cultura do café nas terras da Bruzundanga, eu podia muito dizer e podia também muito
epilogar. Não me despeço do assunto totalmente; talvez, mais tarde volte a ele. Há matéria para escrever
sobre ela, muito; dá tanto assunto quanto os matadouros de Chicago.
O cultivo da cana e o fabrico de aguardente e açúcar são matéria de que me abstenho de tratar.
Abstenho-me porque lá diz o ditado que, com teu amo, não jogues as peras. Le sage...
A riqueza mais engraçada da Bruzundanga é a borracha. De fato, a árvore da borracha é nativa e
abundante no país. Ela cresce em terras que, se não são alagadiças, são doentias e infestadas de febres
e outras endemias. A extração do látex é uma verdadeira batalha em que são ceifadas inúmeras vidas. É
cara, portanto. Os ingleses levaram sementes e plantaram a árvore da borracha nas suas colônias, em
melhores condições que as espontâneas da Bruzundanga. Pacientemente, esperaram que as árvores
crescessem; enquanto isto, os estadistas da Bruzundanga taxavam a mais não poder o produto
Durante anos, essa taxa fez a delícia da província dos Rios. Palácios foram construídos, teatros,
hipódromos, etc.
Das margens do seu rio principal, surgiram cidades maravilhosas e os seus magnatas faziam
viagens à Europa em iates ricos. As cocottes caras infestavam as ruas da cidade. O Eldorado...
Veio, porém, a borracha dos ingleses e tudo foi por água abaixo, porque o preço de venda da da
Bruzundanga mal dava para pagar os impostos. A riqueza fez-se pobreza...
A província deixou de pagar as dívidas e houve desembargadores dela a mendigar pelas ruas, por
não receberem os vencimentos desde mais de dous anos.
Eis como são as riquezas do país da Bruzundanga.
continua na página 25...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo V: As Riquezas da Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Departamento Nacional do Livro
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