Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo IV
A Política e os Políticos da Bruzundanga
A
minha estada na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de todos, é rico, tem todos
os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria. De onde em
onde, faz uma “parada” feliz e todos respiram. As cidades vivem cheias de carruagens; as mulheres se
arreiam de joias e vestidos caros; os cavalheiros chics se mostram, nas ruas, com bengalas e trajos
apurados; os banquetes e as recepções se sucedem.
Não há amanuense do Ministério do Exterior de lá que não ofereça banquetes por ocasião de sua
promoção ao cargo imediato.
Isto dura dous ou três anos; mas, de repente, todo esse aspecto da Bruzundanga muda. Toda a
gente começa a ficar na miséria. Não há mais dinheiro. As confeitarias vivem às moscas; as casas de
elegâncias põem à porta verdadeiros recrutadores de fregueses; e os judeus do açúcar e das casas de
prego começam a enriquecer doidamente.
Por que será tal cousa? hão de perguntar.
É que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, vivendo o país
de expedientes.
Entretanto, o povo só acusa os políticos, isto é, os seus deputados, os seus ministros, o presidente,
enfim.
O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. Apegam-se a
velharias, a cousas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades do governo.
A primeira cousa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é
de carne e sangue diferente do resto da população.
O valo de separação entre ele e a população que tem de dirigir faz-se cada vez mais profundo.
A nação acaba não mais compreendendo a massa dos dirigentes, não lhe entendendo estes a alma,
as necessidades, as qualidades e as possibilidades.
Em face de um país com uma população já numerosa em relação ao território ocupado efetivamente
— na Bruzundanga, os seus políticos só pedem e proclamam a necessidade de introduzir milhares e
milhares de forasteiros.
Dessa maneira, em vez de procurarem encaminhar para a riqueza e para o trabalho a população
que já está, eles, por meio de capciosas publicações, mentirosas e falsas, atraem para a nação uma
multidão de necessitados cuja desilusão, após certo tempo de estadia, mais concorre para o mal-estar
do país.
Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da
política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes.
Já lhes contei aqui como o doutor Felixhimino Ben Karpatoso, tido como grande financista naquele
país, se saiu quando se tratou de resolver grandes dificuldades financeiras da nação. Pois bem: esse
senhor não é o único exemplo da singular capacidade mental dos homens públicos da Bruzundanga.
Outros muitos eu poderia citar. Há lá um que, depois de umas exibições vaidosas de retratos nos
jornais e cousas equivalentes, se casou rico e deu para ser católico praticante.
Encontrou o caminho de Damasco que é ainda uma cidade opulenta.
Entretanto, eu, quando frequentei a Universidade da Bruzundanga, o conheci como adepto do
positivismo do rito do nosso Teixeira Mendes. Quis meter-se na política, fugiu do positivismo e, antes
de dez anos, ei-lo de balandrau e vara a acompanhar procissões.
Depois da sua conversão, foi eleito definidor, fabriqueiro, escrivão de várias irmandades e ordens
terceiras.
Aliás, na Bruzundanga, não há sujeito ateu ou materialista em regra que, ao se casar com mulher
rica, não se faça instantaneamente católico apostólico romano. Assim fez esse meu antigo colega.
Esse homem, ou antes este rapaz, que tão rapidamente se passou de uma idéia religiosa para a
outra, esse rapaz cuja insinceridade é evidente, é ajudado em todas as suas pretensões, veleidades,
desejos, pelos bispos, frades, padres e irmãs de caridade.
As irmãs de caridade gozam, lá na Bruzundanga, de uma influência poderosa. Não quero negar
que, como enfermeiras de hospitais, elas prestem serviços humanitários dignos de todo o nosso respeito;
mas não são essas que os cínicos ambiciosos da Bruzundanga cortejam. Eles cortejam aquelas que
dirigem colégios de meninas ricas. Casando-se com uma destas, obtêm eles a influência das colegas,
casadas também com grandes figurões, para arranjarem posições e lugares rendosos.
Toda a gente sabe como o pessoal eclesiástico consegue manter a in- fluência sobre os seus
discípulos, mesmo depois de terminarem os seus cursos. Anatole France, em L’Église et la République,
mostrou isso muito bem. Os padres, freiras, irmãs de caridade não abandonam os seus alunos
absolutamente. Mantêm sociedades, recepções, etc., para os seus antigos educandos; seguem-lhes a
vida de toda a forma, no casamento, nas carreiras, nos seus lutos, etc.
De tal forma fazem isto que constituem uma espécie de maçonaria a influir no espírito dos
homens, através das mulheres que eles esposam.
E os malandros que sabem dessa teia formada acima dos néscios, dos sinceros e dos honestas
de pensamento, tratam de cavar um dote e uma menina das irmãs, o que vem a ser uma e única
cousa.
Disse-nos um velho que conheceu escravos na Bruzundanga que foram elas, as irmãs dos
colégios ricos, as mais tenazes inimigas da abolição da escravidão. Dominando as filhas e mulheres dos
deputados, senadores, mi- nistros, dominavam de fato os deputados, os senadores e os ministros. Ce
que femme veut...
Na Bruzundanga, onde os casamentos desastrosos abundam como em toda a parte, não é lei
o divórcio por causa dessa influência hipócrita e tola, provinda dos ricos colégios de religiosos, onde se
ensina a papaguear o francês e acompanhar a missa.
Esta dissertação não foi à toa, em se tratando de política e políticos da Bruzundanga, porque estes
últimos são em geral casados com moças educadas pelas religiosas e estas fazem a política do país.
Com esse apoio forte, apoio que resiste às revoluções, às mudanças de regime, eles tratam, no
poder, não de atender as necessidades da população, não de lhes resolver os problemas vitais, mas de
enriquecerem e firmarem a situação dos seus descendentes e colaterais.
Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do
Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos,
sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população
rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a
cousa mais fácil desta vida.
Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua capital, algumas
centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados
e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem, empregando um grande palavreado
de quem vai fazer milagres.
Um povo desses nunca fará um haro, para obter terras.
A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece. Não devemos
estar a perder o latim com semelhante gente; eu, porém, que me propus a estudar os seus usos e
costumes, tenho que ir até ao fim.
Não desanimarei e ainda mais uma vez lembro, para bem esclarecer o que fica dito acima,
que o grande Bossuet disse que a política tinha por fim fazer a felicidade dos povos e a vida cômoda.
A Águia de Meaux, creio eu, não afirmou isso somente para edificação de algumas beatas...
continua na página 23...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo IV: A Política e os Políticos da Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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